Capa da publicação Psicopatia, culpabilidade e penas aplicáveis
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A psicopatia no sistema penal brasileiro:

uma análise da culpabilidade dos psicopatas e das penas a eles aplicadas

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PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE PARA OS PSICOPATAS E SUAS CRÍTICAS

A pena representa uma forma de intervenção do Estado, à qual este pode recorrer para tentar reduzir os atritos da convivência em sociedade e elas variam de um modelo estatal para o outro.

Com efeito, para se entender o que é pena e qual a sua finalidade, é necessário observar, primeiramente, a forma de Estado e o contexto socioeconômico do momento, haja vista que, com o decorrer dos anos, à medida que a concepção de Estado foi mudando, alterou-se também as finalidades da pena para se enquadrar a cada realidade e corresponder aos anseios da sociedade. Mas a definição de pena não é uma só a cada período.

Atualmente, no que tange a nossa realidade social e ao nosso sistema estatal, ainda são muitos os conceitos de pena. Segundo Beccaria, por exemplo, “pena é o direito de punir, fundamentado na reunião de pequenas parcelas de liberdade, cedida pelos homens, em prol da conservação e da posse do restante da mesma”.”[39]  

Já para Guimarães, pena equivale a uma “sanção legal, punição ou cominação prevista em lei, que o Estado impõe àquele que infringe norma de direito.”.[40]

Mas o fato é que, independente do conceito doutrinário, a atual finalidade da pena no Brasil é a ressocialização. Com efeito, nas palavras de Nucci, a pena busca “reeducar o delinquente, retirá-lo do convívio social enquanto for necessário, bem como reafirmar os valores protegidos pelo Direito Penal e intimidar a sociedade para que o crime seja evitado.”.[41]

Entretanto, em que pese o princípio da isonomia determinar que a pena deve ter a mesma finalidade para todos a que ela é aplicada, no que tange aos psicopatas, existe uma séria barreira para tanto, haja vista que, como já dito, eles não são capazes de assimilar os ensinamentos e finalidades da sanção punitiva, não aprendendo com suas experiências.

Com efeito, exatamente por acharem que não fazem nada de errado segundo os valores deles, já que não conhecem a sensação do que é justo ou injusto, eles repetem seus erros[42]. Segundo Hilda Morana, mais precisamente, “os psicopatas reincidem três vezes mais que os psicopatas comuns. Sendo que, para os crimes violentos, a taxa é de quatro vezes maior para os psicopatas quando comparados aos não psicopatas.”[43]. Foi o que mostrou o psicólogo americano Joe Newman num experimento em 1987.

No laboratório, havia 4 montes de cartas. Sem que os jogadores soubessem, um deles estava cheio de cartas premiadas. Ou seja: quem escolhesse aquele monte ganhava mais dinheiro e continuava no jogo. Aos poucos, porém, a quantidade de cartas boas rareava, até que, em vez de dar vantagem, escolher aquele monte passava a dar prejuízo. Pessoas comuns que participaram da pesquisa logo perceberam a mudança e deixaram de apostar nele. Psicopatas, porém, seguiram tentando obter a recompensa anterior. “Pessoas comuns mudam de estratégia quando não obtêm recompensa”, afirma o neurocientista James Blair, autor do livro The Psychopath – Emotion and the Brain (“O Psicopata –Emoção e o Cérebro”, sem edição brasileira). “Mas crianças e adultos com tendências psicopáticas continuam a ação mesmo sendo repetidamente punidos com a perda de pontos[44].

Diante desse obstáculo à aplicação da finalidade ressocializadora da pena aos psicopatas, as decisões dos magistrados muito divergem, como pôde ser verificado no tópico anterior. Com efeito, há juízes que, em vez de optarem pela aplicação da inimputabilidade (ou semi-imputabilidade) aos psicopatas, escolhem, na verdade, a penalização mais gravosa dos criminosos com pscicopatia, haja vista sua maior periculosidade. Sendo assim, na primeira fase da dosimetria da pena, chegam a aumentar o mínimo legal, ainda que o crime praticado pelo psicopata tenha sido exatamente o mesmo de uma pessoa sã[45].

