3 – DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
A democracia participativa constitui-se na necessária evolução do modelo representativo, a qual se operou por meio da adoção de institutos e instrumentos que restituíram ao povo alguma participação direta na gestão da coisa pública e na fiscalização de seus representantes (PEDRA, 2014, p. 160).
Tal modelo assenta-se na premissa de que há a coexistência de um regime constitucional híbrido, moldado por uma estrutura representativa, aliada à participação política do povo nos processos de tomada de decisões fundamentais aptas a influenciar a vida da coletividade.
Trata-se de modalidade em que se alteram as formas clássicas da democracia representativa para aproximá-la cada vez mais da democracia direta. Há, assim, uma presença harmônica de mecanismos diversos, porém, que se complementam, de modo a buscar um regime democrático detentor de autêntica e efetiva legitimidade (BONAVIDES, 2001, p. 355).
Democracia e participação se exigem, não havendo democracia sem participação, sem povo. O regime será tanto mais democrático quanto tenha desobstruído canais, obstáculos à livre e direta manifestação da vontade do cidadão (PEDRA, 2014, p. 162).
Busca-se, com a maximização dos institutos de democracia direta, o aprofundamento da participação política, por meio de instrumentos legislativos de intervenção direta, aptos a ensejar uma transformação do status quo e mudanças nas relações de poder e domínio (DUARTE NETO, 2014, p.46).
A democracia exercida por meio da participação possui um duplo condicionamento, sem o qual ela não se dá ou se desfigura perigosamente: um, subjetivo e outro, objetivo. Ambos atuam separadamente ou em conjunto, oferecendo uma diversificadíssima gama de combinações em cada sociedade; é isso que faz da participação um problema juspolítico extremamente complexo e justificador de um empenho sistemático para estudá-lo (MOREIRA NETO, 1992, p. 11).
A falta de interesse pela participação nos processos de tomada de decisões públicas cria uma sociedade democraticamente apática, passível de ser dominada por políticos profissionais engajados unicamente no viés de usurpação de frutos e rendas que deveriam ser destinadas à satisfação dos anseios de toda coletividade. Tal constatação se assenta no seguinte pensamento de Platão: “o castigo dos bons que não fazem política é ser governados pelos maus” (PENSADOR, 2015).
Sem as instituições que admitam a participação (e a popularização de seus mecanismos), o interesse pela política não alcançará o Estado, terá pouca ou nenhuma influência. Se isso ocorrer, fechar-se-á um círculo vicioso a partir da constatação da inutilidade de qualquer esforço participativo, somente rompido por grandes movimentos reivindicatórios altamente concentradores de poder difuso (MOREIRA NETO, 1992, p. 11).
Há que se consignar, assim, que não existe democracia real sem efetiva participação popular. A participação popular restrita, tão somente, ao ato de votar em datas pré-fixadas não corresponde ao ideal democrático, o qual, para manter-se em sintonia com o exercício do poder, demanda que o povo, real detentor dessa força soberana, tome partido e assuma o papel de protagonista.
3.1 – INICIATIVA POPULAR COMO MATERIALIZAÇÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Os instrumentos de participação semidireta (iniciativa popular, plebiscito e referendo) são igualmente relevantes para a formação de uma democracia ativa. Contudo, por razões didáticas, serão abordadas as características da participação legislativa da sociedade.
O veto e o referendum, apenas “asseguram ao povo que ele não será submetido a uma legislação que não queira”, mas não obrigam juridicamente o parlamento a legislar. Conferem tão somente ao povo o poder de embargar aquelas leis da assembleia parlamentar que se lhe afigurem nocivas, ao passo que a iniciativa popular proporciona ao corpo de cidadãos o exercício de “uma verdadeira orientação governamental”, consubstanciada na capacidade jurídica de propor formalmente a legislação que no seu parecer melhor consulte o interesse público (BONAVIDES, 2001, p. 374).
O anseio pela abertura e expansão da democracia passou a compor o centro dos debates, a ponto de pressionar a atualização da própria agenda de reforma institucional e, em muitos casos, de reivindicar o direito de participação em todos os setores sociais, nomeadamente nas universidades e nas fábricas. (PEREIRA, 2008, p. 147).
As discussões acerca do fortalecimento de mecanismos de democracia semidireta e participação popular são recorrentes e impostergáveis. A referenciada crise do modelo representativo exige que o cidadão assuma seu papel de protagonista, eis que a história nos evidencia que a delegação quase irrestrita de poderes aos representantes não mais encontra sustentáculo na legitimidade popular.
A participação aponta para as forças sociais que vitalizam a democracia e lhe possibilitam o grau de eficácia e legitimidade no quadro social das relações de poder, bem como a extensão e abrangência desse fenômeno político numa sociedade repartida em classes ou em distintas esferas e categorias de interesses (BONAVIDES, 2008, p. 51).
