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Adoção excepcional: um confronto entre o biológico e o afetivo

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07/09/2017 às 13:13
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5   A MANUTENÇÃO JUNTO À FAMÍLIA DE ORIGEM É SEMPRE O MELHOR?

Para dar continuidade à indagação aqui proposta, é de grande importância entender, inicialmente, o poder familiar e seu reflexo no processo de adoção, uma vez que esse confronto ajudará na elucidação dos questionamentos objetos deste capítulo.

O poder familiar “é o exercício da autoridade dos pais sobre os filhos, no interesse destes”. (LÔBO, 2011, p. 295). Como previsto no artigo 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente, este poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, perdurando até a maior idade dos filhos ou até a emancipação destes, quando então se extinguirá. Nesse contexto, o poder familiar pode ser definido como:

[...] um complexo de direitos e deveres pessoais e patrimoniais com relação ao filho menor, não emancipado, e que deve ser exercido no melhor interesse deste último. Sendo um direito-função, os genitores biológicos ou adotivos não podem abrir mão dele e não o podem transferir a título gratuito ou oneroso. (MACIEL, 2010, p. 82).

A adoção atribui a condição de filho ao adotado, em que se cria um vínculo de filiação, do qual repercutem diversas responsabilidades, dentre as quais se destaca o poder familiar. Contudo, esse poder parental não advém da adoção em si, mas da relação de filiação existente entre pais e filhos que pode ser constituída mediante a adoção, isto é, “decorre tanto da paternidade natural como da filiação legal ou socioafetiva” (DIAS, 2013, p. 436). Por isso é que se afirma que os pais biológicos, naturalmente, a partir do nascimento com vida de seu filho, já possuem esse poder familiar.

Nesse caso, como uma das características do poder parental é a irrenunciabilidade e a intransferibilidade, não há como se transferir esse poder-dever dos pais biológicos aos adotivos, sendo necessário, primeiramente a extinção ou a perda do poder familiar dos genitores para que a adoção possa constituir um novo vínculo e consequentemente um novo poder familiar.

Na perspectiva do poder familiar, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 22, delega aos pais “o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais”. O Código Civil, por sua vez, apresenta um rol de competências nos incisos do artigo 1.634 que constituem o pleno exercício do poder familiar. Embora nesse extenso rol não tenha sido elencado “o que talvez seja o mais importante dever dos pais com relação aos filhos: o dever de lhes dar amor, afeto e carinho.” (DIAS, 2013, p. 440).

No entanto, nas palavras de Paulo Lôbo (2011, p. 302), os deveres provenientes do poder familiar constantes no ECA e na Constituição somam-se aos elencados pelo Código Civil. 

Existem, apesar de tudo, situações em que os pais podem perder o poder familiar, em razão de atitudes suas que ponham “em perigo permanente a segurança e a dignidade do filho”. (LÔBO, 2011, p. 308). Destacando-se, no entanto, que a perda do poder familiar tem um caráter sancionatório e protetivo, não se confundindo com sua suspensão ou sua extinção, vez que a suspensão consiste em uma medida menos gravosa e de caráter temporário, sujeita a revisão. E a extinção, por sua vez, ocorre em razão de situações incompatíveis com a manutenção do poder parental em face dos filhos e, no mais das vezes, não rompe o vínculo de filiação e parentalidade existente. (DIAS, 2013, p. 444-446). Na interpretação do artigo 1.635 do Código Civil, observa-se que a perda do poder familiar é uma das hipóteses que levam à extinção do mesmo.

A respeito do tema, dispõe Maciel (2010, p. 135):

[...] a perda ou a destituição do poder familiar é uma das formas de extinção do poder familiar (art. 1635, V, do CC) que ocorre dos casos de castigos imoderados, abandono, atos contrários à moral e aos bons costumes, incidência reiterada nas faltas antecedentes e, ainda, quando comprovado o descumprimento injustificado dos deveres inerentes ao poder familiar (art. 24 do ECA).

A mesma autora complementa, ainda, explicando que a destituição do poder familiar depende de uma decisão judicial condenatória, a qual deve ser proferida em ação própria, dando aos pais, portanto, o direito ao contraditório.

