Com a decisão da Câmara dos Deputados de barrar a abertura de processo penal pedida pela Procuradoria-Geral da República, em que figurava como acusado o presidente da República, o ex-deputado Rodrigo Rocha Loures, flagrado recebendo uma mala com R$ 500.000,00 das mãos de um delator da JBS, pode ter a investigação contra si desmembrada, ficando a primeira instância da Justiça Federal competente para a ação penal ajuizada com relação a ele pelo fato ali narrado. Já o atual presidente da República, com a decisão noticiada, somente responderá em juízo pelos fatos contra si relatados na denúncia quando seu mandato presidencial estiver encerrado, ficando suspenso o processo com relação ao atual ocupante do cargo de presidente da República. A prescrição da pretensão punitiva fica suspensa com relação ao chefe do executivo federal.Temos o exemplo do Supremo Tribunal Federal, ao extrair essa solução, mesmo sem dispositivo expresso, em relação a parlamentares para os quais o congresso negou licença para processar, ao tempo em que isso era exigido. Foi o caso do exame no HC 83154/SP.
Noticiou-se que o ex-deputado e ex-assessor Rodrigo Rocha Loures foi alvo da operação Patmos, em 18 de maio de 2017, um dia após o jornal O Globo revelar a existência de áudios comprometedores e provas contra Rocha Loures, o presidente Temer, o senador Aécio Neves e diversos outros agentes políticos. O ministro do STF Edson Fachin, como relator da Operação Lava Jato, determinou que Rocha Loures fosse afastado da Câmara dos Deputados.
Apontado como intermediário do presidente Michel Temer para assuntos do grupo J&F com o governo, o ex-deputado teria sido escolhido para resolver uma disputa relativa ao preço do gás fornecido pela Petrobras à termelétrica do grupo JBS no Conselho Administrativo de Defesa Econômica, pela qual teria recebido 5% de propina e teria telefonado para o presidente interino do Cade, Gilvandro Araújo, para interceder pelo grupo. Foi filmado pela PF recebendo uma bolsa com 500 mil reais, entrega feita por Ricardo Saud, diretor da JBS, após combinar pagamento semanal no mesmo valor pelo período de 20 anos. No dia 23 de maio deste ano, entregou a mala à polícia federal de São Paulo contendo 465 mil reais, 35 mil reais a menos que o valor relatado na operação.
Vejamos as hipóteses de separação facultativa, do que se vê do artigo 80 do Código de Processo Penal:
a) Infrações praticadas em circunstâncias de tempo ou lugar diferentes: a distinção temporal ou de lugar pode motivar a separação dos processos;
b) Número excessivo de acusados, situação que pode ocasionar vários problemas durante a instrução criminal a levar ofensa ao princípio da duração razoável do processo, norteador do processo penal, na redação dada pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Aqui cabe ao magistrado, a pedido ou de ofício, analisar a conveniência de manter o processo uno ou determinar a sua separação;
c) Quando haja um outro motivo relevante. Ora, estamos diante de um conceito juridicamente indeterminado.
Na lição de BARBOSA MOREIRA (Temas de Direito Processual, Segunda Série, São Paulo, Saraiva, pág. 65) abre-se ao aplicador da norma certa margem de liberdade. Algo de subjetivo, realmente, haverá nessa operação concretizadora, sobretudo se houver a aplicação de determinados juízos de valor. Todavia, avisa a melhor doutrina, que não se pode confundir tal situação com a da discricionariedade. É que há hipóteses em que a lei atribui a quem tenha de aplicá-la o poder de, em face de certa situação, atuar ou abster-se ou ainda o poder de escolher; no primeiro caso, o poder de escolher, dentro de certos limites, a providência que adotará, dentro de considerações de oportunidade ou de conveniência. De toda sorte, a assertiva em análise requer prudência do aplicador.
Daí porque se diz que é facultativa essa separação dos autos.
Com o devido respeito seria caso de separação dos autos a teor do artigo 80 do CPP:
Art. 80. Será facultativa a separação dos processos quando as infrações tiverem sido praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes, ou, quando pelo excessivo número de acusados e para não Ihes prolongar a prisão provisória, ou por outro motivo relevante, o juiz reputar conveniente a separação.
De um motivo relevante cuida a chamada “competência por prerrogativa de função”, ou seja, de uma jurisdição especial, exercida ratione personae, a qual, muito embora criticada por alguns, não objetiva beneficiar ou privilegiar certas pessoas colocando-as acima dos cidadãos comuns.
Ao revés, essa previsão constitucional visa a permitir que determinados cargos e funções públicas de maior relevo na estrutura do Estado possam ser exercidos com a necessária independência.
