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Aspectos legais e jurisprudenciais da duplicata virtual

20/07/2017 às 15:40
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A prática comercial e a crescente informatização das transações comerciais vêm substituindo os títulos de crédito materializados em papel pelos eletrônicos, o que se verifica com as duplicatas virtuais com respaldo legal e jurisprudencial.

1 Conceitos preliminares

1.1 Do princípio da cartularidade dos títulos de crédito

Regra geral, é indispensável que o credor de um título de crédito se encontre na posse da cártula, para que exerça os direitos nela contidos e representados.

Assim sendo, para promover a execução judicial de título de crédito deve-se instruir a petição inicial com o original do título (art. 798, I, a, do CPC) ou ao menos com cópia autenticada do título de crédito se estiver juntado em outro processo, consoante art. 9º, parágrafo único, da Lei 11.101/2005 (Lei de Falências).

“Os títulos e documentos que legitimam os créditos deverão ser exibidos no original ou por cópias autenticadas se estiverem juntados em outro processo.”

É certo que “a necessidade da cártula original evita o enriquecimento sem causa de oportunistas, como quando alguém já foi credor daquele título, mas agora não é mais por tê-lo transferido a outra pessoa. Se fosse possível ajuizar a execução com uma cópia do título, o original poderia continuar circulando, prejudicando terceiros de boa-fé” (TEIXEIRA, 2016, p. 129).

Nada obstante, a informalidade nos negócios comerciais trazem exceções ao princípio da cartularidade. Por exemplo, a Lei 5.474 (Lei das Duplicatas) de 1968 já admitia a execução judicial de duplicata sem a sua apresentação pelo credor (art. 15, § 2º, Lei 5.474).

Adicionalmente, a crescente informatização das práticas comerciais, notadamente constatada no comércio eletrônico globalizado (e-commerce), não se coaduna com a ideia de posse do título de crédito, que não mais é materializado em documento físico, isto é, uma cártula.

Nesse passo de desmaterialização, o Código Civil (Lei 10.406) de 2002 traz a possibilidade de emissão de título de crédito eletronicamente (art. 889, §3º, da Lei 10.406/2002):

“O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo”.

Tal emissão de título de crédito, feita eletronicamente, necessita de certificação digital, consoante teor do Enunciado nº 462 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na V Jornada de Direito Civil, confira-se:

“462 – Os títulos de crédito podem ser emitidos, aceitos, endossados ou avalizados eletronicamente, mediante assinatura com certificação digital, respeitadas as exceções previstas em lei.”

Nessa perspectiva, utilizando assinatura e certificação digital, regulamentadas pela Medida Provisória 2.200-2/2001, em tese, é possível realizar o aceite, o endosso, o aval e de títulos de crédito.

Acerca da desmaterialização dos títulos de crédito e da mitigação do princípio da cartularidade, cumpre ainda trazer o seguinte ensinamento (RAMOS, 2013, pp. 436-437):

“A doutrina tem referido a esse processo como a desmaterialização dos títulos de crédito, que acaba por contestar, de certa forma, o princípio da cartularidade, dada a proliferação dos títulos em meio magnético, sem que eles sejam, enfim, materializados num documento em meio físico. A desmaterialização dos títulos de crédito, enfim, por permitir a criação de títulos não cartularizados, ou seja, não documentados em papel, cria situações em que, por exemplo, o credor pode executar um determinado título de crédito sem a necessidade de apresentá-lo em juízo. É o que ocorre com as chamadas duplicatas virtuais, muito comuns na praxe mercantil, as quais podem ser executadas mediante a apresentação, apenas, do instrumento de protesto por indicações e do comprovante de entrega das mercadorias (art.15, §2º, da Lei 5.474/1968).”

1.2 Da duplicata

A duplicata é um título de crédito causal, facultativamente emitido pelo empresário com base em nota fiscal representativa de compra e venda ou nota de prestação de serviços (FAZZIO JÚNIOR, 2016, p. 381).