Além dos descumprimentos injustificados quanto aos deveres de guarda, educação e sustento, a legislação civil traz outras hipóteses que ensejam na perda do poder familiar, quais sejam castigar imoderadamente o filho, deixá-lo em abandono, praticar atos contrários à moral e aos bons costumes e incidir reiteradamente nas faltas que levam à suspensão do poder parental, todas previstas no artigo 1.638 do Código Civil. Ademais, como previsto nos artigos 98 e 101 do ECA, a falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável, são causas que podem levar ao acolhimento institucional.

De acordo com pesquisa realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que fez inspeção em 2.370 entidades brasileiras de acolhimento institucional, foi constatado que, dentre as principais causas de acolhimento de crianças e adolescentes, a negligência dos pais ou responsáveis encontra-se em primeiro lugar, seguido por alcoolismo e dependência química dos pais, abandono e violência doméstica. Na interpretação dos referidos dados, a pesquisa destacou, ainda, o seguinte:

Em todos os gráficos, a violência doméstica e a sexual praticada pelos pais ou responsável ocupam as primeiras posições dentre as causas que levam as crianças e adolescentes aos serviços de acolhimento. Dados recolhidos pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAM) do Ministério da Saúde em 2011 e divulgados no Mapa da Violência em 2012 registram que a maioria esmagadora dos atos de violência cometidos contra crianças e adolescentes, em todas as faixas etárias, acontecem dentro de casa. O maior número de vítimas está entre 1 a 4 anos: 78,1% dos atos de violência ocorrem dentro de sua própria residência. (BRASIL, 2013, p. 46).

 O Relatório sobre Violência e Saúde apresenta quatro formas de maus-tratos que podem ser cometidos por parte dos responsáveis pelos cuidados com os infantes: o abuso físico, sexual, emocional e a negligência. Destacando, contudo, que a negligência não pode ser confundida com as circunstâncias de pobreza, vez que, diferentemente destas, a negligência apenas se configura nos casos “onde recursos razoáveis estejam disponíveis para a família ou responsável” (KRUG, et al, 2002, p. 60) e, mesmo assim, insistem em não utilizá-los em favor das crianças ou adolescentes.

O que deve ser veementemente verificado, uma vez que o ECA proíbe a suspensão ou perda do poder familiar por mera falta ou carência de recursos materiais (Art. 23). Ademais, a violência doméstica contra crianças e adolescentes gera consequências severas às vítimas, impedindo seu desenvolvimento saudável, conforme se depreende do fragmento adiante:

As pesquisas revelaram que a exposição de crianças e adolescentes à violência doméstica pode trazer consequências múltiplas e severas às vítimas. Estudos comprovam que a violência afeta o desenvolvimento emocional, comportamental, social, sexual e cognitivo das vítimas, interferindo negativamente no seu bem-estar e qualidade de vida, e as sequelas podem persistir ao longo da fase adulta. (BARROS; FREITAS, 2015, p. 105).

No estudo realizado por Fukuda, Penso e Santos (2013, p. 79-84) sobre o perfil sociofamiliar de crianças e adolescentes com múltiplos acolhimentos institucionais em Brasília/DF, entre 2007 e 2009, foram identificados 248 motivos para o acolhimento institucional, sendo os de maior frequência maus-tratos (19,8%), vivência de rua (18,5%) e negligência (17,7%). Ficou evidenciado, também, uma duração média de 3 anos das medidas de acolhimento.

Nesse sentido, acerca dos resultados gerais dessa pesquisa, concretizou-se o entendimento de que as múltiplas medidas de acolhimento foram caracterizadas por uma fragilidade familiar e social em razão da falta de assistência do Estado, gerando a necessidade de que os pais entregassem seus filhos às instituições de acolhimento por falta de recursos financeiros e violência. Em contrapartida, na pesquisa realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (BRASIL, 2013, p. 43-46) a carência de recursos materiais como motivo de acolhimento não consta nas primeiras colocações, ocasião em que, no ano de 2012, apareceu em 32% dos casos, tanto nos abrigos quanto nas casas-lares; em 2013, apareceu em 26% dos casos nos abrigos e em 21% nas casas-lares. Ou seja, sempre abaixo do número de casos relacionados à negligência, dependência química dos responsáveis, abandono e violência.

