O poder constituinte derivado e as suas limitações atuais

Exibindo página 2 de 2
08/09/2017 às 13:25
Leia nesta página:

A CONSTITUIÇÃO DE 88 E AS CLÁUSULAS PÉTREAS ATUAIS

  A Constituição de 88, surgida após a ditadura militar, trouxe, em seu texto, várias cláusulas pétreas, sejam relacionadas à estrutura do Estado brasileiro, seja em relação aos direitos e as garantias individuais do cidadão. Dentre essas cláusulas, destacam-se a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; os direitos individuais do povo brasileiro e a separação dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). 

   A primeira cláusula pétrea que será abordada diz respeito ao federalismo, que nada mais é do que um arranjo institucional que envolve a partilha de poder entre as entidades políticas autônomas, que coexistem no interior de um mesmo Estado. Esse modelo busca conciliar diversos interesses políticos existentes, a fim de manter a ordem política vigente. Desse modo, o federalismo envolve a repartição de poderes no âmbito espacial, evitando, assim, a concentração excessiva de poderes em uma única região do país. 

   Portanto, para que se possa falar em federalismo, é preciso que haja uma partilha constitucional de competências entre os entes da federação, bem como é preciso que haja uma autonomia política entre esses entes, a fim de que eles possam gerir os seus próprios recursos e participar nas decisões políticas nacionais. Na Constituição de 88, defende-se o federalismo como uma cláusula pétrea, atribuindo-se competências a cada um dos entes que compõe a Federação.

Em síntese, ela diz que compete à União, dentre outras funções, atuar na área da política externa e das relações internacionais; propor e executar a política de segurança e defesa nacional; e conduzir a economia e as finanças do país. Já em relação aos estados, as suas competências são aquelas que estão fora da área de atuação da União e que não tenham sido expressamente proibidas pela Constituição.

E, por último, aos municípios, a Constituição inova, identificando-os como entes federativos que, dentre outras funções, possuem a capacidade de legislar sobre assunto de interesse local, além de complementar, quando possível, a legislação estadual e federal. Assim, percebe-se que a Constituição de 1988 trouxe, como umas das suas principais características, o respeito ao pacto federativo e aos entes que o compõe, dando autonomia aos estados-membros e aos municípios. 

Outra cláusula pétrea que a Constituição defende diz respeito ao voto, que, dentre outras características, é secreto, direto, universal e periódico. Essa cláusula, em particular, simboliza todo o histórico brasileiro de lutas por democracia e representatividade política. O voto, desse modo, é direto pois ele representa o poder de escolha do povo, que consegue eleger os seus representantes políticos diretamente, sem a intervenção de um órgão especial ou de um instituto colegiado.

Ademais, o voto é secreto, pois permite que o eleitor realize a sua escolha sem ser pressionado por terceiros, evitando-se, dessa forma, o chamado “voto de cabresto”, comum na República Velha. Além disso, o voto é universal pois não é limitado por nenhuma característica econômica ou social, ou seja, não há restrições censitárias ou mesmo políticas, sendo o único critério limitante a idade, já que menores de 16 anos não podem votar. E, por último, ele é periódico pois ocorre regularmente, por meio de eleições em intervalos predefinidos. Portanto, o voto é uma cláusula pétrea bastante respeitada no cenário político brasileiro, sendo, pois, inadmissível a sua retirada da Constituição atual.  

 A Constituição de 88, ao longo do seu texto, deixa claro o seu compromisso com os direitos humanos. Esses direitos foram protegidos por meio das cláusulas pétreas, que garantem um caráter imutável para esses direitos. Dessa forma, os direitos fundamentais, que, até bem pouco tempo atrás, restringiam-se apenas aos direitos individuais do cidadão, como, por exemplo, o direito de propriedade privada e de livre iniciativa, hoje já elencam, também, os direitos sociais (saúde e educação gratuitos), os políticos (votar e ser votado) e os coletivos (preservação do meio ambiente e da cultura nacional), além de respeitar as diferenças entre as pessoas, valorizando grupos que até então eram menosprezados, como o idoso, a gestante, os indígenas e os quilombolas. Desse modo, a Constituição respeita tanto a diversidade do povo brasileiro como assegura direitos que protegem os seus interesses, garantindo, assim, um compromisso com o Estado democrático de direito.  