A referida causalidade da duplicata mercantil decorre de que sua emissão somente é possível para representar crédito decorrente de determinada causa prevista por lei (COELHO, 2016, p. 187).

Observe-se que o devedor principal é o sacado na duplicata, que é o comprador, sendo o vendedor ao mesmo tempo o emissor (sacador) e beneficiário – credor (TEIXEIRA, 2016, p. 151).

O regime jurídico da duplicata é a lei 5.474/68, denominada Lei das Duplicatas, aplicando-se a disciplina das letras de câmbio contida na Lei Uniforme de Genebra no que tange à emissão, circulação e pagamento (art. 25 da Lei 5.474), bem como os princípios da cartularidade, literalidade e autonomia, além dos institutos cambiários do aval, do aceite e do protesto (TEIXEIRA, 2016, p.151).

Nesse aspecto, cabe ressaltar que “a duplicata mercantil é título de aceite obrigatório, ou seja, a vinculação ao título como devedor principal independe da vontade do sacado”, sendo certo que “a duplicata pode ser protestada por falta de aceite, de devolução ou de pagamento (Lei 9.492/97, art. 21)” (COELHO, 2016, pp. 188-189).

Além disso, é obrigatória a extração de fatura que dá origem às duplicatas nas vendas com prazo de pagamento superior a 30 dias, sendo facultativa para vendas de prazo menor (art. 1º da Lei das Duplicatas).

No que tange ao protesto da duplicata, como regra, é necessário o título original para o protesto (TEIXEIRA, 2016, p. 152), sendo certo que, acaso o sacado (comprador) não restitua o título ao sacador (vendedor), o protesto poderá ser promovido por indicações do credor fornecidas ao cartório de protesto (arts. 13, § 1º, e 15, §2º, da Lei 5.474).

Sobre esse tema, Fábio Ulhoa ensina que “trata-se de exceção ao princípio da cartularidade, porque permite o exercício de direitos cambiários sem a posse do título. No protesto feito por indicações, estas naturalmente substituem a exibição da cártula” (COELHO, 2016, p. 190).

Impende ressaltar que é um título vinculado em razão de padronização estabelecida por Resolução 102/68 do Conselho Monetário Nacional e pelo disposto no art. 27 da Lei das Duplicatas. 

Atente-se, por último, que o prazo prescricional é de 3 anos contra o sacado e seu avalista e de 1 ano contra os demais coobrigados (art. 18 da Lei 5.474).


2. Da duplicata virtual

Tendo em conta a evolução e a dinamicidade das transações comerciais, a duplicata desprendeu-se das regras disciplinadas em sua lei específica, assumindo uma dinâmica influenciada principalmente pelo desenvolvimento da eletrônica e da informática.

Essa realidade de desmaterialização das duplicatas foi identificada nos ensinamentos de Fernando Netto Boiteux, que afirma que “os empresários deixaram de emitir duplicatas em papel e passaram a emitir uma relação das duplicatas lançadas por meio eletrônico. Essa relação é conhecida como borderô, do qual constam os números das duplicatas, correspondendo tais números aos das respectivas notas fiscais-faturas” (BOITEUX, 2002, pp. 50-51).

Por seu turno, o retro mencionado borderô é remetido à instituição financeira, geralmente um banco, via internet, sendo certo que esta emite e encaminha aos sacados (devedores) um boleto bancário, para que efetuem o pagamento na rede bancária.

Se determinado boleto deixar de ser pago, o banco efetua o protesto, enviando ao cartório de protesto a indicação dos dados do título, em vez do próprio título impresso em papel ou o seu respectivo boleto bancário (BOITEUX, 2002, pp. 50-51).

