1. Introdução
O tema da distribuição de riqueza tem sido objeto de crescente interesse nos últimos tempos. Em 2011, milhares de pessoas se reuniram em Nova York para protestar contra o aumento na concentração da renda nos Estados Unidos. Famosos pelo slogan We are the 99%, os ocupantes de Wall Street são o retrato da popularidade do tema no debate público. Em 2013, com a publicação de O Capital no Século XXI, o economista francês Thomas Piketty incendiou o debate acadêmico, colocando a questão distributiva no centro das análises econômicas ao apresentar suas impressionantes séries históricas sobre a distribuição da renda e riqueza.
Este estudo busca situar a questão distributiva no debate acerca das consequências fáticas das decisões tomadas pelo Judiciário. Saber se a atuação das instituições judiciais está de alguma maneira conectada às forças de divergência ou convergência da concentração da riqueza permite alcançar uma compreensão mais profunda sobre o papel desse Poder, tradicionalmente visto como órgão imparcial e responsável pela pacificação social, assim como pela garantia e efetivação dos direitos, especialmente das minorias. A unidade de análise da pesquisa consiste em um conjunto de decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal acerca do critério de concessão do Benefício de Prestação Continuada – BPC.
A escolha do caso do BPC se justifica pelo fato de tratar-se de matéria com inevitável repercussão distributiva, haja vista dizer respeito ao âmbito de abrangência de uma política pública de transferência de renda. O referido benefício está previsto no artigo 203, inciso V, da Constituição de 1988 e foi regulamentado pela Lei nº 8.742/93 – Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Consiste na garantia de um salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 65 anos ou mais que não possuem meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
A controvérsia que agitou o Judiciário diz respeito à compatibilidade entre o preceito constitucional que institui o benefício e o respectivo critério de concessão, previsto no § 3º, do artigo 20, da LOAS. O BPC foi inicialmente programado para focalizar as famílias com renda mensal per capita inferior a um quarto do salário-mínimo. Tal critério foi visto como sendo excessivamente restritivo, motivo pelo qual foram ajuizadas diversas ações na Justiça buscando realizar a prova da condição de miserabilidade por outros meios para fins de concessão do benefício.
O relatório divide-se em cinco partes, incluída esta introdução, a qual corresponde à seção 1. Na seção 2, será discutida de modo mais pormenorizado a relevância do estudo da desigualdade no Brasil, país marcado pela existência de elevado índice de pobreza, bem como a análise da literatura acerca do papel das instituições estatais brasileiras na produção de desigualdades. Na seção 3, será abordado o caso da Suprema Corte americana. Na seção 4, serão apresentados os argumentos e dados utilizados pelo STF para decidir acerca do critério de concessão do BPC. Por fim, na seção 5 serão expostas as principais conclusões do estudo.
2. Desigualdade, pobreza e instituições públicas
O rumor em torno do tema do crescimento da desigualdade pode ser explicado por razões de ordem moral, política e econômica. Segundo alguns, a desigualdade elevada implicaria em ineficiência econômica, porque os mais ricos estariam mais preocupados com especular do que com produzir3. Sob a perspectiva moral, as teorias da justiça de base igualitarista prescrevem justificar-se a desigualdade apenas quando puderem se reverter em benefícios aos menos favorecidos. Do ponto de vista político, sabe-se que o dinheiro possui alta influência nos processos democráticos, seja no que se refere ao financiamento de campanhas, seja em relação à capacidade de influenciar a legislação ou de capturar agências reguladoras.
Identificar quais são as forças de divergência – aquelas que atuam em direção ao aumento da desigualdade – é uma importante tarefa da Economia, assim como das demais ciências sociais. Na esteira de pesquisas que buscaram identificar forças de divergência na atuação do Estado, este estudo busca investigar se as instituições judiciais também contribuem para o aumento da desigualdade, assim como de que forma o fazem. A hipótese, nas palavras de Stiglitz (2012), é a de que “toda lei, toda regulação, todo arranjo institucional possuem consequências distributivas”. Essa intuição é reforçada ao se considerar a observação de Gilman (2014) no sentido de que, se, de um lado, cabe à política instituir às leis, de outro, é o Judiciário o responsável por interpretá-las e aplicá-las.