No que tange ao cumprimento da pena privativa de liberdade no Brasil por criminosos psicopatas, esses sujeitos, por sua grande inteligência e capacidade de manipulação, fingem ser presidiários modelos, com o fito de obter alguns benefícios, como a progressão ou redução de pena. Entretanto, eles, de forma velada, utilizam do seu poder de persuasão para ameaçar outros presidiários, ou funcionários do presídio, promover intrigas, liderar facções criminosas e rebeliões etc[46].

Com efeito, também por seu enorme poder de simular arrependimento, os psicopatas conseguem ludibriar advogados, juízes, promotores e possuem significativa chance de conseguir sua liberdade[47]. Entretanto, devido à personalidade deles, dificilmente, reincidirão. Estima-se, inclusive, que 70% deles reincidem depois de soltos[48].

Essa realidade é ainda pior quando o psicopata é considerado semi-imputável e o juiz opta por aplicar a ele a redução de pena do parágrafo único do art. 26 do CP. Com efeito, por entender que o agente com psicopatia não é totalmente capaz quanto um criminoso comum e nem está totalmente alheio à realidade, como um doente mental em surto, alguns magistrados optam por enquadrá-lo como semi-imputáveis e acabam por reduzir a pena a ele aplicada, conforme preceitua o dispositivo legal supracitado. Entretanto, isso tem um efeito contrário ao esperado, pois, em que pese reconhecer que ao psicopata cabe um tratamento diferente daquele dispensado a um criminoso qualquer, com essa redução de pena, o individuo retorna ainda mais rapidamente ao convívio social, voltando a representar uma grave ameaça. Ora, se nem mesmo com muitos anos de prisão, o indivíduo com psicopatia consegue se recuperar, menor ainda a possibilidade disso acontecer se o cumprimento da pena for por tempo ainda menor.

Em vista disso, a solução mais plausível para o caso dos psicopatas que cometem crimes bárbaros é seu enquadramento como inimputáveis (ou semi-imputáveis) e a aplicação de uma medida de segurança, com sua consequente internação em manicômios judiciais. Não se trata, portanto, de uma liberdade, condicionada à realização de tratamento ambulatorial ou à utilização de tornozeleiras eletrônicas. Mas, na verdade, mais eficaz para uma personalidade como essa seria a internação compulsória em hospitais de custódia. 

Ademais, em que pese o valor dos bens jurídicos afrontados pelos psicopatas que cometem crimes atrozes, como é o caso dos crimes contra a vida e contra a dignidade sexual, não se pode olvidar que o psicopata continua sendo um sujeito de direitos e, como tal, merece ter resguardado seu direito à saúde, positivado no art. 6º da Constituição Federal brasileira. Assim, ainda que deva ser punido por seus delitos e afastado do convívio social, trancafiá-lo em um presídio junto a vários outros criminosos comuns, sem que se tente nenhum tratamento psiquiátrico, também representaria uma afronta a um direito básico seu.


LEI 10. 972/03 E A PROGRESSÃO DE REGIME PRISIONAL PARA OS PSICOPATAS HOMICIDAS

Em que pese a Reforma Penal de 1984 ter imposto o sistema progressivo de cumprimento de pena (positivado no art. 33, §2º, do CP, bem como no art. 112 da Lei nº 7.210/84), a Lei de Execução Penal sofreu profundas alterações, em especial no seu art. 112. O referido dispositivo dispõe que, para fins de progressão de regime de cumprimento de pena e para concessão de vários benefícios prisionais, basta a observância do requisito temporal e a apresentação de um atestado de bom comportamento carcerário, o qual pode ser emitido pelo próprio diretor da unidade prisional[49]. 

Em vista disso, constata-se que não há mais a obrigatoriedade da realização de exame criminológico nem da elaboração de um parecer pela intitulada Comissão Técnica de Classificação (CTC) para a concessão de qualquer benefício[50].