Nesse diapasão, é justamente o protesto, acompanhado da prova da prestação do serviço, que assegura a exigibilidade da duplicata virtual, o que se coaduna com a orientação do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

"(..) 1. As duplicatas virtuais - emitidas e recebidas por meio magnético ou de gravação eletrônica - podem ser protestadas por mera indicação, de modo que a exibição do título não é imprescindível para o ajuizamento da execução judicial. Lei 9.492/97. 2. Os boletos de cobrança bancária vinculados ao título virtual, devidamente acompanhados dos instrumentos de protesto por indicação e dos comprovantes de entrega da mercadoria ou da prestação dos serviços, suprem a ausência física do título cambiário eletrônico e constituem, em princípio, títulos executivos extrajudiciais. 3. Recurso especial a que se nega provimento". (REsp 1024691/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 12/04/2011).

Note-se que o conteúdo no art. 15, II, da Lei nº 5.474/68 é claro ao dispor que é possível a cobrança judicial de duplicata em conformidade com o processo aplicável aos títulos executivos extrajudiciais quando a duplicata não aceita haja sido protestada, esteja acompanhada de documento hábil comprobatório da entrega e recebimento da mercadoria e o sacado não tenha, comprovadamente, recusado o aceite, no prazo, nas condições e pelos motivos previstos legalmente.

A esse respeito, vale transcrever parte do retro citado voto da Ministra Nancy Andrighi: “os usos e costumes desempenham uma relevante função na demarcação do Direito Comercial. Atualmente, os hábitos mercantis não exigem a concretização das duplicatas, ou seja, a apresentação da cártula impressa em papel e seu encaminhamento ao sacado.” (REsp 1024691/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 12/04/2011).

Além disso, não se pode perder de vista que o teor do art. 15, §2º, da Lei de Duplicatas e do art. 8, parágrafo único, da Lei 9.492 disciplinam que:

 “Processar-se-á também da mesma maneira a execução de duplicata ou triplicata não aceita e não devolvida, desde que haja sido protestada mediante indicações do credor ou do apresentante do título, nos termos do art. 14, preenchidas as condições do inciso II deste artigo”.

“Poderão ser recepcionadas as indicações a protestos das Duplicatas Mercantis e de Prestação de Serviços, por meio magnético ou de gravação eletrônica de dados, sendo de inteira responsabilidade do apresentante os dados fornecidos, ficando a cargo dos Tabelionatos a mera instrumentalização das mesmas”.

Nesse mesmo entendimento, Luiz Emygdio F. da Rosa Jr. ensina que “no caso da duplicata virtual, o título executivo extrajudicial corresponde ao instrumento de protesto feito por indicações do portador, mediante registro magnético, como permitido pelo parágrafo único do art. 8º da Lei 9.492/97, acompanhado do comprovante de entrega e recebimento da mercadoria pelo sacado” (ROSA JR., 2009, p. 759), o que se coaduna com o teor do Enunciado nº 461 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na V Jornada de Direito Civil, confira-se:

 “461 – As duplicatas eletrônicas podem ser protestadas por indicação e constituirão título executivo extrajudicial mediante a exibição pelo credor do instrumento de protesto, acompanhado do comprovante de entrega das mercadorias ou de prestação dos serviços.”

Aliás, esse é o entendimento sedimentado e consolidado no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:

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“PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. AÇÃO DE EXECUÇÃO. DUPLICATA VIRTUAL. PROTESTO POR INDICAÇÃO. CONTRATO DE SERVIÇOS EDUCACIONAIS ACOMPANHADO DO HISTÓRICO ESCOLAR. INDEFERIMENTO DA EXORDIAL. RECURSO PROVIDO. SENTENÇA CASSADA. [...]

2. A informatização das transações comerciais tem ocasionado a substituição das duplicatas materializadas em papel pelas virtuais, que são transmitidas pelo comerciante ao banco, através do computador. 2.1. É o protesto por indicação, acompanhado da prova da prestação do serviço que assegura a exigibilidade da duplicata virtual. [...]

5. Na hipótese dos autos, a duplicata devidamente protestada, acompanhada do contrato de prestação de serviços educacionais e do histórico escolar, que comprovam a existência do negócio jurídico e o serviço efetivamente prestado, possibilita que o título virtual seja executado”  (20110710230392APC, Relator: James Eduardo Oliveira, 4ª Turma Cível, DJE: 07/04/2014).