Com efeito, em pesquisa realizada com o objetivo de medir os efeitos distributivos do gasto público, Medeiros e Souza (2007) mostraram que o Estado responde por grande parte da desigualdade de renda verificada no Brasil. O pagamento de altos salários aos seus servidores, comparativamente maior em relação aos empregos similares no setor privado, e a existência de regimes de previdência diferentes para empregados privados e servidores públicos, com amplos benefícios a estes, são fatores que contribuem para a surpreendente circunstância de cerca de um terço da desigualdade observada no país estar associada às transferências feitas pelo Estado às pessoas.
3. O caso americano
Em artigo intitulado The Court for the One Percent, Michele Gilman examina o papel da Suprema Corte americana na produção de desigualdades sociais. A estratégia empregada pela pesquisadora consistiu em localizar os principais fatores que, segundo a literatura econômica, contribuem para o aumento da desigualdade, sendo identificados os seguintes: i) a existência de um sistema educacional incapaz de fazer face às exigências de qualificação de uma economia baseada em tecnologia de ponta e na qual os empregos de baixa remuneração foram substituídos por computadores ou transferidos para países de terceiro mundo; ii) a falta de uma rede de assistência social forte; iii) a existência de políticas públicas que beneficiam interesses do mercado em detrimento de consumidores e empregados; e iv) a alta influência do dinheiro nos processos políticos de tomada de decisão.
Em seguida, foram analisados casos da Suprema Corte americana relacionados a cada uma dessas temáticas. No tocante ao tema da assistência social, que interessa diretamente a este estudo, a Corte desenvolveu, por exemplo, a doutrina segundo a qual a Constituição Americana, por si só, não garante remédios jurídicos para problemas econômicos e sociais. Em conclusão, afirma a autora que a Suprema Corte contribui para o aumento da desigualdade prestando deferência aos atos do governo de modo seletivo, a depender de tratar-se de atos que produzem desigualdade ou que concorrem para a respectiva redução.
4. O Caso do BPC
Em certa medida, a estratégia metodológica desta pesquisa assemelha-se à empregada por Gilman, na medida em que, inicialmente, buscaram-se casos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federais diretamente conectados à temática distributiva. Como o objetivo consiste em observar qual a maneira utilizada pelo Tribunal para julgar casos com alto impacto distributivo, o caso a ser analisado deveria ter como característica a existência de ampla discussão, da qual fizesse parte o maior número possível de ministros, de modo a retratar, ainda que heuristicamente, a posição institucional da Corte em face de temas dessa natureza.
A escolha dos processos relativos ao BPC foi realizada com base nesses princípios metodológicos, de modo a possibilitar o emprego da técnica do estudo de caso. Algumas razões que motivaram essa escolha são: i) a possibilidade de as decisões tomadas pelo Tribunal estarem dentre aquelas com o maior impacto distributivo de sua história, tendo em vista a natureza assistencial e, portanto, prestacional do direito discutido, assim como o fato de que as duas decisões relevantes foram tomadas, respectivamente, em controle concentrado de constitucionalidade e sob a sistemática da repercussão geral, de modo que os efeitos da decisão projetam-se em todo o território nacional; ii) o caso retrata uma mudança jurisprudencial acerca do critério de focalização do benefício, o que permite analisar quais argumentos e dados foram (re)considerados; e iii) os dois acórdãos estudados apresentam divergência, a permitir o contraponto das teses sustentadas.
4. I. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.232-1/DF
O BPC foi instituído pela Constituição de 1988, mas passou a ser efetivamente concedido com a entrada em vigor do diploma que o regulamenta, a Lei nº 8.742, fato que só ocorreu em dezembro de 1993. Em 1999, o Procurador-Geral da República ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI, buscando impugnar o artigo 20, § 3º, da LOAS, ao argumento de que o critério de concessão eleito pelo legislador permitiria que situações de evidente miserabilidade não fossem consideradas dentro do alcance do benefício.
De modo simplificado, duas posições podem ser identificadas nesse julgamento. A primeira sustentou a necessidade de conferir ao dispositivo objetado interpretação conforme a Constituição, no sentido de que o parâmetro da lei – renda familiar per capita inferior a um quarto do salário mínimo – consiste em presunção absoluta de miserabilidade, não se afastando a possibilidade de ser comprovada por outros meios, em juízo, a incapacidade de o requerente prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.