Como muito bem evidencia Kreuz (2012, p. 50-51), boa parte dos acolhimentos não ocorrem em razão de uma única causa. Geralmente a pobreza é uma das causas, sendo acompanhada da negligência, falta de higiene, alcoolismo, drogas, maus-tratos, abandono escolar, entre outros. Inclusive, informa que, nos últimos tempos, tem ocorrido um aumento significativo de acolhimentos institucionais em razão de dependência química e do alcoolismo dos responsáveis, e que nessas circunstâncias:

[...] raros são os casos que permitem o retorno dessas crianças às suas famílias biológicas. Os tratamentos existentes para os dependentes químicos, quando aceitos, normalmente são de longa duração, o que faz com que os já fragilizados vínculos afetivos existentes entre pais e filhos se enfraqueçam ainda mais, quando não se rompem definitivamente. Além do tempo prolongado, os resultados desses tratamentos são incertos, não têm eficácia, em grande parte dos que a eles se submetem.” (KREUZ, 2012, p. 50).  

É importante destacar que não é apenas a situação de vulnerabilidade, acima demonstrada, que prejudica o desenvolvimento saudável da criança/adolescente. O acolhimento institucional prolongado, impedindo o infante de conviver em ambiente familiar, também propicia complicações significantes. 

Diante desse contexto, é importante verificar quais os reais motivos que levam uma criança ou adolescente às instituições de acolhimento. Isto é, se a situação de vulnerabilidade da criança ocorreu somente em razão de pobreza da família ou se decorrente de uma família completamente desligada de vínculos afetivos para com o infante. Pois, a partir desse entendimento inicial, será mais fácil compreender quando a reinserção na família biológica é uma possibilidade evidente ou se a preparação para a adoção é o melhor caminho.


6   A PREFERÊNCIA PELOS LAÇOS CONSANGUÍNEOS

Como já exposto anteriormente, o §1º do artigo 39 do ECA, adicionado pela Lei nº 12.010/09, embora elaborado observando o melhor interesse da criança e do adolescente, ainda deixa margens para interpretações que, em razão de uma supervalorização da consanguinidade, podem prejudicar crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.

Dispõe o referido parágrafo que “a adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa”. Esse texto, no entanto, provoca um questionamento: quando se consideram esgotados todos os recursos de manutenção na família natural ou extensa? Por quantas tentativas as crianças e adolescentes devem passar para que se considerem esgotados todos os recursos? É claramente perceptível que a expressão “apenas quando esgotados todos os recursos” é demasiadamente genérica. Ou seja, essas perguntas dificilmente serão respondidas com ampla certeza.

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Nessa perspectiva, a prioridade dada pela legislação à família natural, mais precisamente aos vínculos consanguíneos, pode acarretar em alguns prejuízos, dentre os quais destacamos o prolongamento em instituições de acolhimento e os problemas relacionados à adoção tardia.

A adoção de crianças e adolescentes consubstancia-se em um ato repleto de complexidades. Uma dessas complexidades caracteriza-se pelo fato de que a adoção depende, em grande parte, do perfil de crianças/adolescentes que os pretendentes mais almejam.

Nesse sentido, quanto mais fora desse padrão uma criança ou um adolescente se encontra mais distante de uma adoção ela estará.

Pretendentes à adoção, nacionais ou estrangeiros, querem crianças, preferencialmente, com pouca idade e em boas condições de saúde. À medida que os anos passam, além de se tornar cada vez mais difícil a reinserção familiar, uma vez que os laços, com o tempo, fragilizam-se ou rompem-se, a colocação em família substituta, especialmente na modalidade de adoção, torna-se cada vez mais difícil. Quanto menor a idade da criança, mais chances terá para ser reinserida numa família. (KREUZ, 2012, p.57).

Esse fato se torna evidente com a análise dos relatórios, em anexo, acessíveis no site do Conselho Nacional de Justiça acerca dos pretendentes e crianças vinculados ao Cadastro Nacional de Adoção. Os dados indicam que, no dia 01/10/2016, foram registrados um total de 35.874 pretendentes disponíveis para um total de 4.914 crianças aptas à adoção.

De acordo com o relatório de pretendentes disponíveis, dentre aqueles que desejam adotar pela faixa etária, a preferência está em crianças com até três anos de idade, sendo de 20,22% o total de pretendentes que desejam crianças com esse perfil. Em contrapartida, dentre as 4.914 crianças disponíveis, apenas 144 estão na faixa etária de zero a três anos de idade.

