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O caráter coercitivo da Resolução ANTT n. 4.777/2015 na obtenção do termo de autorização de fretamento

04/01/2018 às 10:00
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O ensaio estuda o art. 12 da Resolução Normativa ANTT n. 4.777/2015, que dispõe sobre a impossibilidade de emissão e renovação do termo de autorização de fretamento – TAF – por agentes que possuam multas impeditivas não quitadas.

INTRODUÇÃO

A Resolução ANTT n. 4.777/2015 dispõe sobre a regulamentação da prestação do serviço de transporte rodoviário coletivo interestadual e internacional de passageiros realizado em regime de fretamento.

Inicialmente, cumpre destacar que a prestação do mencionado serviço se dá mediante autorização concedida pela Agência Nacional de Transportes Terrestres, mais especificamente por meio do Termo de Autorização, que consiste em ato da Diretoria da Agência que habilita o transportador a emitir licença de viagem[1] de fretamento turístico ou eventual, bem como a licença de viagem de fretamento contínuo.

O procedimento para obtenção do referido Termo de Autorização compreende a efetuação de cadastro do transportador na Autarquia, mediante requerimento. Na mesma ocasião, devem ser apresentados (i) o contrato social consolidado ou estatuto social da pessoa jurídica; (ii) prova de regularidade fiscal e trabalhista, perante a ANTT; e (iii) Certificado de Cadastro no Ministério do Turismo, sendo este dispensado caso o transportador não exerça atividade de transporte rodoviário coletivo interestadual ou internacional, ambos em regime de fretamento turístico.

Contudo, note-se, o art. 12 da Resolução n. 4.777/2015 traz relevante óbice ao cadastramento e recadastramento de agentes quando estes possuem débitos relativos à Autarquia:

“Art. 12. O cadastramento e o recadastramento somente serão realizados se não constar multa impeditiva do transportador ou da autorizatária junto à ANTT.”

Portanto, o que se pretende com o presente estudo é ponderar a constitucionalidade do ato normativo que, embora provenha de decisão de mérito administrativo, cerceia o livre exercício da atividade econômica.


DO LIVRE EXERCÍCIO DE ATIVIDADE ECONÔMICA

A Constituição Federal, por meio do parágrafo único de seu art. 170, consagra o direito ao livre exercício de atividade econômica. Vejamos:

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios”

[...]

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. ”

Com base nesse dispositivo, pode-se concluir que o constituinte originário estabeleceu teleologia no sentido de reduzir empecilhos burocráticos que impedissem o exercício da atividade econômica, salvo disposições legais.[2]

Evidente que o constituinte não pretendeu excluir por completo a atuação estatal em face do exercício da atividade econômica, como se depreende do art. 174 da Constituição Federal, de seguinte dicção:

“Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.”

Assim, não é defeso ao Estado utilizar-se de suas prerrogativas constitucionais a fim de, por meio da confluência entre os poderes regulador e de polícia, promover a aplicação de sanções fundamentalmente políticas.

Acerca da referida modalidade sancionatória, assim se manifestou o Relator, Min. Joaquim Barbosa, no bojo do Recurso Extraordinário n. 550.769/RJ:

“Entende-­se por sanção política as restrições não­ razoáveis ou desproporcionais ao exercício de atividade econômica ou profissional lícita, utilizadas como forma de indução ou coação ao pagamento de tributos.”

Em outro voto relevante à constituição de entendimento sobre a matéria, lecionou o Min. Celso de Mello no RE 205.193:

“A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro. Razões de Estado – que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo – não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição.”

No caso concreto, a ANTT inviabiliza o cadastramento e o recadastramento de transportadores com base na existência de débito relativo a multas aplicadas pela entidade autárquica.

Assim, a Agência condiciona a obtenção do Termo de Autorização, cuja emissão está inserida na esfera de seu poder-dever, ao pagamento de débitos. Isso é, há uma instrumentalização dos expedientes administrativos, utilizados como via transversa à persecução de créditos, a fim de coibir a inadimplência dos agentes que desejam se cadastrar ou recadastrar.


DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

Ainda em sede constitucional, o art. 5º, que elenca direitos fundamentais e indisponíveis, em seus incisos LIV - “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” – e LV – “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

As referidas disposições normativas trazem à ordem constitucional as garantias do devido processo legal e do contraditório e da ampla defesa. Garante direitos indisponíveis e fundamentais à existência do Estado Democrático de Direito, pois “impede que as liberdades públicas fiquem ao arbítrio das autoridades executivas, legislativas e judiciais[3]”.

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Ademais, para compreensão mais íntegra das garantias suscitadas, faz-se necessário destacar que, “embora o constituinte só tenha mencionado, no art. 5º, LIV, a liberdade e a propriedade, a cláusula em estudo é bem mais ampla, porque os direitos e garantias da Carta de 1988 ‘não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’ (CF, art. 5º, §2º)[4]”.

Isso posto, cabe também a análise do ato normativo exarado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres sob a perspectiva do devido processo legal.

Preliminarmente, é necessário destacar que existe procedimento adequado à cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública, o qual é descrito nos termos da Lei n. 6.820/1980.

O referido diploma legal traz as seguintes disposições:

“Art. 1º - A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta Lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil.

Art. 2º - Constitui Dívida Ativa da Fazenda Pública aquela definida como tributária ou não tributária na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, com as alterações posteriores, que estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.

§ 1º - Qualquer valor, cuja cobrança seja atribuída por lei às entidades de que trata o artigo 1º, será considerado Dívida Ativa da Fazenda Pública.

§ 2º - A Dívida Ativa da Fazenda Pública, compreendendo a tributária e a não tributária, abrange atualização monetária, juros e multa de mora e demais encargos previstos em lei ou contrato.”

Depreende-se, portanto, que, por se tratar de autarquia federal, a ANTT está sujeita à dicção da Lei n. 6.820/1980.

Se sujeita à legislação supracitada, como de fato o é, a exigência de quitação de débitos para obtenção do Termo de Autorização não se faz razoável, visto que, munida de caráter coercitivo em face do transportador, possibilita a aplicação de sanção sem o devido processo legal.                       

A Lei n. 6.829/1980 regulamenta a cobrança da Dívida Ativa justamente no intuito de torná-la compatível com as disposições constitucionais.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou em diversas oportunidades no sentido de que a pretensão estatal à persecução creditória não pode sobrepor-se ao devido processo legal, bem como ao livre exercício de atividade econômica, conforme exposto no tópico anterior. Os recorrentes dispositivos nesse sentido culminaram na edição de três súmulas da Corte Constitucional acerca de mérito similar:

Súmula 70

É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.

Súmula 323

É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos

Súmula n. 547

Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.

Assim, a Resolução ANTT n. 4.777/2015 viola também o princípio do devido processo legal, bem como o princípio do contraditório e da ampla defesa, ambos com sólido amparo constitucional.


CONCLUSÃO

Por fim, restou evidente que o art. 12 da Resolução ANTT n. 4.777/2015 confronta os princípios constitucionais do livre exercício de atividade econômica e do devido processo legal.

Quanto ao cerceamento do livre exercício de atividade econômica, por questões conjunturais de origem econômica, cabe a crítica no sentido de que o país vive cenário delicado para a economia interna, de forma que o Estado, sem abrir mão da necessária regulação que lhe compete realizar, deveria fomentar a prestação de serviços e produção de bens de consumo. O ato normativo da Autarquia, ao contrário, vai em sentido oposto.

No tangente ao princípio do devido processo legal, pilar do Estado Democrático de Direito, não se pode permitir violação a esta garantia. Sua devida observância se faz fundamental à Administração Pública, cujo poder coercitivo pode causar graves impactos na esfera de particulares.

Conclui-se, então, pela inconstitucionalidade do art. 12 da Resolução ANTT n. 4.777/2015.


Notas

[1] Documento que deverá ser emitido pela autorizatária, antes do início de cada viagem, em sistema disponibilizado para esse fim pela ANTT.

[2] BAGNOLI, Vicente. Direito Econômico, 3ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008, p.68

[3] BULOS, Uadi Lamêgo; Curso de Direito Constitucional, 7ªed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p.681

[4] BULOS, Uadi Lamêgo; Curso de Direito Constitucional, 7ªed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p.682

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUSMÃO, João Paulo. O caráter coercitivo da Resolução ANTT n. 4.777/2015 na obtenção do termo de autorização de fretamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5300, 4 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60292. Acesso em: 21 nov. 2024.

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