A segunda posição, vencedora, defendeu o seguinte: “O gozo do benefício depende de comprovar na forma da lei, e esta entendeu de provar dessa forma [referindo-se ao critério de concessão]”. Algumas considerações merecem ser feitas a respeito dessa posição. Primeiramente, o pronunciamento não endereça em nenhum momento o potencial reflexo distributivo da decisão, crítica que também se aplica à primeira posição. Apesar da complexidade do tema, a argumentação do Tribunal se dá no vazio, desprovida da necessária compreensão acerca dos fatos, tendo em vista a ausência de articulação com dados e informações relativas aos gastos com as transferências referentes ao BPC.
Em segundo lugar, há nítido descompasso entre a relevância da questão discutida, considerado o elevado impacto distributivo e orçamentário da decisão, e o esforço do Tribunal em declinar razões suficientes para sustentar a tese adotada. Nesse sentido, é oportuno destacar que os órgãos judiciais legitimam suas decisões à medida que se desincumbem de modo adequado do ônus argumentativo que pesa sobre as suas costas. À falta de adequada compreensão fática e ao deficit argumentativo apresentado soma-se o impacto distributivo da decisão. A deferência à decisão do legislador se deu em tema sensível em relação à desigualdade de renda – a assistência social –, de modo semelhante ao observado por Gilman no contexto da Suprema Corte dos EUA.
4. II. Recurso Extraordinário nº 567.985/MT
O pronunciamento do Supremo em controle concentrado de constitucionalidade não pôs fim à controvérsia. Penalva, Diniz e Medeiros (2010) dão conta de que as pessoas não deixaram de ir ao Judiciário em busca do benefício. Em face da condição de pobreza dessas pessoas, os juízes, ainda que não observado o critério da lei, deferiam os pedidos de concessão. Essa circunstância, segundo narram os autores, fez com que o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS ingressasse com inúmeras reclamações perante o Supremo, aduzindo inobservância à decisão proferida no processo objetivo.
Nesse contexto de sistemático desrespeito à autoridade da decisão, portadora de eficácia vinculante e efeito erga omnes, o Tribunal reconheceu, em fevereiro de 2008, a repercussão geral de recurso extraordinário com objeto idêntico ao das reclamações ajuizadas pelo INSS. No caso, a Turma Recursal, mantendo a sentença em que se julgara procedente o pedido para conceder o BPC, adotou o entendimento de que o parâmetro legal não seria absoluto, cabendo ao Judiciário adequá-lo às exigências do caso concreto, considerado o princípio da dignidade da pessoa humana. A miserabilidade do requerente restou comprovada mediante perícia socioeconômica realizada no processo.
Em abril de 2013, mais de uma década após a decisão tomada em sede de controle concentrado, o Tribunal, julgando o mérito do referido recuso extraordinário, reviu a ótica adotada naquela ocasião e declarou a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do artigo 20, § 3ª, da LOAS. Pelo menos três posições foram sustentadas pelos membros do Colegiado. Diferentemente do ocorrido no primeiro julgamento, os votos foram longos e enfrentaram questões atinentes não apenas ao discurso jurídico-dogmático, tendo sido considerados, também, aspectos políticos, econômicos e orçamentários.
A estranha posição adotada pelo relator foi no sentido de afastar a aplicação da regra contida no dispositivo impugnado sem, todavia, declarar-lhe a inconstitucionalidade. Segundo salientou, a lei, ao menos em abstrato, permaneceria válida – o que equivaleria a dizer que a decisão proferida na ADI nº 1.232-1 não foi equivocada –, mas a sua aplicação concreta conduziria a resultado inconstitucional. Apesar dessa excêntrica solução, o relator considerou importantes elementos ao apreciar a questão. Confira-se, a esse respeito, trecho de seu voto:
[...] o orçamento, embora peça essencial nas sociedades contemporâneas, não possui valor absoluto. A natureza multifária do orçamento abre espaço para encampar essa atividade assistencial que se mostra de importância superlativa no contexto da Constituição de 1988. É preciso ter presente o que o saudoso jurista argentino Bidart Campos denominou de prioridade orçamentária dos direitos fundamentais, consubstanciada no dever “de destinar aos direitos sociais e aos condicionamentos que os fazem viáveis uma dotação de recursos e gastos na maior dimensão possível”.
