Refúgio: Definição
O conceito de refúgio comporta variações entre os autores, estudiosos do tema, havendo dissenso, por vezes, quanto à sua própria substância, chegando a confundi-lo com o instituto do asilo.
Sobre a confusão conceitual, Guido Fernando Silva Soares (p. 192) informa que o refúgio
“tem sido confundido com o instituto do asilo político, sendo que obras doutrinárias fazem mesmo a errônea sinonímia entre asilado e refugiado, é um instituto regulado por normas multilaterais globais (e não regionais, como no caso do asilo político), editadas sob a égide da ONU, e, portanto, submetidas a um regime de verificação de sua adimplência, por um órgão internacional, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, o ACNUR, com sede em Genebra”
O asilo, segundo a lição de Liliana Lyra Jubilut (p. 37), remonta ao período da Antiguidade clássica, mais precisamente na Grécia, “em que era frequentemente utilizado e do qual provém a sua denominação (a – não e sylao – arrebatar, extrair; ou seja, a não-expulsão), consubstanciando-se na imunidade concedida por um Estado a um indivíduo em face de perseguição sofrida por esse em outro Estado”.
O refúgio, por seu turno, é instituto muito mais recente no universo jurídico, com positivação firmada na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951.
Embora não houvesse positivação específica até a Convenção de 1951, o refúgio, antes de figurar como instituto jurídico reconhecido internacionalmente, apresentava-se (e assim ainda se apresenta) como uma realidade humana.
Não se desconsidera a relevância da positivação jurídica para conferir proteção aos refugiados. No entanto, a ausência de positivação específica não tem o condão de extrair os fatos da realidade, nem pode servir de chancela para ignorar uma situação que se impõe.
Dessa forma, parece melhor assistir razão àqueles que definem o refúgio como espécie do gênero asilo. Considerar de outra forma, seria pretender que o refúgio inexistia na experiência humana e que, por isso, poderia ser ignorado pelo Direito.
Nesse ponto, converge-se ao pensamento de Guido Soares (p. 192), segundo o qual, em que pense a proteção dos refugiados [em outras palavras, a proteção (jurídico-específica) dos refugiados] ser um tema relativamente novo, no Direito Internacional, sempre existiu, ao final das guerras, em todos os tempos, uma “situação calamitosa de grande número de pessoas ficasse [...] num estado de extrema penúria, algumas deportadas e perseguidas, outras desabrigadas e vítimas de epidemias e de fome, outras ainda desprovidas de uma nacionalidade ou com brutais mutações de sua nacionalidade (decorrentes de anexações territoriais)”.
A relação de gênero-espécie não significa, por óbvio, identidade conceitual. Da mesma forma, tampouco suas diferenças os afastam a ponto de se dissociarem por completo. Há, de fato, uma interseção que possibilitou a concessão de abrigo a refugiados quando o instituto ainda não possuía a tutela específica da Convenção de 1951.
Atualmente, o status de refugiado é estabelecido pela Convenção de 1951, definindo como qualquer pessoa que
“Temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele”.
O dispositivo prevê um rol de motivos que, concretizando-se, dão azo caracterização como refugiados a quem se encontrar sob o manto dessa violação de direitos.
Podem ser considerados refugiados aqueles perseguidos por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas.
O rol informado pela Convenção de 1951 revela uma feição exemplificativa de motivos pelos quais a perseguição tem potencial para se instalar.
A importância dessa conclusão possui uma consequência prática: cada Estado pode adicionar critérios outros para configuração do status de refugiado. Assim, as razões do temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas representam hipóteses mínimas que ensejarão a proteção jurídica.
Aliás, ressalte-se que a configuração dos critérios ensejadores da proteção jurídica aos refugiados, segundo alguns estudiosos, não se estabelece com a perseguição propriamente dita.
Portanto, não é preciso que se concretize uma perseguição com os motivos descritos na Convenção de 1951, para que se configure uma circunstância apta a irradiar os efeitos protetivos às vítimas, bastando que se instale um temor justificado quanto à perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas.
Nesse sentido, conforme delineado por Wellington Pereira Carneiro (p. 17), na obra coletiva Direitos Humanos e Refugiados,
“A grande novidade que foi de uma originalidade que permanece como exemplo único até hoje no direito internacional é que transforma o temor numa categoria jurídica, já que a perseguição não necessita ser efetiva, mas a ameaça real e o temor já justificam a proteção internacional”.
