O poder constituinte derivado e as suas limitações atuais

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08/09/2017 às 13:25
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A importância do poder constituinte derivado para a atualização do texto constitucional, principalmente em face dos desafios contemporâneos, é indiscutível. Porém, mais indiscutível ainda é a necessidade de que seus limites sejam observados, sob pena de seus objetivos precípuos não serem alcançados. Saiba um pouco mais sobre isso.

RESUMO: O presente artigo visa analisar o poder constituinte derivado, definindo as suas principais características e limitações. Dentre essas várias limitações, destacar-se-á a sua limitação formal, que dificulta a modificação de textos constitucionais; a sua limitação circunstancial, que impede reformas em momentos de grave crise institucional; a sua limitação temporal, que confere maior estabilidade à Constituição; e, por último, mas não menos importante, destacar-se-á a sua limitação material e a sua importante correlação com as cláusulas pétreas, presentes na Constituição de 1988.   

Palavras-chave: Poder Constituinte Derivado; limitação formal; limitação temporal; limitação circunstancial; limitação material; cláusulas pétreas; Constituição de 1988.


INTRODUÇÃO  

  Nos dias atuais, discute-se a respeito do poder constituinte derivado e até onde ele pode exercer a sua capacidade de reforma constitucional. Embora ele seja necessário para atualizar a Constituição diante das mudanças rápidas que ocorrem na sociedade atual, ele também deve possuir certos limites, a fim de que não se sobreponha ao poder que lhe originou.

Assim, dentre os diversos limites presentes, destacar-se-á o limite formal que, dentre outros aspectos, dificulta a alteração dos textos constitucionais; o limite temporal, que garante uma estabilidade para a Constituição; o limite circunstancial, que não permite modificações no texto constitucional durante períodos de instabilidade política; e o limite material, que possui uma correlação com as cláusulas pétreas atuais.

O limite formal está presente no art. 60, caput e parágrafos 2º e 3º da Constituição. Ele impede que sejam aprovadas emendas constitucionais que desrespeitem os principais princípios da Constituição atual, bem como aquelas que não respeitam os procedimentos formais de aprovação, tais como o poder de iniciativa relativo aos projetos de reforma e o número mínimo de parlamentares que são necessários para a aprovação dessas emendas. 

O limite circunstancial está presente, também, no art. 60, parágrafo 1º. Conforme será visto adiante, tal limite impede que as emendas constitucionais sejam aprovadas em períodos de grave instabilidade, que ocorrem, por exemplo, quando se decreta estado de sítio. Dessa forma, esse limite tenta preservar a Constituição de mudanças autoritárias, respeitando o processo democrático de reforma e a soberania política do povo brasileiro.

Já o limite temporal está presente no artigo 60, parágrafo 5º da Constituição atual. Ele proíbe que projetos derrotados sejam postos em votação novamente em pouco tempo, além de estabelecer um prazo para a revisão constitucional, garantindo, portanto, que haja uma maior eficiência legislativa e um controle rígido ao poder constituinte derivado e à sua capacidade de reforma constitucional.   

O limite material, por sua vez, está relacionado com as cláusulas pétreas, que, de certa forma, impedem que sejam alterados princípios essenciais da Constituição de 1988, tais como o Estado democrático de direito, o voto secreto e universal e o federalismo. Portanto, ocorre um “entrincheiramento” desses princípios, que são retirados do alcance do poder constituinte de reforma, preservando, assim, a essência material da Constituição.

 Contudo, embora existam esses limites, muitas vezes eles são alvos de discussões doutrinárias, que tentam compreender até que ponto eles são necessários para restringir o poder de reforma constitucional. Portanto, como esse é um tema complexo, discutir-se-á aqui esses limites e as suas relações com o poder constituinte derivado, bem como as suas principais características, que estão presentes na Constituição brasileira de 1988.


O PODER CONSTITUINTE DERIVADO

O poder constituinte derivado, instituído e limitado pelo poder constituinte originário, consiste na capacidade de os Estados-membros conceberem e alterarem as suas constituições estaduais e, nos casos dos municípios, de editarem e modificarem as suas leis orgânicas municipais. Além disso, o poder constituinte derivado pode ser utilizado para atualizar ou reformar a Constituição atual, seja por meio de revisões periódicas, seja por meio de emendas constitucionais.

Por conta dessas várias possibilidades de alterações, o poder constituinte derivado dividiu-se em três subespécies: poder reformador, poder decorrente e poder revisor. O poder reformador serve para modificar as normas constitucionais já existentes através de emendas constitucionais, a fim de atender as necessidades da sociedade contemporânea.