Esses dados demonstram, portanto, que a idade tem grande influência na adoção, sendo que o seu avançar cresce de forma inversamente proporcional ao desejo dos pretendentes. Ou seja, restou evidenciado que quanto mais tarde crianças e adolescentes ficam aptas à adoção, menores são as chances de serem adotadas. Sem contar as demais classificações de perfil com as quais as crianças e os adolescentes estão sujeitos, seja com relação à presença de doenças, raça ou sexo, que também influenciam no desejo dos pretendentes e, consequentemente, fazem com que as chances de adoção aumentem ou diminuam para determinada criança/adolescente.

Em pesquisa do Conselho Nacional de Justiça a respeito do tempo dos processos relacionados à adoção no Brasil, publicada em 2015, verificou-se a existência de evidências de que, de certa forma, uma das causas da existência de muitas crianças com idades avançadas no CNA e, consequentemente, de sua não adoção, é a idade de disponibilização. Ou seja, essas crianças já entram no CNA em idade avançada, conforme se depreende do seguinte trecho: “É possível observar, que das crianças disponíveis, mais de 85% entraram no cadastro com mais de 5 anos”. (NUNES, 2015, p. 49).

Não se pode ignorar que, para chegar ao acolhimento institucional, a criança ou o adolescente já passou pelo abandono, por maus-tratos, diversas formas de negligência, carência material e afetiva, sendo que muitas crianças acolhidas, assim como os adolescentes, não demonstram sentimentos para com os genitores no intuito de voltar ao convívio com os mesmos. Devendo, pois, ser sempre praticada a ideia de que o acolhimento institucional é medida excepcional e provisória, mas que seu prolongamento produz consequências prejudiciais às crianças, apenas tendo plena efetividade quando alcançar o retorno da criança e do adolescente ao convívio familiar. (KREUZ, 2012, p. 58-59).

O que pode ser exemplificado através de um interessante estudo realizado com 23 crianças e adolescentes em instituições de acolhimento da cidade de Patos de Minas, em Minas Gerais. Os resultados sugeriram que, dentre outras causas, ter um histórico de acolhimento, e um tempo de acolhimento superior a 2 anos pode potencializar os sintomas de depressão em crianças e adolescentes. (ÁLVARES; LOBATO, 2013, p. 162).  

Nesse sentido, a preferência dada aos laços consanguíneos pela própria legislação gera uma obrigatoriedade de esgotar todos os recursos de manutenção da criança em uma família natural ou extensa, a qual pode não querer, de fato, modificar sua conduta para se manter junto à criança ou adolescente. Esse esgotamento de recursos, no entanto, requer um tempo que, muitas vezes, as crianças/adolescentes não possuem, a depender do seu perfil e, principalmente, da sua idade.

Entendimento semelhante pode ser visto nas palavras de Kreuz (2012, p. 83):

Na prática, é comum o sistema de proteção, notadamente, os conselhos tutelares e varas de infância e juventude, tentarem, por anos, a reintegração familiar. Não se ignora a necessidade de envidar todos os esforços possíveis na busca da reinserção familiar, que deve ser a primeira dentre as alternativas que se colocam no caso concreto, mas não pode ser a única. A linha mestra que harmoniza e sustenta os princípios constitucionais aplicáveis à criança e ao adolescente é a da proteção integral. Proteção integral é reconhecer que todas as demais disposições legais devem convergir para atender às necessidades da criança e não às dos adultos, muitas vezes omissos, negligentes e violentos. Tentativas inúteis de reintegração familiar; busca por familiares totalmente ausentes, sem qualquer vínculo com a criança e o adolescente acolhidos, a espera por pais presos e condenados por anos; a espera por recuperação da dependência química ou do alcoolismo, especialmente quando se nota que não há adesão aos tratamentos; tentativas de colocação de crianças com avós ou bisavós com idade avançada, sem condições de assistir as crianças; inserção de crianças e adolescentes em família extensa, quando esta não os deseja, mas o faz como um favor, um ato de caridade, são práticas recorrentes que só vêm em prejuízo das crianças e dos adolescentes acolhidos.    

A pesquisa do CNJ acerca do tempo dos processos relacionados à adoção no Brasil, citada anteriormente, verificou que o processo de suspensão ou perda do poder familiar é uma das causas para a disponibilização tardia das crianças à adoção.

As evidências empíricas e as entrevistas com magistrados e funcionários das varas sugerem que é possível que o problema da adoção não seja a duração dos processos de adoção em si, mas sim a duração dos processos relacionados à adoção, especialmente o processo de suspensão ou perda do poder familiar, cuja duração exagerada pode afetar a idade de disponibilização das crianças para adoção e, como consequência, reduzir as probabilidades de adoção dessas crianças. (NUNES, 2015, p. 53).