Vale ressaltar, ainda, que esses direitos e garantias fundamentais estão elencados, principalmente, nos artigos 5º ao 17, bem como estão presentes em outros artigos do texto constitucional. No primeiro caso, fala-se que eles são “formalmente fundamentais”, pois estão expressos e positivados na própria Constituição; já no segundo caso, eles são chamados de “materialmente fundamentais”, pois o seu caráter fundamental não vem da localização da norma que os consagra, mas sim da sua própria natureza. De qualquer forma, ambos são tratados como cláusulas pétreas, uma vez que garantem direitos essenciais para o cidadão, limitando, assim, o poder de reforma constitucional.

A separação dos poderes é outra cláusula pétrea que está presente na Constituição de 1988. A sua origem remonta ao constitucionalismo liberal do século XVIII, que servia para limitar o exercício do poder dos governantes, protegendo, dessa forma, os direitos e as liberdades dos cidadãos. A principal ideia seria, então, evitar a concentração excessiva de poderes nas mãos de uma única pessoa por meio da separação do poder estatal em três (Executivo, Legislativo e Judiciário), diminuindo, assim, o risco do autoritarismo estatal.

No constitucionalismo atual, a mudança no papel do Estado, que se tornou muito mais presente nas relações sociais e econômicas dos países, ocasionou uma suposta crise no princípio da separação dos poderes, pois, cada vez mais, necessitava-se de um Estado forte e atuante, e não de um Estado dividido e enfraquecido. Desse modo, a fim de superar essa suposta crise, esse princípio foi sendo incorporado a outros valores, que vão além da contenção do poder estatal, envolvendo, também, a legitimidade democrática do governo e a eficácia do Estado em face aos novos dilemas do mundo contemporâneo.  

Assim, essa cláusula pétrea presente na Constituição de 88 é de suma importância para a preservação da ordem vigente, mas ela não deve ser analisada de forma tradicional, pois estaria prejudicando a capacidade do Estado de se adaptar à realidade atual do país. Portanto, deve-se flexibilizar esse princípio, a fim de que se possa haver uma integração maior entre os três poderes, pois, somente assim, o Estado poderá superar as adversidades e os desafios atuais da sociedade brasileira, em seus mais diversos aspectos.


OS LIMITES MATERIAIS IMPLÍCITOS E A “DUPLA REVISÃO”

Os limites materiais implícitos seriam aqueles que não estão expressos no artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição, mas que, mesmo assim, ainda são vinculativos. Dentre vários exemplos, pode-se citar a soberania do poder constituinte originário, que é, sempre, superior ao poder constituinte derivado. Contudo, atualmente se discute a possiblidade de modificação dos próprios limites do poder reformador, hipótese conhecida como “dupla revisão”, que consiste em suprimir os limites materiais em questão, para, logo em seguida, promover uma mudança que até então era proibida constitucionalmente. 

A “dupla revisão” é considerada um tema complexo, pois existem doutrinadores que defendem essa possibilidade de reforma pois seria preferível à ruptura constitucional. Por outro lado, há doutrinadores que são contra essa possibilidade, pois violaria a lógica constitucional, já que daria ao poder derivado uma supremacia igual ou superior ao poder originário. Além disso, questiona-se essa “dupla revisão”, pois daria poderes ilimitados ao poder derivado, permitindo que se alterasse os seus limites sempre que fosse possível, eliminando os seus obstáculos jurídicos e favorecendo, assim, a fraude constitucional.

 Assim, deve-se preferir a tese de que os limites materiais de revisão não admitem modificações, pois, caso contrário, deixaria as cláusulas pétreas irrelevantes, colocando, dessa forma, em risco valores fundamentais da democracia brasileira. Além disso, se a “dupla revisão” fosse admitida, a Constituição passaria a aprovar emendas contrárias aos seus princípios, ou seja, diante do clamor popular contra a violência urbana, emendas a favor da pena de morte e da tortura seriam aprovadas facilmente, desrespeitando, assim, o núcleo material, a essência democrática da própria Constituição.  

  Outro exemplo de limite material implícito que deve ser respeitado é o do Estado democrático de direito, que visa conciliar o autogoverno do povo com a garantia dos seus direitos individuais. Esse limite está implícito pois, basicamente, ele está representado em outras cláusulas pétreas, conforme visto anteriormente. Portanto, embora ele não esteja explícito na Constituição, o Estado democrático de direito pode ser considerado, de fato, uma cláusula pétrea, pois ele se encontra presente na essência da Constituição atual.

  Portanto, os limites materiais implícitos, apesar de não estarem expressos no texto constitucional, são de suma importância para a preservação dos princípios essenciais que são inerentes à Constituição atual. Assim, não se pode modificar esses limites implícitos sob o pretexto de não estarem positivados, pois, caso contrário, corre-se o risco de haver diversas fraudes constitucionais, que prejudicariam não só a Constituição, mas também o povo brasileiro como um todo. Desse modo, preservar os limites materiais implícitos não é só uma maneira de “frear” o poder de reforma do poder constituinte derivado, mas serve, também, para proteger a essência, o núcleo material da Constituição brasileira de 1988.


CONCLUSÃO         

Conforme foi visto, o poder constituinte derivado pode ser utilizado para atualizar ou reformar a Constituição atual, seja por meio de revisões periódicas, seja por meio de emendas constitucionais. Devido a essas várias possibilidades de modificação, surgiram, ao longo da nossa trajetória constitucional, diversos limites, cujo objetivo é impedir que o poder de reforma constitucional seja exercido discriminadamente, respeitando, assim, os princípios essenciais da Constituição brasileira de 1988. 

O primeiro limite abordado, o limite formal, é hoje alvo de controvérsias, pois, embora seja essencial para a aprovação das emendas constitucionais, ele impede que haja uma maior agilidade durante a votação dos projetos legislativos, que, muitas vezes, ficam “parados”, sem serem votados por muitos anos, simplesmente por não terem cumprido os requisitos formais do processo de reforma constitucional. 

O segundo limite, o limite circunstancial, é de suma importância para se evitar que haja modificações constitucionais durante períodos autoritários, infelizmente, comuns na trajetória constitucional brasileira. Dessa forma, conclui-se que esse limite, positivado na Constituição de 1988, garante que sejam respeitadas as decisões políticas dos cidadãos, preservando, assim, a soberania popular da sociedade brasileira.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

O terceiro limite, o limite temporal, confere uma maior estabilidade à Constituição e dificulta mudanças precoces em seu texto. Embora esse limite não esteja muito presente nas constituições de outros países, no Brasil, ele exerce uma função de suma importância, pois impede que projetos rejeitados sejam votados novamente em uma mesma sessão, ou seja, garante-se, com isso, uma maior eficácia ao poder legislativo, limitando, dessa forma, o poder constituinte derivado e a sua capacidade de reforma constitucional.

O quarto limite, o limite material, está relacionado com as cláusulas pétreas, que, de certa forma, protegem vários direitos e garantias fundamentais, “entrincheirando-os” no texto constitucional. Muitos doutrinadores questionam a existência dessas cláusulas, mas, hoje em dia, elas são justificadas por alguns argumentos teóricos, tais como o da superioridade do poder constituinte originário sobre o poder derivado, o da identidade constitucional, o procedimental e o do neocontratualismo, que, em suma, conseguem justificar as cláusulas pétreas e a sua existência na Constituição de 1988.

Assim, conclui-se que esses limites, embora não sejam perfeitos, restringem, com certa competência, o poder de reforma do poder constituinte derivado, dificultando o seu âmbito de atuação, a fim de que se sejam respeitados o poder constituinte originário e os princípios fundamentais da Constituição brasileira de 1988.

Portanto, o poder constituinte derivado é importante, sem dúvida, para a atualização do texto constitucional em face dos novos desafios contemporâneos, mas ele deve respeitar esses limites, pois, só assim, haverá uma adequação democrática entre a realidade atual do país e a Constituição de 88.


BIBLIOGRAFIA

Constituição Brasileira de 1988.   

SARMENTO, Daniel; NETO, Cláudio Pereira de Souza. Direito Constitucional: Teoria, história e métodos de trabalho.   

BORNIN, Daniela Queila dos Santos. Limitações ao poder constituinte reformador. 

PATERNO, Hanna. Limites ao Poder Constituinte Derivado. 

ANNES, Ana Claudia Manikowski. Limites ao Poder Constituinte Derivado Reformador. 

CAFFARATE, Viviane Machado. Federalismo: Uma análise sobre sua temática atual. 

COUCEIRO, Júlio Cezar. Princípio da Separação de Poderes em corrente tripartite. 

FERREIRA, Olavo Augusto Viana Alves; BERNARDES, Juliano Taveira. Proposta de revisão da Constituição é inconstitucional. 

ADÃO, Marco Aurélio Alves. Limitações implícitas ao poder reformador da Constituição. 

MENDES, Gilmar Ferreira. Os limites da revisão constitucional. 

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos