Resumo: o presente artigo visa contextualizar os leitores sobre a recente e inovadora categoria de dano criada pela doutrina na seara consumerista e analisar suas principais características sob um viés crítico, pautado principalmente nos entendimentos dos Tribunais superiores e estaduais e nas vozes dos principais expoentes sobre o tema, abordando inclusive as controvérsias existentes sobre essa nova espécie de dano indenizável (ou não).
Palavras-chaves: direito do consumidor; perda do tempo útil/livre; dano moral; nova categoria de dano.
1. Introdução
Não há dúvidas de que hoje vivemos dentro de uma sociedade de consumo em massa, que descarrega em cima de todas as pessoas- considerados sempre como consumidores em potencial- uma carga enorme de publicidade, que pode vir de maneiras sutis e até imperceptíveis- dentro dos produtos consumidos por um ator num capítulo de uma novela ou um filme; uma foto aparentemente despretensiosa de uma pessoa famosa postada nas redes sociais usando determinada marca, comendo determinado alimento ou indo a determinado local- ou de maneira escancarada, como ocorre nos comerciais de TV, panfletos e outdoors espalhados por qualquer rua habitável por seres humanos.
A verdade é que a sociedade pós-revolução industrial não mais se contenta com o consumo necessário apenas à subsistência do indivíduo. Cada vez mais somos usados pelo modelo capitalista de produção como forma de manutenção e incremento dos lucros das grandes empresas, que não mais se propõem em vender os bens de consumo necessários a uma vida normal, sempre lançando novos modelos e versões de produtos e serviços que não necessitariam tão cedo de uma atualização de suas características.
E nós, seres humanos, falhos e suscetíveis, ficamos a mercê das grandes empresas capitalistas, que assim nos induzem ao consumo em massa de produtos que ou não precisamos ou não podemos pagar, mas mesmo assim nos fazem sentir/desejar tê-los, cabendo às agências publicitárias o grande papel de fomentar a ilusão e o desejo nos consumidores em potencial por meio de comerciais criativos, engraçados e até cativantes, mas que tem como função principal muitas vezes imperceptíveis aos mais inocentes, de captar a real necessidade de qualquer ser humano e nos fazer acreditar que chegaremos nela com a aquisição de determinado produto ou serviço: a tão sonhada e buscada felicidade.
Sendo assim, se, de um lado, os fornecedores obtém lucros estrondosos dentro dessa sociedade de consumo em massa criada e mantida por eles próprios, nada mais justo do que quem tenha o bônus, arque com o ônus de indenizar todos os danos causados por seus produtos ou serviços colocados à disposição do consumidor no mercado de consumo: danos morais, materiais, ambientais e quaisquer outros danos que a doutrina, legisladores, operadores do direito e a jurisprudência dos tribunais vierem a criar e entenderem passíveis de indenização.
2. O tempo livre como bem jurídico indenizável
Para além dos superendividamentos, empréstimos para pagar os custos de outros empréstimos, juros exorbitantes e outras incontáveis lástimas decorrentes de uma sociedade de consumo em massa, temos também na atual conjuntura das cidades urbanas de todo planeta a falta de tempo livre como principal reclamação dos trabalhadores em geral, que são meras engrenagens nessa máquina patriarcal moderna chamada capitalismo.
Não existe mais tempo para pais que desejam brincar com seus filhos, buscá-los na escola, comparecer a reuniões de condomínio ou simplesmente tempo para não fazer nada. Todo o tempo (ou quase todo) é gasto com trabalho, seja em casa, nas ruas, em escritórios ou utilizado para fins de aprimorar os conhecimentos com cursos e estudo, buscando sempre uma melhor qualificação no mercado de trabalho, almejando sempre estar bem colocado profissionalmente e assim receber um bom salário para poder arcar com os desejos de consumo incrustados em nossa mente e de nossa família a cada esquina que passamos.
O tempo para o lazer, para os filhos, para a família, amigos ou para o ócio (que também tem a sua importância, sim!) ficou curto ou sequer existe, tornando-se, portanto, um bem escasso, em falta no mercado, ao contrário de todas as versões quase que mensais do celular da moda, que jamais deixará de existir em qualquer loja que pretenda ter consumidores fiéis.
Por isso, o tempo livre deve passar a ser considerado um bem jurídico, assim como a vida, a integridade física, a saúde, a moradia, entre outros. Bem jurídico este de tamanha relevância nos dias atuais, em que a carga de trabalho e de stress é tão grande que a parcela de tempo no dia, na semana ou no mês que se tenha para poder ser utilizada da melhor forma que traga paz, serenidade, descanso ou simplesmente não fazer nada deve ser considerada como um bem de extrema importância para a manutenção da sanidade mental da sociedade em geral.
E, na qualidade de bem jurídico, o tempo livre deve ser palpável e indenizável assim como os demais bens jurídicos, caso sofra alguma violação por qualquer outro particular ou pessoa jurídica, devendo ser considerado ato ilícito tudo aquilo que retire do indivíduo o direito de gozar como bem quiser o tempo que dispõe para ser utilizado para lazer, família e amigos.
3. A nova modalidade de dano indenizável
A teoria da perda do tempo livre ou útil, também chamada de teoria do desvio produtivo do consumidor foi criada recentemente pela doutrina consumerista como uma nova espécie de dano indenizável economicamente, ao lado dos danos morais e materiais. Percebeu-se que quando o consumidor se depara com problemas causados pelos próprios fornecedores deste mercado de consumo em massa que estamos quase que obrigatoriamente inseridos, demanda-se um desperdício de tempo, em que o consumidor é obrigado a se afastar de seus afazeres cotidianos para buscar a solução do problema.
O desvio produtivo caracteriza-se quando o consumidor, diante de uma situação de mau atendimento, produtos ou serviços defeituosos ou não prestados/entregues, precisa desperdiçar o seu tempo e desviar seus esforços de uma atividade necessária ou por ele preferida para tentar resolver um problema criado pelo fornecedor. E esse tempo gasto em problema de consumo deve ser indenizado, da mesma forma que os danos materiais ou morais também demandam uma indenização.
Importa salientar que para a referida teoria, não é toda e qualquer perda de tempo que enseja o caráter indenizatório, mas apenas aquela abusiva, desrespeitosa e intolerável, já que sabemos que existem situações do convívio cotidiano, ínsito à vida em sociedade, em que existe o gasto normal de determinado tempo no desempenho de atividades absolutamente normais e corriqueiras.
Nos dizeres de André Andrade:
“Muitas situações da vida cotidiana nos trazem a sensação da perda de tempo: o deslocamento entre a casa e o trabalho, as filas para pagamento em bancos, a espera de atendimento em consultórios médicos e tantas outras obrigações que nos absorvem e tomam um tempo que gostaríamos de dedicar a outras atividades. Essas são situações que devem ser toleradas, porque, evitáveis ou não, fazem parte da vida em sociedade. O mesmo não se pode dizer de certos casos de demora no cumprimento de obrigação contratual, em especial daqueles em que se verifica desídia, desatenção ou despreocupação dos obrigados morosos, na grande maioria das vezes, pessoas jurídicas, fornecedoras de produtos ou serviços, que não investem como deveriam no atendimento de seus consumidores, ou que desenvolvem práticas abusivas, ou, ainda, que simplesmente vêem os consumidores como meros números de sua contabilidade.”[1]
Devem ser consideradas intoleráveis as situações em que os consumidores, que já adquiriram e efetuaram o pagamento do produto ou serviço ou se obrigaram a tanto, serem compelidos a sair de sua rotina habitual e perder seu tempo disponível para tentar- e muitas vezes não conseguir- solucionar problemas causados por atos ilícitos ou condutas descuidadas, abusivas ou desrespeitosas de fornecedores, dos quais muitos sequer possuem canais de comunicação com o consumidor a fim de facilitar o recebimento de reclamações ou para prestar informações solicitadas pelos consumidores.
O consumidor observa seus direitos serem desrespeitados diuturnamente por fornecedores que não cumprem com o seu dever de lisura, correção e probidade previstos expressamente no Código de Defesa do Consumidor, gerando a perda de um tempo muito caro àqueles que pouco dele dispõem, devendo ser compensado de alguma forma.
O tempo é hoje um bem jurídico e só o seu titular pode dele dispor. Quem injustificadamente se apropria deste bem causa lesão que ultrapassa o mero aborrecimento cotidiano, sendo, passível, portanto, de indenização valorada economicamente.
As palavras do Desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ilustram bem essa prática:
“O tempo, pela sua escassez, é um bem precioso para o indivíduo, tendo um valor que extrapola sua dimensão econômica. Por isso, afigura-se razoável que a perda desse bem, ainda que não implique prejuízo econômico ou material, dá ensejo a uma indenização. A ampliação do conceito de dano moral, para englobar situações nas quais um contratante se vê obrigado a perder seu tempo livre em razão da conduta abusiva do outro, não deve ser vista como um sinal de uma sociedade que não está disposta a suportar abusos”.
Alguns exemplos de situações que ensejam um desperdício injusto e ilegítimo do tempo útil do consumidor são elencadas por Marcos Dessaune e merecem serem aqui reproduzidas:
“Enfrentar uma fila demorada na agência bancária em que, dos 10 guichês existentes, só há dois ou três abertos para atendimento ao público; ter que retornar à loja quando não se é direcionado à assistência técnica autorizada ou ao fabricante para reclamar de um produto eletrônico que já apresenta problema alguns dias ou semanas depois da compra; telefonar insistentemente para o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) de uma empresa, contando a mesma história várias vezes, para tentar cancelar um serviço indesejado ou uma cobrança indevida, ou mesmo para pedir novas providências acerca de um produto ou serviço defeituoso renitente, mas repetidamente negligenciado; levar repetidas vezes à oficina, por causa de um vício renitente, um veículo que frequentemente sai de lá não só com o problema original intacto, mas também com outro problema que não existia antes; ter a obrigação de chegar ao aeroporto com a devida antecedência e depois descobrir que precisará ficar uma, duas, três horas ou mais aguardando desconfortavelmente pelo voo atrasado, algumas vezes até dentro do avião, sem obter informações da empresa responsável tampouco assistência material que a ela compete... [...]” [2]
4. Legislação aplicável
No âmbito legislativo, o tempo e o modo como o consumidor deve ser atendido é disciplinado pelo Decreto nº 6.523/08 (Lei do SAC), que regulamenta o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90).
O aludido decreto dispõe, especificamente, sobre: (i) seu âmbito de aplicação; (ii) acessibilidade do consumidor ao serviço; (iii) qualidade do atendimento; (iv) acompanhamento das demandas pelo consumidor; (v) procedimento para resolução das demandas; (vi) pedido de cancelamento do serviço. O que a leitura desse diploma nos permite constatar é que a celeridade no atendimento ao consumidor é uma de suas tônicas.
Ainda acerca do tema, a normatização do tempo de espera em ligações telefônicas para o serviço de atendimento ao consumidor (SAC) em serviços públicos regulados através do citado decreto e da Portaria 2.014/08 do Ministério da Justiça é um reflexo desta teoria, senão vejamos:
Art. 4o O SAC garantirá ao consumidor, no primeiro menu eletrônico, as opções de contato com o atendente, de reclamação e de cancelamento de contratos e serviços.
§ 1o A opção de contatar o atendimento pessoal constará de todas as subdivisões do menu eletrônico.
§ 2o O consumidor não terá a sua ligação finalizada pelo fornecedor antes da conclusão do atendimento.
§ 3o O acesso inicial ao atendente não será condicionado ao prévio fornecimento de dados pelo consumidor.
§ 4o Regulamentação específica tratará do tempo máximo necessário para o contato direto com o atendente, quando essa opção for selecionada.
Art.1º O tempo máximo para o contato direto com o atendente, quando essa opção for selecionada pelo consumidor, será de até 60 (sessenta) segundos, ressalvadas as hipóteses especificadas nesta Portaria.
§1º Nos serviços financeiros, o tempo máximo para o contato direto com o atendente será de até 45 (quarenta e cinco) segundos. Nas segundas-feiras, nos dias que antecedem e sucedem os feriados e no 5º dia útil de cada mês o referido prazo máximo será de até 90 (noventa) segundos.
§2º Nos serviços de energia elétrica, o tempo máximo para o contato direto com o atendente somente poderá ultrapassar o estabelecido no caput, nos casos de atendimentos emergenciais de abrangência sistêmica, assim considerados aqueles que, por sua própria natureza, impliquem a interrupção do fornecimento de energia elétrica a um grande número de consumidores, ocasionando elevada concentração de chamadas, nos termos de regulação setorial.