Essa democracia participativa não é sinônimo exclusivo da atividade legiferante atribuída ao povo. O júri popular, a ação popular, as audiências públicas e o direito de petição são igualmente instrumentos de implicação direta da vontade popular nas funções jurisdicionais e administrativas. A essência do Estado de Direito, por sua vez, encontra-se no primado da lei, que condiciona e limita o Estado e a produção de outras normas, vinculando os comportamentos.
Resta claro que por meio do direito fundamental à iniciativa popular os cidadãos, pessoalmente, não legislam, eis que não lhes cabe definir se determinada proposta será ou não aprovada após prévia deliberação, contudo, goza do poder de fazer com que se legisle (BONAVIDES, 2001, p. 375).
Dessa forma, inegável que a aproximação do povo com a discussão e construção das normas que ditam as regras sociais encontra sintonia com a essência da democracia participativa. Uma protagonista participação do cidadão no processo de construção das leis faz com que se reestabeleça o esquecido equilíbrio entre legitimidade e democracia.
4 – ENTRAVES À EFETIVAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL
A participação popular direta possui entraves que precisam ser estudados e enfrentados. Apesar da formal existência de mecanismos de democracia participativa na Constituição Federal de 1988, resta inegável constatar que os mesmos ainda não congregam a realidade contemporânea brasileira.
Os mecanismos de democracia direta representam uma verdadeira ameaça ao Estado Democrático de Direito, em um país onde impera a crise, como é o caso do Brasil, em que a propaganda política é dominada pelos meios de comunicação social, em poder de autênticos monopólios de fato (FERREIRA, 2001, p. 608).
De fato, tal preocupação é pertinente, uma vez que uma sociedade construída sob frágeis pilares educacionais é perfeitamente dominada e induzida pelos meios de comunicação de massa. Aumentar os canais de participação, bem como buscar uma política educacional moldada não apenas nas disciplinas dogmáticas, mas sim, na preocupação de formação de cidadãos, equivale a incentivar a gestão compartilhada de temas de interesse mútuo, contribuindo para a detecção mais apurada dos dissensos existentes, cuja principal consequência é a de enriquecer o debate, bem como os procedimentos e as técnicas de decisão (PEREIRA, 2008, p. 162).
Discussões que possam ser levadas ao crivo do povo, por meio de mecanismos de participação direta, como a pena de morte, redução da maioridade penal, descriminalização do aborto, entre outras, são exemplos objetivos de temas sensíveis que podem sofrer (e certamente sofreriam) influência dos meios de comunicação, de modo a influenciar/induzir a vontade soberana do povo.
O homem olha ao espelho e acredita ser o senhor de si, um sujeito imanipulável. Acredita possuir o esclarecimento de suas decisões, contudo, não imagina que faz parte de um sistema onde sua racionalidade é moldada de acordo com interesses maiores. O esclarecimento pode ser utilizado para aprisionar o homem, transformando-o em um indivíduo genérico, sem domínio das próprias escolhas e decisões (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 24).
O plebiscito, uma das modalidades do exercício de democracia direta em sistemas representativos é, desde os tempos da República Romana, passando por Napoleão, Hitler, Mussolini, chegando a Hugo Chávez e Evo Morales, métodos preferidos por manipuladores da vontade popular (BRASIL, 2014).[2]
Há, ainda, o risco do “horror ao vazio”, quando o povo é chamado a decidir, sendo-lhe atribuídas duas opções: a “ordem” ou o “caos”. Trata-se, sem dúvidas, de conferir à sociedade as escolhas já escolhidas, como forma de buscar uma pseudolegitimação a uma questão previamente definida (PEDRA, 2014, p. 193).
Há que se destacar, ainda, que o argumento da “baixa racionalidade do homem médio” povoa de modo recorrente o imaginário político e acadêmico, apresentando-se como a principal barreira à formação do consenso em torno da necessidade e da utilidade dos elementos da democracia direta. Em razão desse entendimento de ausência de racionalidade há um verdadeiro desprezo pela ideia de participação popular, ao argumento de faltar ao “homem médio” a competência minimamente necessária para lidar com a coisa pública (PEREIRA, 2008, p. 165).
Sob a argumentação de fragilidade ou incapacidade de discernimento do “homem médio, há quem defenda que a atividade política propriamente dita escapa às possibilidades do senso comum e demanda certas formações, certas habilidades e certas capacidades usufruídas apenas por poucos. Se a virtude não está em todos, mas apenas em alguns, não faria sentido atribuir o direito de gestão do poder ao maior número.
Tal visão se apresenta elitista e segregadora, apta, unicamente, à manutenção do status quo e incapaz de perceber que em razão da fragilidade e incapacidade do modelo representativo, resta à democracia contemporânea buscar formas eficazes que legitimem a tomada de decisões.
Se atualmente o “homem médio” brasileiro não possui condições regulares de participar da formação do sistema legislativo, não seria prudente excluí-lo do direito do exercício de apresentar propostas de lei, mas sim, fomentar seu interesse nos assuntos políticos e, principalmente, capacitá-lo para tal mister por meio de uma política educacional ampla e irrestrita. Uma boa educação estimula e possibilita um maior envolvimento político do cidadão.