A elevação dos índices da reincidência criminal se dá justamente por isso e pela precariedade do sistema prisional, que, sequer, dispõe de profissionais capacitados e instrumental adequado e padronizado para que se avalie a personalidade dos presidiários. Isso se agrava ainda mais no caso dos psicopatas. Com efeito, conforme Andéa Beheregary, Mônica Rodrigues Cueno e Jorge Trindade[51], já existe uma ferramenta que deve ser aplicada no caso de indícios de psicopatia; o PCL-R, que, perfeitamente, faz as vezes do exame criminológico.

Ocorre, entretanto, que tal instrumento ainda não é utilizado a contento no Brasil, o que representa um grande atraso, haja vista que, segundo afirma Silva: “se tais procedimentos fossem utilizados dentro dos presídios brasileiros, certamente os psicopatas ficariam presos por muito mais tempo e as taxas de reincidência de crimes violentos diminuiriam significativamente.”[52]. 

Nesse sentido, a quinta turma do STJ, no julgamento do Habeas Corpus nº 141.640-SP (2009/0134508-4), e em observância à súmula 439 do STJ, pela qual “admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada”, decidiu pelo indeferimento de progressão para o regime semi-aberto e do livramento condicional ao apenado, tendo  em vista que o laudo pericial constatou se tratar de indivíduo com transtorno de personalidade antissocial[53].  

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Ocorre, todavia, que a referida súmula não é eficaz na redução da reincidência criminal, uma vez que não torna obrigatória a realização de exames criminológicos quando da concessão de benefícios prisionais, mas, na verdade, apenas admite sua realização a depender do caso concreto e de decisão motivada.

Destarte, ainda que cumpra sua pena sem obter progressão e nenhum benefício prisional, a realidade é que, um dia, o criminoso psicopata terá que deixar a prisão, haja vista que, no Brasil, a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XLVII, alínea “b”, não admite pena perpétua. E então, será que a partir daí o indivíduo estaria apto para retornar ao convívio social? Por tudo que se verificou acerca da reversibilidade da personalidade psicopática, sabe-se que não. Portanto, a solução que o judiciário já encontrou em um caso emblemático, foi a interdição civil mesmo após o cumprimento da pena privativa de liberdade.

Com efeito, em São Paulo, o psicopata homicida popularmente conhecido como “Chico Picadinho”, após completar os 30 anos de prisão, foi interditado civilmente. No intuito de evitar que Francisco Costa Rocha (o “Chico Picadinho”) obtivesse a liberdade e voltasse a representar sério risco à sociedade, o Ministério Público de São Paulo ajuizou ação de interdição e obteve êxito, conseguindo, cautelarmente, a internação judicial desse criminoso em uma casa de custódia e tratamento[54].

Muito mais desenvolvida e bem estruturada, a Inglaterra dispõe de um programa específico para se aplicar no caso de criminosos psicopatas que cometem crimes muito graves. De fato, em vez de aplicarem manobras e “remendos” jurídicos para a omissão legislativa, como ocorre no Brasil, na Inglaterra há o Dangerous and Severe Personality Disorder – DSPD (Programa para Pessoas com Transtorno Graves da Personalidade). Tal sistema corresponde a uma atuação conjunta dos Ministérios da Justiça e da Saúde e o sistema prisional. Por meio desse programa, os presos de alta periculosidade em decorrência de seus transtornos, depois de libertos ou mesmo no fim da pena, são acompanhados rotineiramente por funcionários do Governo para que não haja reincidência[55].

Ainda assim, caso consigam cometer novos crimes, deverão ser presos novamente, em uma cela individual de alta segurança ou em um hospital judiciário. A título de exemplo, a atenção dedicada a esse tipo de criminoso na Inglaterra é tão grande que, em um de suas principais casas de custódia, existem 5 funcionários para se dedicar a cada um dos 400 pacientes[56]. Somente em caso de melhora comprovada, pe que o sujeito pode progredir, sendo transferido para uma instituição de menor segurança ou ser liberado, desde que novamente sob a vigilância do Estado[57]. 

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Fernanda Odara Ribeiro. A psicopatia no sistema penal brasileiro:: uma análise da culpabilidade dos psicopatas e das penas a eles aplicadas . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5897, 24 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59230. Acesso em: 23 nov. 2024.

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