Art. 2º Os prazos fixados nesta portaria não excluem outros mais benéficos ao consumidor, decorrentes de regulamentações e contratos de concessão, observado o disposto no artigo 21 do Decreto n. 6.523/08.
Art.3º O SAC estará disponível, ininterruptamente, durante vinte e quatro horas por dia e sete dias por semana.
Veja, portanto, que a indenizabilidade da perda do tempo útil do consumidor é plenamente factível e fundamentada na legislação em vigor, não sendo, como alguns insistem em dizer, apenas mais uma “teoria maluca” da doutrina a fim de criar maiores prejuízos aos fornecedores em prol dos consumidores.
5. Aplicabilidade nos tribunais
Muito embora a teoria do desvio produtivo do consumidor seja algo que foi recentemente divulgada e com sua relevância descoberta ainda aos poucos pela maioria dos operadores do direito, os tribunais locais há algum tempo já vem aplicando-a, ainda que de forma tímida e excepcional, mas demonstrando a importância do tema para o âmbito do direito do consumidor:
Atualmente, situações que ensejam a perda do tempo livre do consumidor tem sido entendidas como abusivas pelo poder judiciário, sendo passíveis de reparação por dano moral por perda de tempo útil. Vejamos alguns julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:
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APELAÇÃO. OBRIGAÇÃO DE FAZER. DANOS MORAIS. COBRANÇA INDEVIDA. PERDA DO TEMPO LIVRE. Considerando que a autora suportou muito mais que meros transtornos, tem ela direito a ressarcimento por danos morais, que, consoante precedentes desta Câmara e aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, merecem ser fixados um pouco acima do valor arbitrado na sentença, devendo ser majorados para o valor de R$10.000,00, pois não só as rés não cancelaram o serviço conforme o solicitado, como ainda realizaram cobranças indevidas. Conforme narrado na inicial, a autora efetuou, no mínimo 12 protocolos de atendimento, para requerer a retirada do aparelho e o cancelamento das faturas que continuavam a ser debitadas indevidamente. Teoria da Indenização pela perda do Tempo Livre que deve ser considerada no arbitramento do dano moral, no caso concreto. Dá-se provimento à apelação.( 0400326-67.2012.8.19.0001 – DES. MARIA AUGUSTA VAZ - Julgamento: 29/07/2014 - PRIMEIRA CAMARA CIVEL)
Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), também é possível identificar precedentes que aplicam a teoria do desvio produtivo ou da perda do tempo livre, sem, contudo, utilizar esta nomenclatura. Observem os seguintes julgados disponibilizados em informativos do STJ:
DIREITO DO CONSUMIDOR. DANO MORAL NO CASO DE VEÍCULO ZERO QUILÔMETRO QUE RETORNA À CONCESSINÁRIA POR DIVERSAS VEZES PARA REPAROS. É cabível reparação por danos morais quando o consumidor de veículo automotor zero quilômetro necessita retornar à concessionária por diversas vezes para reparar defeitos apresentados no veículo adquirido. Precedentes citados: REsp 1.395.285-SP, Terceira Turma, DJe 12/12/2013; AgRg no AREsp 60.866-RS, Quarta Turma, DJe 1/2/2012; e AgRg no AREsp 76.980-RS, Quarta Turma, DJe 24/8/2012. REsp 1.443.268-DF, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 3/6/2014.
DANO MORAL. DEMORA. LIBERAÇÃO. HIPOTECA.
Após o pagamento das parcelas do contrato de compra e venda de bem imóvel, os ora recorridos tiveram que se deslocar, por diversas vezes, ora à construtora com quem contrataram ora ao agente financeiro e, por fim, até o registro de imóveis, para verem regularizada a situação do imóvel, com a liberação do gravame hipotecário, obrigação, aliás, que não lhes cabia. Competia ao ora recorrente proceder ao levantamento da hipoteca, sem que houvesse qualquer necessidade de diligência por parte dos recorridos, que cumpriram suas obrigações contratuais. Assim, todas essas circunstâncias levam a concluir pela indenização por dano moral em razão da demora injustificada na liberação do ônus hipotecário. Logo, não se cuida de mero descumprimento contratual, mas de ato ilícito que deve ser reparado. Diante do exposto, a Turma negou provimento ao recurso. REsp 966.416-RS, Rel. Min. Massami Uyeda, julgado em 8/6/2010.