Nesse sentido, a pesquisa sugere que existe um conflito entre os interesses da criança e de outros atores no processo de adoção, sendo um deles o confronto entre os direitos à ampla defesa e devido processo legal dos genitores e o direito das crianças e adolescentes de colocação em uma nova família no menor tempo possível.

[...] a implementação dessas garantias em favor dos pais podem consumir um tempo valioso que poderia ser empregado em esforços de colocação da criança em uma família substituta, o que reduz suas chances de adoção. Em casos mais graves, essas providências podem deslocar a criança, que está envelhecendo em instituições de acolhimento, para uma faixa etária de quase inadotabilidade. (NUNES, 2015, p. 114).

Observados os problemas relatados, a referida pesquisa trouxe algumas sugestões de aprimoramento do sistema de adoção, das quais destacamos a utilização de critérios objetivos para o ingresso da ação de destituição do poder familiar, uma vez que, de certa forma, relaciona-se com a problemática acima exposta sobre como saber quando se pode considerar esgotados todos os recursos de manutenção na família biológica. Nesse caso, uma das sugestões seria a criação de hipóteses mais objetivas capazes de trazer a presunção para o ingresso imediato da ação de destituição do poder familiar, deixando para o curso do processo a investigação da viabilidade de manutenção da criança ou adolescente em sua família de origem, com pleno respeito ao princípio do contraditório.

Dentro dessas hipóteses estaria o tempo de abandono da criança, tornando-se necessário definir um prazo máximo de permanência em abrigo. As instituições de acolhimento, portanto, informariam a situação da criança enquadrada nessa hipótese, fazendo surgir o dever funcional do representante do Ministério Público de ingressar com a ação de destituição do poder familiar, independentemente da elaboração de relatórios técnicos. Dessa forma, a equipe interprofissional estaria elaborando o relatório necessário, ao mesmo tempo em que o cartório judicial estaria localizando e citando os genitores. Trazendo, pois, uma enorme economia no tempo da criança, principalmente, caso se evidencie, no curso do processo, que a melhor solução para o interesse da criança é a sua disponibilização para a adoção. (NUNES, 2015, p. 120-123).

A demora nas reiteradas tentativas de manutenção da criança/adolescente na família biológica gera sua disponibilização tardia e, consequentemente, faz surgir outro problema: a dificuldade da adoção de crianças com idade elevada.

De acordo com Rosana Maria Souza de Barros (2014, p. 65), utiliza-se o termo adoção tardia para “a adoção de crianças maiores de dois anos, ou seja, que já deixaram de ser bebês, com características físicas e psicossociais diferenciadas de uma criança ainda muito pequena, e consequentemente apresenta demandas de atenção e cuidados distintos de um bebê". No entanto, a mesma autora alerta que a utilização desse termo tem sido questionada e evitada, tendo em vista que pode gerar certos preconceitos, no sentido de relacionar à palavra “tardia” a ideia de que a adoção de crianças maiores de dois anos é impossível.  

A preferência dos pretendentes é por crianças mais novas, principalmente bebês, que ainda não demonstram ter consciência dos traumas sofridos pelo abandono e afastamento da família biológica, o que reflete uma menor dificuldade para a adaptação dos pais adotivos. Por essa razão é que Hália Pauliv de Souza relata a devolução, ou desistência de dar continuidade ao processo de adoção já no estágio de convivência, como um dos fatos que geralmente se apresentam nas adoções tardias. Explica que isso ocorre porque, em regra, crianças maiores exigem mais atenção e preparação dos pais.

Onde há adoção, há abandono, existindo lutos e história anterior. Como crianças com menos idade são poucas, os pretendentes acabam aceitando uma criança maior, isto é, fazem a chamada “adoção tardia”. [...] A criança maior vem com muito sofrimento, é infeliz, ávida de afeto, atenção e para verificar se é aceita irá fazer testagens e provocações destes adultos. É ato inconsciente. Exige muita dedicação, paciência, empenho dos novos pais. A adaptação deverá ser dos pais em relação ao filho e o que esperam é o contrário. Aí é que está um dos erros. (SOUZA, 2012, p. 25-26)

Complementa a mesma autora que os maiores percebem a saída dos mais novos e precisam lidar com o sentimento de desesperança de fazer parte de uma família. Então, quando surge a oportunidade de entrarem em uma nova família, fazem todos os testes possíveis para se assegurarem de que serão aceitos e não voltarão para a instituição. (SOUZA, 2012, p. 31). 

