Aprendemos com clareza no século XXI que a realidade não é dogmática e que não pode ser entendida, apreendida, empregando-se dogmatismos. Na esfera da Ciência Política, aprendemos na prática que a cidadania não se limita ao exercício do voto livre, secreto e exercido com soberania. Ainda que seja essencial postular a (i)legitimidade da representação política, a Política não se deduz somente do sufrágio universal.
Para sair desta armadilha, um partido político – assim definido, de acordo com a tradição da Teoria Política e do Estado – poderá fazer uso inovador da representação adotando as metas e as técnicas globalizadas; porém, para tanto terá de sacrificar o dogma da territorialidade. Para além do pleito regimentar eleitoral, sua temática deverá ser plural e transversal ao nacionalismo. Ainda que a Política seja abalada por dogmatismos – vide o terrorismo, os puristas liberais, o fascismo – a realidade nos confrontou com o Princípio da Indeterminação.
Como atualização da Política – uma Polis multifacetada – quem nunca patrocinou um abaixo-assinado, mesmo de efeito meramente moral, posicionando-se diante de um fato “escandaloso” ocorrido do outro lado do mundo e longe dos seus problemas imediatos? Alguém poderá dizer que isto não é o exercício da cidadania? Como não seria, se a cidadania requer precipuamente o direito à livre participação e manifestação de acordo com as pautas democráticas? Esta forma de agir na Política, desterritorializada, conflagrou uma Cidadania Profunda: indo à raiz das questões.
E a questão mais solene dos tempos atuais está na incapacidade da tradição resolver os problemas mais complexos. Como uma rede (complexus), as tramas e os dramas põem o Estado, o direito, os institutos mais reconhecidos (família) em estágio de ebulição. A representação, como vimos, terá de se haver com a persona digital: em que os anônimos repaginam o espaço público (para o bem e para o mal).
Juridicamente, se a tradição ensinava que o rótulo familiar equivalia a “homem + mulher”, o século XXI desembocou nas Cortes Supremas casos, por exemplo, em que uma pessoa, nascida mulher, modificou-se por meio de incisões cirúrgicas e, transexual, agora é do sexo masculino.
Em seguida, em outra fase da vida, esta pessoa, além de ter obtido judicialmente a mudança de sua identificação social (nome), passou a requer o direito de engravidar. Para alcançar seu objetivo – tendo conservado óvulos férteis – terá de desfazer os efeitos anatômicos do procedimento cirúrgico, ou seja, deverá voltar ao sexo feminino.
Mas não é tudo, pois, é bem provável que, após o período de gestação e de amamentação, a mulher que passou a ser homem, e que voltou a ser mulher, queira, novamente, reconhecer-se socialmente como do sexo masculino. No período de gestação e de amamentação, esta pessoa retornaria à identificação social originária, do sexo feminino?
É óbvio que a lei que define, regressivamente, a família como associação do sexo feminino com o sexo masculino, é incapaz de proibir alguém de mudar de sexo. Afinal, se este é o desejo de sua identificação de gênero, a pessoa que assim deseja promoverá a mudança de sexo em outro país que apresente legislação mais flexível e adequada ao seu intuito. Além disso, pode-se pensar em situações correlatas, como o indivíduo que nasceu com dois sexos – e terá de escolher um.
Entretanto, não poderá voltar atrás na escolha, porque uma lei tradicional (dogmática) não permite reparar a decisão precipitada? Outro indivíduo que nasça com dois sexos, mas apenas um mais desenvolvido, terá de assim permanecer porque a lei tradicional foi incapaz de seguir os avanços da ciência?
É evidente que casos assim percorreram a história da Humanidade, mas, por forças das tradições, essas pessoas viviam recolhidas, apartadas do meio social, ou eram eliminadas. O Princípio da Indeterminação, acolhido pelo Poder Judiciário, serviria para responder ao homicídio cultural seletivo do passado tradicional.
Se a concepção tradicional ensinava que o Direito corresponde ao Estado e que este é o único legislador autorizado, legitimado para criar leis e que, deste modo, o Direito se limita à Lei – sendo a Lei a fonte primeira do Direito – no mundo transversal, globalizado, indutor da indeterminação, o Direito não será mais tridimensional, como é o próprio Estado na teoria tradicional (povo, território, soberania), mas sim pluri e transdimensional.