Mesmo diante de teorias contrárias à participação da sociedade na gestão do poder, sobretudo, na construção legislativa, é inegável que os mecanismos de participação semidireta estão à disposição dos cidadãos para o aperfeiçoamento do sistema democrático vigente.
A educação de qualidade, imbuída no propósito de formar cidadãos ativos e não meros “decoradores de tabuada”, é a forma capaz de conferir ao povo a necessária competência para tratar de assuntos públicos por meio da institucionalização de elementos de democracia direta. Inegável que a efetiva participação da sociedade nos assuntos públicos está vinculada a fatores relacionados ao nível de instrução e índices de desenvolvimento socioeconômico.
Inegável, pois, que o déficit em termos de educação é, assim, um dos motivos centrais para a desestabilização da chamada “competência” para a cidadania. Como exigir do homem comum o fiel interesse e capacidade para compreender temas complexos, se sua formação fora frágil e não voltada à construção de um verdadeiro cidadão?
O fato de participar implicaria, assim, a necessidade de informação, do debate, da decisão e da justificação, pelo que o resultado dessa cadeia de eventos seria revertido em um incremento geral na formação dos implicados. Esse profícua relação dialética entre educação e participação tem como resultado o fortalecimento reverso da própria democracia, já que se apresenta como um dos requisitos para o desenvolvimento de vetores de auto-sustentabilidade. (PEREIRA, 2008, p. 160-161).
Assim, ao contrário de atribuir à carência educacional o real motivo para o enfraquecimento da cidadania ativa, deve a sociedade clamar por um modelo de educação que prime pela formação de homens e mulheres capazes de participarem efetivamente da condução dos destinos do povo, em especial, na formação do arcabouço legislativo que regula as relações sociais.
Outro fenômeno capaz de influir negativamente na construção de um processo legislativo pautado na vontade popular está relacionado a um mimetismo desenfreado, ou seja, uma reprodução automatizada de modelos estrangeiros. Há a busca pelo legislador ordinário de arquétipos estrangeiros, em substituição às concretas aspirações sociais locais. Como regra, os projetos de lei fundamentados em exemplos alienígenas têm maiores chances de aceitação, ainda que estejam em contradição com a realidade à qual está inserido (OLIVEIRA, 2010, p. 185).
A fragilidade na utilização dos instrumentos de participação direta dos cidadãos em nosso ordenamento é, de certa forma, resultado, também, desse mimetismo desenfreado.
A barreira cultural é outro hiato que separa o homem contemporâneo com os interesses de assuntos relacionados à coletividade. Raro encontrar pessoas ou grupos dispostos a participarem da tomada de decisões, sem que haja, ainda que indiretamente, algum interesse privado. O cidadão de hoje não vê na política (e nos assuntos a ela vinculados) uma pauta que lhe atraia a atenção, pelo contrário. Esse interesse/preocupação com os temas coletivos vem deixando, com o passar dos anos, de inspirar o homem comum, ante à ausência de uma real consciência política.
Diversamente do que se viu nos movimentos populares ocorridos nos Brasil em junho de 2013, em que milhares de pessoas foram às ruas para reivindicar melhorias gerais oriundas do Estado, a sociedade atual vive uma forma de ensimesmanto autocêntrico, voltada, apenas, para a satisfação dos anseios privados, não “sobrando tempo” para discutir questões de cunho democrático.
Acerca do entrave em estudo, prudente tecer uma análise comparativa entre o “homem grego da democracia direta”, com o “homem do Estado moderno”, demonstrando as dificuldades contemporâneas aos exercícios da mencionada cidadania ativa. Não seria possível ao Estado moderno adotar técnica de conhecimento e captação da vontade dos cidadãos semelhante àquela que se consagrava no Estado-cidade da Grécia. Até mesmo a imaginação se perturba em supor o tumulto que seria congregar em praça pública toda a massa do eleitorado, todo o corpo de cidadãos, para fazer as leis, para administrar (BONAVIDES, 2001, p. 352).
O homem da democracia direta, que foi a democracia grega, era integralmente político. O homem do Estado moderno é homem apenas acessoriamente político, ainda nas democracias mais aprimoradas, onde todo um sistema de garantias jurídicas e sociais fazem efetiva e válida a sua condição de “sujeito” e não apenas “objeto” da organização política (BONAVIDES, 2001, p. 353).
O homem contemporâneo, diante de um mercado movido pelo consumo, precisa preocupar-se em prover, de imediato, às necessidades materiais de sua existência e de seus dependentes. Não se pode exigir que esse sujeito comum, que não teve acesso a uma educação de qualidade, voltada à formatação de cidadãos ativos, construa voluntariamente interesse para os problemas de governo e para análise e interação com os relevantes e complexos temas relativos à organização política e jurídica da sociedade.