A definição de um instituto, ou de um fenômeno da realidade humana, é uma construção histórica, cultural e, por essas razões, ideológica. Percorrer o processo histórico-jurídico de construção (das definições) dos fenômenos auxilia a melhor compreendê-los.
Proteção aos Refugiados: Aspectos Históricos
De maneira geral, os estudiosos apontam, sem grandes dissensos, para específicos fatos históricos e diplomas internacionais, com vistas a tecer um encadeamento temporal que informe e explique o atual regime de proteção aos refugiados.
Larissa Leite (p. 25-27), em sua tese de doutorado intitulada “O Devido Processo Legal para o Refúgio no Brasil”, 2014, na Universidade de São Paulo (USP), condensou os fatos e diplomas jurídico-internacionais com objetividade e organização.
Segundo a autora, em uma primeira fase, a origem tem sido explicada com foco nos refugiados russos, armênios e assimilados, assim como aos refugiados provenientes da Alemanha. São os seguintes fatos:
- 1920: Criação da Sociedade das Nações;
- 1921: estabelecimento do Alto Comissariado para Refugiados Russos e nomeação de Fridjot Nansen como Alto Comissário;
- 1922: celebração do Acordo para emissão de certificados de identidade para refugiados russos;
- 1926: celebração do Acordo para emissão de certificados de identidade para refugiados russos e armênios;
- 1928: celebração do Acordo concernente ao status jurídico dos refugiados russos e armênios;
- 1930: morte de Fridjot Nansen e encerramento das atividades do Alto Comissariado para Refugiados Russos;
- 1931: criação do Escritório Internacional Nansen;
- 1933: celebração da Convenção referente ao status internacional de refugiado; criação do Alto Comissariado para Refugiados provenientes da Alemanha;
- 1936: celebração do Acordo Provisório sobre o Estatuto dos Refugiados Provenientes da Alemanha;
- 1938: celebração da Convenção referente ao status de refugiados provenientes da Alemanha e do seu protocolo Adicional; criação do Comitê Intergovernamental sobre Refugiados; criação do Alto Comissariado da Liga das Nações para Refugiados, pela fusão do Alto Comissariado para Refugiados Russos com o Alto Comissariado para Refugiados provenientes da Alemanha.
Após esse período, LEITE informa que a tragédia da II Guerra Mundial exerceu pronunciada influência na elaboração do Direito Internacional para os refugiados, culminando com o advento da Convenção de 1951. São os seguintes acontecimentos:
- 1943 - estabelecimento da Agência da ONU para Socorro e Reabilitação (UNRRA);
- 1946 - celebração do Acordo sobre Medidas Provisórias e serem tomadas em relação aos Refugiados e Deslocados, - estabelecimento da Comissão Preparatório para a Organização Internacional para Refugiados (OIR);
- 1947 - término das atividades da UNRRA e do Comitê Intergovernamental sobre Refugiados;
- 1948 - início das atividades da OIR, - proclamação da Declaração Universal dos direitos humanos;
- 1949 - criação do ACNUR;
- 1950 - aprovação do Estatuto do ACNUR pela AG-ONU;
- 1951 - celebração da Convenção de Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados.
A Convenção de 1951 foi o grande marco para o tratamento moderno à situação dos refugiados e sua proteção jurídica pelos Estados signatários. Após a sua celebração, em ampliação ao conceito e proteção aos refugiados, apontam-se os seguintes diplomas internacionais:
- 1967: celebração do Protocolo Adicional à Convenção de 1951;
- 1969: celebração da Convenção da Organização da Unidade Africana que rege os aspectos específicos dos problemas dos refugiados em África;
- 1984: Declaração de Cartagena.
O quadro histórico está incessantemente em formação. A realidade humana, especialmente em nosso tempo-agora, tem demonstrado exemplos plurais de emergência jurídica e humanitária, no auxílio para quem vive sob o temor denso, palpável, continuado no tempo, expandido no espaço.
Posto que importante a digressão histórica e objetiva da proteção aos refugiados, é imperativo salientar a forte conexão dessa tutela jurídica com os fundamentos dos direitos humanos.
O Direito (Humano) dos Refugiados
O Professor Fábio Konder Comparato (p. 1) revela a parte “mais bela e importante de toda a História”:
“Todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza. É o reconhecimento universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém – nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação – pode afirmar-se superior aos demais”.
Nessa perspectiva, a igualdade dos seres humanos ocuparia a gênese de todos os direitos humanos e, sob esse prisma, também seria dos direitos (humanos) dos refugiados.
Diversos autores sustentam a conexão entre a proteção jurídica dos refugiados e os diretos humanos.
Nas palavras de Guido Soares (p. 171),
“Os direitos humanos, na sua atual expressão, em especial, a partir dos anos que se seguiram ao término da Segunda Guerra Mundial [...], e em todo seu desenvolvimento posterior, não distinguem, quanto a seu escopo de proteção, entre nacionais e estrangeiros. Na sua raiz, [...], os direitos humanos têm por finalidade proteger a pessoa humana na sua realidade individual (os direitos individuais oponíveis contra o Estado), na sua vivência coletiva (os direitos exigíveis do Estado) ou como individualidade ou pessoas inseridas no mundo (os direitos ditos difusos, como o direito à paz, a um meio ambiente equilibrado, o direito ao desenvolvimento, exigíveis dos Estados, como partícipes de uma comunidade internacional). Para realizar tal desiderato, os responsáveis pela aplicação das normas de proteção aos direitos humanos não estão autorizados a distinguir tratar-se de indivíduos nacionais ou de estrangeiros, mas, bem ao contrário, são eles incentivados a aplicar as normas protetoras, com o cuidado de considerar que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.
Na lição de Flávia Piovesan, citada por Rossana Rocha Reis e Thais Silva Meneses (p. 63-64),
“A proteção internacional dos refugiados se opera mediante uma estrutura de direitos individuais e responsabilidade estatal que deriva da mesma base filosófica que a proteção internacional dos direitos humanos. O Direito Internacional dos Direitos Humanos é a fonte dos princípios de proteção dos refugiados e ao mesmo tempo complementa tal proteção”.
A conexão se explicita, do ponto de vista positivo, já com os direitos humanos como fundamentação inicial e basilar para a celebração da Convenção de 1951, uma vez que vincula o instrumento de Genebra ao “princípio de que os seres humanos, sem distinção, devem gozar dos direitos humanos e das liberdades fundamentais”, consagrado na Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como na profunda preocupação da Organização da Nações Unidas “pelos refugiados e que ela tem se esforçado por assegurar a estes o exercício mais amplo possível dos direitos humanos e das liberdades fundamentais”.
Em que pese a propagada conexão formal da proteção dos refugiados com os postulados dos direitos humanos, a problemática atual persiste na falta de efetividade desses direitos e garantias, incapazes, muitas vezes, de se reverterem em benefício substancial aos que se veem à margem do sistema protetivo, porquanto inalcançável a quem se percebe submerso em violências e perseguições por motivos de elevada torpeza.
REFERÊNCIAS
SOARES, Guido Fernando Silva. Os Direitos Humanos e a proteção dos Estrangeiros. 2004. Revista de informação legislativa. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/954/R162-13.pdf?sequence=4> Acesso em: 9/7/2017
JUBILUT, Liliana Lyra. O Direito Internacional dos Refugiados e sua Aplicação no Ordenamento Jurídico Brasileiro. São Paulo. Método, 2007. Disponível em: <http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2013/O_Direito_Internacional_dos_Refugiados.pdf> Acesso em: 9/7/2017
Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951). Disponível em: <http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf> Acesso em: 9/7/2017
SILVA, César Augusto S. da (Org.) Direitos Humanos e Refugiados. Mato Grosso, Gráfica e Editora De Liz. 2012. Disponível em: <http://www.obs.org.br/refugiados/947-direitos-humanos-e-refugiados> Acesso em: 9/7/2017
LEITE, Larissa. O Devido Processo Legal para o Refúgio no Brasil. 2014. Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2140/tde-08042016-145056/pt-br.php> Acesso em: 7/7/2017.
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 5ª edição. São Paulo. Saraiva. 2007.
REIS, Rossana Rocha; MENESES, Thais Silva. Revista Sociologia e Política. 2014. Disponível em < http://www.scielo.br/rsocp>. Acesso em 9/7/2017