Capa da publicação Psicopatia, culpabilidade e penas aplicáveis
Artigo Destaque dos editores

A psicopatia no sistema penal brasileiro:

uma análise da culpabilidade dos psicopatas e das penas a eles aplicadas

Exibindo página 3 de 4
Leia nesta página:

MEDIDA DE SEGURANÇA: VANTAGENS E DESVANTAGENS

Outra forma de sanção penal imposta pelo Estado é a medida de segurança. Conforme entende Nucci, medida de segurança “ é uma espécie de sanção penal destinada aos inimputáveis e, excepcionalmente, aos semi-imputáveis, autores de um fato típico e antijurídico (...), devendo ser submetidos a internação ou a tratamento ambulatorial”[58].

Ademais, essa forma de sanção também se assemelha à pena, tendo em vista que também restringe um bem jurídico, no caso, a liberdade de alguém. Entretanto, ainda que Mirabete também reconheça essa limitação de direito e o consequente caráter de pena da medida de segurança, para ele, a finalidade desse tipo de pena é diferente do fim a que se propõe a pena restritiva de liberdade propriamente dita. Assim, a medida de segurança tem finalidade preventiva, “no sentido de preservar a sociedade da ação de delinquentes temíveis e de recuperá-los com tratamento curativo.”[59].

Ocorre, entretanto, que os magistrados acabam por não aplicar esse tipo de medida aos psicopatas pelo fato de, até então, não se ter notícias acerca da possibilidade de cura e tratamento da psicopatia.

Com efeito, como se sabe, a colaboração do paciente é de insólita relevância para a eficácia da psicoterapia e, em vista disso, no que tange aos psicopatas, as chances de sucesso são ainda menores, já que não possuem desejo algum de mudança de comportamento.

No entanto, importa mencionar que, se os tratamentos forem aplicados ainda na infância do indivíduo, torna-se possível obter êxito na modificação das suas atitudes, sendo possível ensiná-lo a, controlando sua agressividade, atender suas necessidades sem causar mal à sociedade[60].

Entretanto, após a idade adulta, principalmente depois da prática de crimes bárbaros, não há mais que se falar em tratamentos preventivos. Mas, como já foi tratado, as terapias biológicas (medicamentosa) e psicoterapias de forma geral, via de regra, não se mostram eficientes. Na verdade, segundo Hare, elas podem é agravar ainda mais a situação[61]:

A maioria dos programas de terapia faz pouco mais do que fornecer ao psicopata novas desculpas e racionalizações para seu comportamento e novos modos de compreensão da vulnerabilidade humana. Eles aprendem novos e melhores modos de manipular as outras pessoas, mas fazem pouco esforço para mudar suas próprias visões e atitudes ou para entender que os outros têm necessidades, sentimentos e direitos. Em especial, tentativas de ensinar aos psicopatas como “de fato sentir” remorso ou empatia estão fadadas ao fracasso.

Entretanto, não se pode consolidar essa ideia de que a cura dos psicopatas é inatingível e desistir de encontrar tratamento. Menos ainda se pode trancafiar um indivíduo com transtorno de personalidade antissocial em uma cela comum, com vários outros criminosos que não compartilham do mesmo problema, devendo-se sopesar o que seria mais prejudicial à sociedade; um psicopata isolado em um hospital de custódia, apenas com outros que sofrem do mesmo transtorno, recebendo alguma forma de tratamento para retornar ao convívio em sociedade, tendo garantido seu direito básico á saúde, ou um psicopata em um presídio, manipulando muitos outros criminosos e podendo receber benefícios prisionais ou ser liberto muito antes do previsto? 


PROJETOS DE LEI 6.858/10 E 3/07: ALTERAÇÃO DA LEI 7.210/84

Por todo o exposto neste capítulo, é facilmente constatado que aos psicopatas não é dispensada nenhuma atenção específica da doutrina jurídica, do Legislativo e nem do Judiciário. Na verdade, nem mesmo os estudiosos brasileiros da psicologia têm trabalhado satisfatoriamente esse tema.

Como consequência dessa lacuna legislativa, constata-se também uma resposta muito vaga e divergente do Judiciário. Com efeito, como não há norma que preveja a obrigatoriedade de se realizar exames em criminosos para que possa ser constatada a psicopatia ou que fixe certa conduta do judiciário nos casos que envolvem psicopatas, os magistrados são obrigados a se basear pela legislação comum, o que, no entanto, é extremamente nocivo não só a eles, mas a toda a sociedade, haja vista que, definitivamente, não se está diante de um criminoso comum. Assim, pode-se dizer que a psicopatia é um dos casos difíceis e mal resolvidos do Direito brasileiro, conforme lembra Noel Struchiner[62]:

Quando as regras, tomadas abstratamente ou no momento de aplicação, não são capazes de resolver satisfatoriamente um caso concreto difícil ou insólito.

Destarte, a necessidade de preencher essas lacunas relativas aos psicopatas se justifica ainda mais pelo fato de ser necessária a previsão de uma forma de punição específica para eles, já que sua cura, pelo menos até os dias atuais, inexiste. Na verdade, de acordo com Edens, o que não há são estudos, dados técnicos e experiências suficientes acerca dos tratamentos psicológicos com psicopatas, e, por conta disso, até o momento, não há indícios de reversibilidade da psicopatia[63]. Por fim, se é por omissão dos estudiosos da área ou não, o fato é que, pelo menos até o momento, não se pode afirmar que existe tratamento para a psicopatia.  

Desta feita, com o fito de solucionar essas omissões legislativas, há dois Projetos de Lei sobre esse tema tramitando atualmente. Com efeito, o primeiro data de 2007, foi proposto pelo deputado federal Carlos Lapa, PSB – Pernambuco, e prevê a criação de uma medida de segurança de caráter perpétuo. Assim, vejamos:

Medida de segurança social perpétua para os psicopatas que cometem estupro, atentado violento ao pudor, seguidos de morte contra criança ou adolescente; e matem, sequencialmente, e cuja ação indique certa constância nos procedimentos, meios e fins, e que também pratiquem ações que causem terror e intranquilidade população[64].

Com base nesses indivíduos, esse PL sugere que o art. 26 do Código Penal passe a ter a seguinte redação:

São isentos de pena o psicopata e o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.[65] 

Assim, resta claro que essa proposta de lei, em que pese distinguir os psicopatas dos doentes mentais e das pessoas com desenvolvimento mental incompleto ou retardado, também os coloca nessa mesma categoria. Considero adequado esse aspecto, haja vista que, por tudo que foi exposto nos capítulos anteriores, uma pessoa com psicopatia, apesar de não ser tecnicamente um doente mental e, mesmo tendo a mente totalmente desenvolvida, não é totalmente “normal”, não devendo ser tratado como um criminoso comum.

Com base nisso, a solução encontrada para os psicopatas, segundo o Projeto de Lei em comento, foi a aplicação da inimputabilidade e da medida de segurança perpétua. Pois bem, em que pese acreditar que seria essa a saída mais segura e eficaz para os casos que envolvem psicopatas homicidas, já que eles são considerados, até então, como irrecuperáveis, essa proposta é nitidamente inconstitucional.

Na sua justificativa, o deputado alega que o art. 5º, inciso XLVII, alínea “a” da Constituição Federal, segundo o qual, não haverá penas de caráter perpétuo no Brasil, não foi afrontado por sua proposta, haja vista que “pena”, segundo o Código Penal, tem como destinatário apenas os imputáveis. Assim, de acordo com ele, a nossa CF veda a pena de morte e de prisão perpétua para os imputáveis, mas não a medida de segurança social de caráter perpétuo[66].

Tal argumento, entretanto, é absurdo, haja vista que o art. 5º, inciso XLVII, alínea “a” da CF é uma norma de direito fundamental e, como tal, segundo vasta jurisprudência do STF, inclusive, não pode ser interpretada restritivamente. Ademais, a medida de segurança também implica privação do direito de liberdade do indivíduo e, desse modo, não há como não ser encarada como pena, e sua caracterização como perpétua, portanto, a colocaria como inconstitucional.

Com efeito, no que tange à aplicação da medida de segurança pelos tribunais superiores, estes, por muito tempo, entenderam que tal medida poderia durar por tempo indeterminado, enquanto persistisse a periculosidade do indivíduo, conforme se nota neste julgado:

HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. RÉU CONSIDERADO INIMPUTÁVEL.APLICAÇÃO DE MEDIDA DE SEGURANÇA CONSISTENTE EM INTERNAÇÃO. ALEGAÇÃO DE PRESCRIÇÃO IMPROCEDENTE. PRAZO PRESCRICIONAL INTERROMPIDO PELO INÍCIO DO CUMPRIMENTO DA MEDIDA DE SEGURANÇA. INTERNAÇÃO QUE DEVE DURAR ENQUANTO NÃO CESSADA A PERICULOSIDADE DO INIMPUTÁVEL. PARECER DO MPF PELA CONCESSÃO DO WRIT. ORDEM DENEGADA, PORÉM.