Já o poder decorrente é o poder dos Estados-membros para elaborar e modificar as suas próprias constituições, garantido, dessa forma, uma maior autonomia para esses entes federativos. E, por último, o poder revisor, conhecido também como poder anômalo de revisão, destina-se a atualizar a Constituição, a fim de colocá-la, de fato, em sintonia com a realidade atual do país, em seus mais diversos aspectos.      

De qualquer forma, o poder constituinte derivado não se confunde com o poder constituinte originário, pois, enquanto este último é ilimitado e incondicionado, o poder constituinte derivado é subordinado e condicionado. Assim, ele é subordinado pois acaba se submetendo aos limites impostos pelo poder constituinte originário, e é condicionado pois ele deve ser exercido conforme os procedimentos especificados pela Constituição.  

Por conta dessa subordinação, o poder constituinte derivado possui uma série de limitações, a fim de que ele não se sobreponha ao poder constituinte originário. Dentre essas limitações, convém destacar a limitação formal, que dificulta a alteração de textos constitucionais; a limitação circunstancial, que impede reformas em momentos de grave crise institucional; a limitação temporal, que confere maior estabilidade à Constituição; e a limitação material, que possui correlação com as cláusulas pétreas da Constituição.  

Por último, fala-se, ainda, sobre outras classificações relacionadas aos limites do poder de reforma constitucional. Eles podem ser imanentes (positivados, expressos ou tácitos, na própria Constituição) ou transcendentes (relacionados a outro plano jurídico exterior ao texto constitucional), bem com podem ser explícitos (claramente escritos na Constituição) ou implícitos (revelados por meio de um procedimento hermenêutico), assim como podem ser absolutos (superados somente com uma ruptura constitucional) ou relativos (ultrapassados por meio de procedimentos complexos). De qualquer modo, esses limites são juridicamente vinculantes, podendo ser objetos de uma proteção judicial, por meio do controle abstrato ou concentrado de constitucionalidade.


OS LIMITES FORMAIS

Os limites formais de controle ao poder de reforma constitucional dizem respeito ao modo como pode ser modificado o texto constitucional. Esses limites são o principal mecanismo para se constatar a dificuldade de alteração formal de uma Constituição, pois, quanto mais difícil for o processo de modificação constitucional, menor será o número de alterações aprovadas. Algumas Constituições preveem procedimentos diferentes para a reforma do seu texto, de acordo com o tema ou a extensão das alterações pretendidas. 

No caso da Constituição de 1988, os limites formais estão positivados no art. 60, caput e parágrafos 2º e 3º, do texto constitucional.  O primeiro limite diz respeito sobre o poder de iniciativa. Enquanto alguns defendem que a inciativa deva partir do poder legislativo, conforme cita o art. 60 da Constituição, outros defendem que a iniciativa também deva partir da iniciativa popular, pois deve-se interpretar a Constituição conforme o seu ideal democrático e o seu respeito à soberania popular. Contudo, embora essa última corrente seja adotada por alguns doutrinadores atuais, infelizmente, até o presente momento, não houve nenhuma proposta de emenda constitucional popular.

O segundo limite formal de reforma constitucional dispõe sobre a maioria exigida para a aprovação de emendas constitucionais. Essas emendas, depois de serem discutidas e aprovadas em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, só podem ser, de fato, consideradas aprovadas se obtiverem, em ambas as Casas, 3/5 dos votos dos respectivos membros (art.60, parágrafo 2º). Assim, embora seja um limite relativamente complexo se comparado aos projetos de lei ordinária e complementar, ele pode ser superado através de várias coalizações políticas que, não raras vezes, resultam em escândalos de corrupção.

 Se aprovada, a emenda é promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem (art.60, parágrafo 3º). No caso dessa regra, o procedimento é mais simples do que o previsto para a edição das leis ordinárias, já que o projeto aprovado pelo Congresso não é submetido a sanção ou veto do Presidente da República, facilitando, assim, o processo de reforma constitucional.

 Por último, vale ressaltar que a Constituição proíbe que as emendas tentem abolir a forma federativa do Estado brasileiro, bem como o voto direto, a separação dos poderes e os direitos e as garantias individuais (art.60, parágrafo 4º), ressaltando, dessa forma, um outro limite formal para o poder constituinte derivado, que não pode, sob pretexto algum, ferir ou desrespeitar a Constituição e os seus princípios fundamentais.  