Diz José Frederico Marques sobre o assunto: “Não se trata de privilégio de foro, porque a competência, no caso, não se estabelece ‘por amor dos indivíduos’, e sim em razão ‘do caráter, cargos ou funções que eles exercem’, como ensinava J. A. Pimenta Bueno.
Ela está baseada na ‘utilidade pública e no princípio da ordem e da subordinação e na maior independência do Tribunal Superior’ – como o disse, em 1874, o Supremo Tribunal de Justiça (Paula Pessoa, Código de Processo Criminal, p. 195, nota 1.905), conjuga-se o citado artigo 80 do CPP com as regras da conexão estabelecidas no artigo 76, III, do CPP, em especial, no que concerne à conexão probatória.
A chamada conexão probatória ou instrumental do artigo 76, III, do Código de Processo Penal, não dispensa um liame substancial entre os fatos. Não basta um eventual juízo de conveniência de reunir no mesmo processo fatos similares, mas paralelos, sem nenhuma conexão substancial entre si”.
No Inq 559-QO/MG, também relatado pelo Min. Octávio Gallotti, e julgado em 9/12/1992, o Plenário, por maioria de votos, assentou a necessidade de desmembramento do feito envolvendo três indiciados, um deles parlamentar, uma vez que, ausente a licença da Câmara dos Deputados, exigível à época para iniciar o processamento, com a consequente suspensão da prescrição, tornava-se conveniente a separação do processo, com base no art. 80 do CPP. Eis a ementa do julgamento:
“PROCESSO A QUE RESPONDEM DEPUTADO FEDERAL, ESTANDO PENDENTE CONCESSÃO DE LICENÇA DA CÂMARA, JUNTAMENTE COM OUTROS RÉUS NÃO FAVORECIDOS PELA IMUNIDADE FORMAL NEM PELO FORO ESPECIAL (ARTIGO 53, § 1º E 4º. DA CONSTITUIÇÃO). SEPARAÇÃO DETERMINADA POR RELEVANTE MOTIVO DE CONVENIÊNCIA (ART. 80 DO CPP), DECORRENTE DA DIFERENÇA DO REGIME DE PRESCRIÇÃO A QUE ESTÃO SUJEITOS OS ACUSADOS, VISTO ACHAR-SE O SEU PRAZO SOMENTE SUSPENSO EM RELAÇÃO AO PARLAMENTAR (ART. 53, § 2º DA CONSTITUIÇÃO). REMESSA DE Supremo Tribunal Federal 13 TRASLADO AO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, PARA PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO NO JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU, COM RELAÇÃO AOS RÉUS PARA CUJO JULGAMENTO ORIGINÁRIO E ELE COMPETENTE”.
No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal também decidiu pelo desmembramento nos feitos a seguir destacados: Inq 542-QO/DF, redator para o acórdão Min. Néri da Silveira; Inq 242-QO/DF e Inq 736-QO/MS, Rel. Min. Celso de Mello; Inq 675-QO/PB, Rel. Min. Néri da Silveira; Inq 212/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão e Inq 1720-Qo/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence.
Em havendo necessidade de separação de processos, em especial por conveniência da instrução criminal, preserva-se a prerrogativa de foro do investigado que dela faz jus, remetendo-se ao juízo comum os procedimentos envolvendo outros coinvestigados sem o mencionado privilégio. Sabe-se que, por conexão ou continência, havendo foro privilegiado a um dos coinvestigados, os demais serão julgados por Corte Superior. Porém, a regra da conexão ou continência é prevista no Código de Processo Penal e não na Constituição Federal, motivo pelo qual pode ceder às exceções enumeradas na própria legislação infraconstitucional, nos moldes do artigo 80 do Código de Processo Penal, como ensinou GUILHERME DE SOUZA NUCCI (Código de Processo Penal Comentado, 10º edição, pág. 256).
Daí porque se torna viável a separação dos processos, fazendo com que os réus com prerrogativa de foro sejam julgados em instâncias diversas dos outros não possuidores de tal prerrogativa, como se lê de julgamento do Supremo Tribunal Federal, no QO no Inq. 2.443 – SP, Pleno Relator Ministro Joaquim Barbosa, 1º de julho de 2008.
A decisão da casa congressual não afeta, entretanto, as demais investigações em curso, na medida em que os fatos sejam independentes daqueles que levaram à primeira denúncia contra o presidente da República, isto porque não há contaminação daquela decisão com relação ao trabalho técnico-jurídico do Ministério Público. É o caso das investigações que envolvem o crime de obstrução de justiça, que é diverso do crime de corrupção passiva, que foi objeto da denúncia rejeitada pela Câmara dos Deputados.
Essa outra vertente de investigações, segundo se noticia, apontaria o atual presidente da República como suposto comandante de uma organização criminosa integrada por outros políticos ligados ao PMDB.