“DIREITO PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. DUPLICATA VIRTUAL. PROTESTO POR INDICAÇÃO. COMPROVAÇÃO DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. ACEITE PRESUMIDO OU TÁCITO. I. Tratando-se de duplicata virtual, mesmo ausente o título executivo extrajudicial, para aparelhar a execução é suficiente a apresentação do protesto por indicação e do recibo da entrega da mercadoria ou da prestação dos serviços, bem como que o sacado não tenha recusado o aceite pelos motivos constantes dos arts. 7º e 8º da Lei. II. Efetuados os protestos por indicação e sendo incontroversa a prestação dos serviços no importe declinado na execução, bem como permanecendo a devedora silente quando lhe foram enviadas as cobranças pela serventia competente, vislumbram-se atendidas suficientemente as exigências legais para o reconhecimento da executividade dos títulos extrajudiciais. (...)”. (20141010019405APC, Relator: José Divino De Oliveira, 6ª Turma Cível, DJE: 29/09/2015).


3. Conclusão

Pode-se concluir que, de fato, o princípio da cartularidade dos títulos de crédito tende a ser amplamente mitigado, em vista dos crescentes avanços tecnológicos, notadamente constatados no comércio eletrônico globalizado (e-commerce). Os meios digitais não se coadunam com a ideia de posse do título de crédito, que raramente é materializado em documento físico (papel), sendo certo que a certificação digital garante a segurança da transação comercial intermediada por título de crédito eletrônico.

As duplicatas virtuais, por sua vez, são exemplo de título de crédito eletrônico em que é possível sua emissão e protesto sem a posse material do título, entendimento que, conforme foi verificado no presente estudo, encontra-se consolidado legalmente e na jurisprudência tanto no Tribunal de Justiça do Distrito Federal quanto no Superior Tribunal de Justiça.

Assim sendo, é possível o ajuizamento de execução de duplicata virtual, desde que devidamente acompanhada dos instrumentos de protesto por indicação e dos comprovantes de entrega da mercadoria e da prestação do serviço, o que garante a executividade do título eletrônico. 


4.  Referências bibliográficas

BITTAR, Eduardo C. B. Metodologia da pesquisa jurídica. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BOITEUX, Fernando Netto. Títulos de crédito (em conformidade com o novo Código Civil). São Paulo: Dialética, 2002.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 03 de julho de 2017.

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___. Lei 9.492, de 10 de setembro de 1997. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9492.htm >. Acesso em: 03 de julho de 2017.

___. Lei 9.973, de 29 de maio de 2000. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9973.htm>. Acesso em: 03 de julho de 2017.

___. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 03 de julho de 2017.

___. Lei 11.076, de 30 de dezembro de 2004. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/L11076.htm>. Acesso em: 03 de julho de 2017.

 ___. Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm>. Acesso em: 03 de julho de 2017.

COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial: direito de empresa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

ENUNCIADO Nº 461 do CJF, da V Jornada de Direito Civil. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/422>. Acesso em: 03 de julho de 2017.

ENUNCIADO Nº 462 do CJF, da V Jornada de Direito Civil. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/425>. Acesso em: 03 de julho de 2017.

FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Manual de direito comercial. São Paulo: Atlas, 2016.

KÖCHE, José Carlos. Fundamentos de metodologia científica: teoria da ciência e iniciação à pesquisa. Petrópolis: Vozes, 2011.

RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial Esquematizado. São Paulo: Método, 2013.

ROSA JR., Luiz Emygdio F. Títulos de Crédito. São Paulo: Renovar, 2009.

TEIXEIRA, Tarcísio. Direito Empresarial Sistematizado: doutrina, jurisprudência e prática. São Paulo: Saraiva, 2016.

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Sobre o autor
Rodrigo Oliveira Duarte

Graduando em Direito pela Universidade de Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUARTE, Rodrigo Oliveira. Aspectos legais e jurisprudenciais da duplicata virtual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5132, 20 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58979. Acesso em: 23 abr. 2024.

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