OS LIMITES CIRCUNSTANCIAIS E TEMPORAIS

Os limites circunstanciais ao poder de reforma objetivam impedir a aprovação de mudanças constitucionais em épocas de grave crise institucional, nos quais não há uma tranquilidade necessária para a adoção de medidas tão importantes. Na história brasileira, algumas Constituições previram certos limites circunstanciais; por exemplo, destaca-se a Constituição de 1934 (art.178), 1946 (art.50), 1967 (art.50), e 1969 (art.47), que vedaram reformas constitucionais durante a vigência do estado de sítio. 

Atualmente, a Constituição de 1988 prevê, em seu art.60, parágrafo 1º, a proibição de reformas constitucionais “na vigência de intervenção federal, estado de sítio e estado de defesa”. Esse artigo entra em perfeita sintonia com os princípios democráticos atuais, uma vez que não se pode discutir mudanças constitucionais em períodos de turbulência institucional, pois, caso contrário, estar-se-ia desrespeitando e violando as decisões políticas dos cidadãos e, consequentemente, ferindo a soberania popular da sociedade brasileira.  

Já os limites temporais são criados para dar maior estabilidade para a Constituição, impedindo, ou mesmo dificultando, alterações precoces em seu texto positivado, antes que tenha decorrido um prazo mínimo para que a ordem constitucional seja avaliada, ou seja, impõe-se intervalos mínimos para tais alterações, a fim de que se possa evitar reformas excessivas na Constituição. Esses limites, embora necessários, não são muito frequentes nas Constituições, seja devido à rigidez dos seus textos, que impedem mudanças constitucionais, seja devido às outras limitações, que exercem influência sobre o poder de reforma constitucional. 

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 A Constituição de 1988 previu, em seu artigo 60, parágrafo 5º, um limite temporal em relação às suas emendas constitucionais, determinando expressamente que “a matéria constante de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”, ou seja, evita-se, com isso, que um mesmo projeto derrotado seja votado novamente em um curto período de tempo, garantindo, assim, que novos projetos sejam votados. Esse limite está baseado no princípio da racionalização do processo legislativo, que busca garantir uma maior eficácia para o poder legislativo.

  Outro limite temporal, previsto na Constituição de 88, está relacionado à revisão constitucional. Ele estabelece, no artigo 3 do ADCT, que essa seria realizada “após cinco anos, contados da promulgação da Constituição”. Nesse caso, o prazo foi fixado a fim de que houvesse um tempo mínimo suficiente para avaliar os méritos das normas presentes na Constituição, garantido, dessa forma, que houvesse um controle maior em relação ao poder de reforma constitucional.

  Dessa forma, tanto os limites temporais quanto circunstanciais exercem restrições ao poder de reforma constitucional, seja estabelecendo prazos para que se possa garantir uma maior estabilidade para a Constituição, seja proibindo que emendas constitucionais sejam aprovadas em períodos de turbulência, limitando, desse modo, o poder constituinte derivado e a sua capacidade de reforma constitucional.


OS LIMITES MATERIAIS E AS SUAS JUSTIFICATIVAS DOUTRINÁRIAS

Os limites materiais ao poder de reforma referem-se a algumas decisões que não estão, na prática, ao alcance do poder constituinte reformador. Esses limites representam o máximo “entrincheiramento” das normas jurídicas, sendo, dessa forma, chamados por muitos autores de “cláusulas pétreas”, devido ao seu caráter imutável. Até a Segunda Guerra Mundial, não era muito comum a existência de cláusulas pétreas nas Constituições, pois não havia uma distinção precisa entre o poder constituinte originário e o poder constituinte derivado.

Isso mudou com o fim da II Guerra Mundial, pois, diante dos terríveis abusos que foram cometidos durante a guerra, começou-se a popularizar os limites materiais do poder de reforma, bem como a valorização do princípio da dignidade da pessoa humana.

Assim, dentre as novas Constituições do pós-guerra que consagraram diversas cláusulas pétreas, pode-se citar a Lei Fundamental Alemã, de 1949, que protegeu uma série de princípios, tais como a dignidade da pessoa humana, o federalismo, o Estado Social e Democrático de Direito e a soberania popular, e a Constituição Portuguesa, de 1976, que, além de proteger certos princípios e direitos fundamentais, protegeu decisões de ordem econômica e política.  

 No Brasil, os limites materiais ao poder de reforma estiveram presentes em quase todas as Constituições, mas, infelizmente, defendiam apenas a manutenção da República e do Federalismo, ignorando, dessa forma, os direitos e as garantias fundamentais do povo brasileiro. No entanto, isso acabou mudando com a Constituição de 88, que, em seu art.60, parágrafo 2º, defende, além da forma federativa de Estado, o “voto direto e universal”, a “separação dos poderes” e “os direitos e as garantias individuais” do cidadão brasileiro. Assim, percebe-se que essas cláusulas pétreas incorporam, de fato, os pilares mais importantes da Constituição atual, que são os direitos fundamentais e a democracia.