Além de enfrentar a questão orçamentária e a importância da efetivação dos direitos sociais, o ministro, na parte do voto referente ao relatório, reporta-se à manifestação do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – Anis, admitida no processo como amicus curiae, na qual a assistente contribuiu com interessante estudo acerca de aspectos do orçamento da previdência. Segundo assinalou, a alteração do critério, de um quarto para meio salário mínimo, implicaria custo adicional de 8,9 bilhões de reais, quantia inferior a 3% do orçamento previdenciário total, a qual considerou absorvível pela capacidade financeira da União.
Embora vencida, cumpre fazer o registro da posição endossada por outros dois ministros no sentido da constitucionalidade do critério então vigente. O argumento central dessa posição consiste no fato de que o critério legal decorre de deliberação do Congresso Nacional, que teria feito cálculos financeiros e chegado a um valor que seria aquele com o qual o Estado poderia arcar, identificado com a reserva do possível. Disse não caber ao Judiciário estabelecer políticas públicas. Mais adiante, observa que o Brasil vive um cenário de crise econômica, e que a previdência seria a primeira a sofrer com as consequências.
Essa posição, embora pareça mais fundamentada do que a prevalecente no julgamento da ADI, nutre-se do mesmo espírito que aquela. A deferência ao legislador, aqui, justifica-se com base em determinada leitura da Constituição que atribui pouca ou quase nenhuma força aos direitos sociais. Articula, ainda, com argumento – ad terrorem – referente à crise econômica pela qual atravessaria o país. É dizer: direitos de prestações essenciais à vida de pessoas portadoras de deficiência e idosos pobres não possuem peso nenhum em face de argumentos informados de racionalidade econômica.
A posição vencedora, externada pelo minstro Gilmar Mendes, de seu turno, defende a inconstitucionalização progressiva do critério legal de concessão do BPC. Segundo o argumento, nos anos subsequentes ao julgamento da ADI nº 1.232-1, foram editadas leis instituidoras de outros benefícios assistenciais com critérios de concessão – renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo – menos restritivos (Bolsa Família, Programa Nacional de Acesso à Alimentação, Bolsa Escola). Esse processo, aliado a um conjunto de mudanças políticas, econômicas e sociais, teria resultado na contínua e crescente inconstitucionalização do parâmetro de concessão do benefício.
Algumas considerações podem ser feitas acerca dessa posição. Merece destaque o fato de haver sido considerado o contexto socioeconômico da questão discutida no processo. A referência à criação de outras políticas públicas de transferência de renda com critérios mais elásticos certamente fornece uma justificativa racional para a mudança de entendimento quanto à constitucionalidade do critério.
5. Conclusão
A decisão tomada na ADI nº 1.232-1 é um exemplo de atuação do Judiciário tendente a contribuir para o estado de crescimento dos níveis de desigualdade do país, na medida em que impossibilitou, por mais de uma década, que pessoas portadoras de deficiência e idosos em condição de miserabilidade auferissem a renda decorrente do BPC. Além disso, revelou-se pouco ou mesmo não fundamentada, a despeito da importância do tema no que diz respeito às repercussões distributivas. O julgamento do RE nº 567.985 permitiu avaliar a diferença no modo de decidir questões importantes pelo Supremo em comparação ao julgamento anterior. Melhor fundamentada e amplamente deliberada, a decisão representou um corretivo e uma virada de rumos do Tribunal em relação ao precedente fixado ainda na década de 1990.
Mas o que está verdadeiramente por trás dessa mudança? O voto vencedor do julgamento do extraordinário, no que se refere a todo momento ao número de reclamações ajuizadas após a decisão da ADI, fornece uma explicação: as pessoas, assistidas na maioria das vezes pela Defensoria Pública, não desistiram de questionar a injusta restrição imposta pela lei e convalidada pelo Supremo Tribunal Federal. Com efeito, a melhor leitura do caso não é a que vê no Supremo o Guardião dos desassistidos, mas, antes, uma instituição pública pressionada e acuada pelo vigoroso controle popular exercido por mais de uma década.