1.   O início do cumprimento da medida de segurança interrompe a contagem do prazo prescricional (HC 113.459/RS, Rel. Min. JANE SILVA, DJe 10.11.2008).

2.   Nos termos da orientação firmada nesta Corte, a internação do inimputável deve durar enquanto não cessada a sua periculosidade.

3.   O MPF manifestou-se pela concessão do writ.

 4. Ordem denegada.[67]

Ocorre, entretanto, que já é entendimento atualmente consolidado no STJ e também há precedentes no STF no sentido de a medida de segurança não poder ser aplicada por tempo indeterminado. Inclusive, há súmula nesse sentido: “O tempo de duração da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado.”.[68]

O outro projeto, esse sim juridicamente aplicável, data de 2010 e é de autoria do deputado federal Marcelo Itagiba, PSDB – RJ[69]. Ele propôs alteração na Lei de Execução Penal, no sentido de criar uma comissão técnica, independente da administração prisional, para que seja obrigatória a realização de exame criminológico em psicopata condenado à pena privativa de liberdade, como requisito obrigatório para concessão de benefícios, como progressão de regime, e também da liberdade. Ademais, esse projeto prevê ainda que tal exame seja realizado por equipe técnica independente da administração prisional, haja vista a necessidade de a comissão técnica não estar vinculada ou subordinada aos diretores ou responsáveis pelos presídios. Destarte, uma última previsão desse Projeto de Lei é a de que o cumprimento da pena pelo psicopata ocorra separadamente dos presos comuns.

Com efeito, sabe-se que inexiste no sistema prisional brasileiro um procedimento de diagnóstico para a psicopatia no que tange à concessão de benefícios, redução de penas ou progressões. Nesse sentido, Ana Beatriz faz uma oportuna comparação entre o caso brasileiro e o norte-americano[70]:

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Se tais procedimentos fossem utilizados dentro dos presídios brasileiros, certamente os psicopatas ficariam presos por muito mais tempo e as taxas de reincidência de crimes violentos diminuiriam significativamente. Nos países onde a escala Hare (PCL) foi aplicada com essa finalidade, constatou-se uma redução de dois terços das taxas de reincidência nos crimes mais graves e violentos. Atitudes como essas acabam por reduzir a violência na sociedade como um todo.(op. cit.)

De fato, da forma em que se encontra atualmente, a Lei de execução Penal não pode ser aplicada aos psicopatas como a qualquer outro criminoso, haja vista que as condições não são as mesmas. Destarte, já tivemos um grande exemplo disso[71]:

Um caso que exemplifica a importância de medidas com as descritas acima é o de Francisco Costa Rocha, mais conhecido como “Chico Picadinho”, autor de dois dos crimes de maior repercussão da história policial brasileira. Em 1966, Francisco, que até então parecia ser uma pessoa normal, matou e esquartejou a bailarina Margareth Suida em seu apartamento no centro de São Paulo. Chico foi condenado a 18 anos de reclusão por homicídio qualificado e mais dois anos e seis meses de prisão por destruição de cadáver. Em junho de 1974, oito anos depois de ter cometido o primeiro crime, Francisco foi libertado por bom comportamento. No parecer para concessão de liberdade condicional feito pelo então Instituto de Biotipologia Criminal constava que Francisco tinha “personalidade com disturbio profundamente neurótico”, excluindo o diagnóstico de personalidade psicopática. No dia 15 de outubro de 1976, Francisco matou Ângela de Souza da Silva com os mesmos requintes de crueldade e sadismo do seu crime anterior. Chico foi condenado a trinta anos de reclusão e permanece preso até hoje.

Assim, entre as poucas soluções até então encontradas, o Projeto de Lei 6858/10 parece ser a mais adequada. Com efeito, pelos motivos já expostos nos tópicos anteriores, o enquadramento dos psicopatas como imputáveis e sua consequente penalização como um criminoso comum ou ainda de forma mais gravosa, não é melhor alternativa.

Do mesmo modo, a semi-imputabilidade, com consequente redução da pena restritiva de liberdade, é uma solução que tem efeito contrário ao esperado, haja vista que a saída prematura do presídio, além de gerar um sentimento de impunidade, acaba por favorecer a reincidência.