 Entretanto, embora as cláusulas pétreas possuam uma importância inquestionável, a sua mera existência é alvo de controvérsias. De um lado, há autores que defendem que essas cláusulas só serviriam em momento pacíficos, pois limitariam os anseios políticos dos legisladores, mas que, diante de uma crise, seriam facilmente esquecidas em “prol da nação”.

Por outro lado, há doutrinadores que questionam a legitimidade dessas cláusulas, pois elas prejudicariam as decisões políticas das próximas gerações, fenômeno conhecido como “legitimidade intergeracional”. De todo modo, vale ressaltar que, sem esses limites, não haveria nenhuma proteção especial aos direitos fundamentais do cidadão brasileiro, nem haveria limitações às reformas constitucionais. Portanto, as cláusulas pétreas, embora sejam alvo de críticas, são essenciais para a preservação dos princípios constitucionais.

 Desse modo, a fim de justificar as cláusulas pétreas, surgiram, ao longo dos anos, alguns argumentos favoráveis a esses limites materiais. Dentre esses argumentos, convém destacar o da superioridade do poder constituinte originário sobre o poder derivado, o da identidade constitucional, o procedimental e o do neocontratualismo.

    O primeiro argumento diz que as cláusulas pétreas decorrem da decisão do próprio povo, que é o real titular do poder constituinte originário (“todo poder emana do povo”). Assim, os representantes do povo, no exercício dos poderes constituídos, devem apenas “se curvar” a esta decisão política, pois devem respeitar a soberania popular.

Entretanto, esse argumento é questionado devido ao já citado “choque entre gerações”, ou seja, não seria justo que as novas gerações serem governadas pelas velhas, já que isso limitaria o poder políticos das próximas gerações. Portanto, embora seja um argumento importante, a superioridade do poder constituinte originário sobre o poder constituinte derivado, por si só, não consegue justificar as cláusulas pétreas, sendo, desse modo, necessário recorrer a outros argumentos mais consistentes.

   O segundo argumento diz que os limites materiais têm, como função, assegurar a identidade da Constituição, permitindo, assim, que ela seja modificada sem perder a sua essência verdadeira.  Contudo, esse argumento, embora seja importante, acarreta em uma série de críticas, pois, embora reforce os princípios basilares da Constituição, ele impede que o povo exerça a sua autonomia democrática, restringindo, assim, o poder constituinte derivado e a sua capacidade de reforma. Assim, torna-se necessário outros argumentos, a fim de que se possa legitimar as cláusulas pétreas como limites materiais da Constituição.

   O terceiro argumento, o procedimental, diz que os limites materiais servem como estruturas que permitem o funcionamento da vida democrática atual. A única função das cláusulas pétreas seria, portanto, proteger a democracia, garantindo que os seus princípios essenciais sejam respeitados e efetivados no caso concreto. Dessa forma, esse argumento responde o dilema da “legitimidade intergeracional”, pois, ao invés de haver um governo dos “mortos sobre os vivos”, haveria, ao contrário, um autogoverno da geração atual. 

     E, por último, o neocontratualismo defende que as cláusulas pétreas são garantias mínimas para que as pessoas tenham interesse na permanência e na estabilidade política do país. Dessa forma, o neocontratualismo se baseia na ideia de que as limitações ao poder reformador tornam intangíveis as normas constitucionais, sem as quais não há sentido em se fazer parte da comunidade política.

Elas protegem não só as condições essenciais para o funcionamento da democracia, mas também protegem outros direitos básicos, além de certos princípios fundamentais, como a dignidade da pessoa humana. Assim, as cláusulas pétreas não devem proteger interesses corporativos ou ideologias ligadas a grupos sociais específicos. Devem, antes de tudo, estabelecer uma relação intrínseca com a sociedade, a fim de que elas possam proteger os seus direitos e as suas garantias fundamentais.

Desse modo, como se percebe, esses argumentos conseguem justificar, ainda que de forma parcial, a legitimidade das cláusulas pétreas, sendo, pois, indispensáveis para se definir a extensão dos limites materiais da Constituição. Assim, esses limites devem não só garantir direitos fundamentais, como devem respeitar os princípios democráticos, para que o povo possa exercer a sua autonomia política em relação aos desafios atuais.   

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