Rosana Maria Souza de Barros (2014, p. 65-66), indica que a adoção de crianças maiores de dois anos traz uma singularidade consubstanciada no fato de que parte do desenvolvimento dessas crianças se deu em um contexto diferente da família adotiva, onde podem ter vivenciado situações de violência, privação material, negligência, abandono ou, até mesmo, podem ter passado longos períodos em instituição de acolhimento sem atenção individualizada de suas necessidades psicossociais. Algumas famílias, nas tentativas de estabelecer vínculos com a criança, enfrentam essa singularidade e, muitas vezes, não estão preparadas para se adaptar. Essa realidade, no entanto, pode contribuir para a construção da representação social de que a adoção de crianças maiores carrega o peso das dificuldades e dos traumas insuperáveis, concorrendo para o fortalecimento da ideia de que a adoção, especialmente de crianças mais velhas, repercute em “filhos problema”.

Outro obstáculo para adoção tardia apresentado por Barros (2014, p. 67) é o desejo de grande parte dos pretendentes em se amoldarem ao modelo hegemônico de família nuclear burguesa, fundamentada em vínculos consanguíneos. Havendo uma preferência por bebês com características físicas semelhantes a dos pretendentes, permitindo com que criem uma ideia de que o filho surgiu de uma concepção biológica e não por meio da adoção. O que poderia mudar essa realidade seria o incentivo às diversas configurações de famílias, como se pode assimilar do seguinte trecho:

A realização de estudos e a divulgação sobre as diversas configurações de família, inclusive a adotiva, suas especificidades, potencialidades e necessidades, têm significativa importância para a consolidação das diversas representações sociais de família, em que o princípio da consanguinidade e da procriação não sejam considerados essenciais para a constituição familiar. (BARROS, 2014, p. 68-69)

Logicamente, a dificuldade de adoção de crianças com idade elevada, tanto em razão da possibilidade de devolução como em razão da espera por uma família adequada, gera o prolongamento em instituição de acolhimento cujo princípio fundamental é a excepcionalidade e a provisoriedade, caracterizando uma contradição notória. Porém, ainda pior que o acolhimento institucional prolongado é a inserção da criança ou do adolescente em um ambiente familiar que não está adequado às suas necessidades ou que não deseja espontaneamente acolher um novo membro.

Manter uma criança ou adolescente em um ambiente familiar despreparado e sem comprometimento para com suas particularidades, apenas porque há um entendimento dominante de que os laços consanguíneos são a prioridade, pode acarretar em prejuízos irreversíveis.

Pior do que o acolhimento institucional, certamente, é manter ou inserir a criança ou adolescente em uma família que não a deseja, que não a quer, mas muitas vezes pressionada por órgãos de proteção, acaba aceitando. A criança e o adolescente serão, sempre, objetos de favor, sentir-se-ão rejeitados, com inevitáveis consequências de ordem psicológica e social. O sentimento de pertencer, de sentir-se como parte de um grupo social, é uma das necessidades básicas da criança. A família é o primeiro grupo onde se estabelecem os laços afetivos duradouros, seguros, tão importantes para o seu desenvolvimento. (KREUZ, 2012, p. 84)

O que se extrai da leitura do § 1º do art. 39 do ECA, bem como da doutrina e pesquisas citadas neste capítulo, reflete mais em um privilégio ofertado pela legislação à família de origem, em razão da existência de uma ligação consanguínea entre os envolvidos.

Essa preferência gera a obrigatoriedade de esgotar todos os recursos para a manutenção da criança/adolescente junto à família natural ou extensa, mesmo não existindo norma que limite a quantidade de esforços para a reinserção sem que haja alguma resposta positiva, gerando um prolongamento prejudicial à criança/adolescente em situação de acolhimento. 

Nesse sentido, a prioridade exagerada na manutenção com a família biológica, apenas por existir vínculos consanguíneos, traz prejuízos às crianças/adolescentes de três formas: quando prolonga sua institucionalização, quando impede que tenham a possibilidade de ingressarem em uma família adotiva, e quando há uma reinserção em família natural ou extensa sem a existência real de vínculos afetivos.    

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE, Cecília. Adoção excepcional: um confronto entre o biológico e o afetivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5181, 7 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60108. Acesso em: 25 abr. 2024.

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