Já a aplicação da inimputabilidade ou da semi-imputabilidade, com substituição da pena restritiva de liberdade por medida de segurança (o que fica a critério do magistrado), da forma como esta é normatizada atualmente, não é a melhor opção, tendo em vista que o art. 98 do CP[72] apenas estabelece critério temporal mínimo, mas não condiciona a extinção da medida de segurança à realização de um exame criminológico, o que seria mais acertado. Afinal, ainda que não haja dados que comprovem a capacidade de recuperação de um psicopata, afastá-lo do convívio social, fornecendo-lhe alguma forma de tratamento com profissionais especializados e em um ambiente exclusivo para eles, para que não possam manipular os criminosos comuns, seria a única solução viável para uma situação tão atípica e complexa, como a deles. Ocorre, entretanto, que falta ao Brasil estrutura para a efetivação desse projeto de lei, tanto em termos financeiros, quanto de pessoal.

De fato, conforme pudemos verificar ao longo desse estudo, o Direito Penal brasileiro ainda é bastante rudimentar no que tange aos criminosos psicopatas. Primeiramente, são escassos os estudos e pesquisas sérias sobre a temática. Talvez seja porque as faculdades e universidades se abstenham de estudar tais indivíduos, por ser de praxe na sociedade, mesmo sabendo da existência de tais indivíduos, preferir ignorar a necessidade de qualquer diferenciação entre eles.

Com efeito, não há exames padronizados no Sistema Penitenciário Brasileiro para a avaliação da personalidade do preso e a consequente previsibilidade de reincidência criminal. Na verdade, apenas em 2004, é que a psiquiatra Hilda Morana, em sua tese de doutorado traduziu a Escala Hare, adaptando-a á realidade brasileira. Entretanto, ela ainda não vem sendo aplicada a contento[73]:

Nesse sentido, a escala PCL . R (Psychopathy Checklist Revised), de autoria de Robert D. Hare, foi tema da tese de doutorado da psiquiatra Hilda Morana, defendido na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. No trabalho, a autora buscou identificar o ponto de corte da versão brasileira, ou seja, a partir de que pontuação um sujeito pode ser considerado psicopata, tornando a escala apta para utilização em contexto nacional, sendo sua venda recentemente permitida pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP). O PCL . R, que é o primeiro exame padronizado exclusivo para o uso no sistema penal do Brasil, pretende avaliar a personalidade do preso e prever a reincidência criminal, buscando separar os bandidos comuns dos psicopatas. A autora defende em sua tese que não é o tipo de crime que define a probabilidade de reincidência, e sim a personalidade de quem o comete. Assim, os estudos visando à adaptação e validação desse instrumento para a população forense brasileira, bem como sua comercialização para os profissionais da área, há muito urgiam ser viabilizados no Brasil (...)  

Uma segunda causa da incipiência sobre o tema no Brasil é a falta de capacitação profissional de peritos psiquiatras capazes de qualificar um indivíduo como psicopata. A título de exemplo, como já mencionado nesse trabalho, a Escala PCL-R de Hare é um instrumento de grande precisão, mas precisa ser manuseada por profissionais com conhecimentos.

Entretanto, ainda que existisse tal capacitação e investimento em pesquisas sobre o tema, da mesma forma, isso continuaria influenciando pouco nos julgamentos dos juízes. Assim, mesmo que adequadamente diagnosticado como psicopata, pelo que constatamos da pesquisa jurisprudencial supracitada, muitos juízes entendem pelo enquadramento do indivíduo com psicopatia como semi-imputável, aplicando a redução de pena constante no art. 26, parágrafo único do Código Penal. E ainda há aqueles que insistem até no fato de ser a psicopatia uma agravante, devendo ser aplicadas aos psicopatas penas mais severas que o criminoso “comum”.

Outrossim, na realidade socioeconômica na qual vivemos atualmente, em que não são bem estruturados nem mesmo os presídios – onde cumprem pena a grande maioria dos criminosos –, não se pode esperar muito dos manicômios judiciários. Com efeito, em um país em que falta até algodão nos hospitais, não há que se falar, por exemplo, na compra de máquinas de ressonância, em sua maioria importadas, para análise cerebral do sujeito com indícios de psicopatia. Dessa forma, apesar de o projeto de lei apresentado em 2010 por Marcelo Itagiba ser o mais adequado juridicamente, infelizmente, sua aplicação ainda é utópica para realidade econômica em que o país se encontra.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Fernanda Odara Ribeiro. A psicopatia no sistema penal brasileiro:: uma análise da culpabilidade dos psicopatas e das penas a eles aplicadas . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5897, 24 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59230. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos