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Acordo de não-persecução penal: Inconformidade jurídico constitucional da Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público

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18/09/2017 às 09:48
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A Resolução nº 181/2017 do CNMP propôs agressiva ampliação das margens de consenso no Processo Penal Brasileiro, admitindo o acordo de não persecução penal. O presente estudo se presta a analisar a conformidade jurídico constitucional da medida.

Se olharmos para a evolução do modelo de persecução penal brasileiro constatamos que 1995 foi um ano marcante (edificação da Lei 9.099/1995, que regulamentou os Juizados Especiais Criminais). Ali trilhávamos o caminho de uma justiça penal voltada ao consenso, especificamente na persecução dos delitos de pequeno potencial ofensivo. Surge a possibilidade de compressão do rito, racionalizando a intervenção processual, motivada pela necessidade de se repaginar os custos econômicos, sociais e individuais envolvidos na persecução dos delitos de pequeno potencial ofensivo.

A Lei 9.099/1995 representa uma vontade do constituinte originário, implementando uma intervenção jurisdicional mais limitada, consolidando um modelo transacional, passando a uma maior interação entre os sujeitos para a realização da justiça ao caso[1]. Neste modelo, o contraditório exaustivo não é pressuposto para uma prestação jurisdicional penal.

Uma peculiaridade da Lei 9.099/1995 é a postura de um nolo contendere; isto é, o acusado não assume a culpa, tampouco é obrigado a discuti-la; submete-se à aplicação de uma medida restritiva de direito sem correr o risco do litígio processual penal. Esquiva-se de uma sentença condenatória, uma vez que as medidas despenalizantes contempladas nessa Lei têm natureza diversa de sentença condenatória. Diluíram-se estigmas (reincidente, condenado etc.) ao ponto em que foram demolidas cerimônias degradantes e desnecessárias na persecução dos delitos de pequena lesividade.

Alguns delitos de alta lesividade também se submetem à atividade negocial[2]. Nas delações premiadas, verba gratia, aplica-se técnicas recompensatórias ao arguido que auxilia a atividade de persecução criminal[3]. O delator é, via de regra, aquele que denuncia o fato criminoso ou que, ao admitir a própria responsabilidade por um ou mais delitos, presta auxílio útil aos investigadores.

Interessante notar que, nas hipóteses de diversão aplicadas aos crimes de pequeno potencial ofensivo, as medidas despenalizantes se sustentam na perspectiva de que a baixa lesividade do ilícito praticado indica que a suspensão do processo, ou as sanções alternativas são suficientes. Já nos crimes de alta lesividade, como os praticados por organizações criminosas, temos realidade diversa, pois o caráter valioso do bem jurídico é evidente, sobretudo, acredita-se que, com a colaboração, possa-se outorgar efetividade no desbaratamento da organização criminosa, identificando lideranças e recuperando o produto do crime.

Há um nítido movimento tendente a ampliar as margens de consenso no Processo Penal brasileiro. Nosso sistema de contencioso penal, inábil para estabilizar as expectativas sociais, busca alternativas no ‘negócio penal’. Celeridade e eficiência, mas sem perder a coerência jus-processual, é o desafio que se impõe à ampliação das hipóteses de consenso no processo penal.

Neste contexto, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), com o objetivo de aprimorar a investigação, publicou aos 08 de setembro de 2017 a resolução Nº 181 que dispõe sobre instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público. A normativa visa tornar as investigações mais céleres, eficientes e desburocratizadas com o escopo de agilização e efetividade das investigações. Um nítido desejo de modernização, visando superar os paradigmas de investigação cartorial, burocratizada e centralizada.

O Conselho Nacional do Ministério Público observou a carga desumana de processos que se acumulam nas Varas Criminais do país, concebendo que a Justiça Penal ‘tradicional’ levanta desperdício de tempo e preciosos recursos. Considerou, por fim, a exigência de soluções alternativas no Processo Penal que proporcionem celeridade na resolução dos casos menos graves, possibilitando a priorização dos recursos financeiros e humanos do Ministério Público e do Poder Judiciário para processamento e julgamento dos casos mais graves.

Compreende o CNMP que, com a prática negocial penal poderá reduzir os efeitos sociais prejudiciais da pena e desafogar os estabelecimentos prisionais, minorando os efeitos deletérios de uma sentença penal condenatória aos acusados em geral, que teriam mais uma chance de evitar uma condenação. Propõe assim, de forma inovadora, o “ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL”, cabível nos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa.

A experiência internacional demonstra que uma atividade premial desenhada dentro do Direito, delimitada com regras precisas, nas quais o eficientismo colabore para a obtenção de funcionalidade, poderá revelar um modelo de negócio penal que conspire a favor dos interesses do aspirante ao prêmio (arguido) e, sobretudo, no interesse superior da coletividade[4].

Há um desejo coletivo de vencer a burocracia e morosidade de nosso sistema processual penal, sobretudo, novas propostas devem ser edificadas com respeito a ordem legal e à dignidade do ser humano, preservando as garantias constitucionais existentes.

A introdução de um mecanismo de abreviação de rito ou nolo contendere com imposição de medidas de coerção deve guardar conformidade jurídico-constitucional.

Poderia o Processo Penal brasileiro passar por uma importante reforma através do instrumento da Resolução de um Conselho Nacional do Ministério Público? A edição de norma processual não dependeria de reserva de lei?

Haveria compatibilidade entre os princípios do devido processo legal, legalidade, ampla defesa, presunção de inocência (nemo tenetur) e culpabilidade com a proposta de “NÃO-PERSECUÇÃO PENAL” contida na resolução?

Atentos ao fundamento da Dignidade da Pessoa Humana, contemplaremos a conformidade jurídica constitucional da proposta de “NÃO-PERSECUÇÃO PENAL” sugerida pelo Conselho Nacional do Ministério Público.


O ‘ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL’

Nos termos do artigo 18 da Resolução Nº 181 do CNMP, o acordo de não-persecução se prestaria a evitar a instrução judicial do feito, impondo medidas despenalizantes. Essa modalidade de acordo dispensaria o uso da ação penal para vergastar crimes cometidos sem violência ou grave ameaça a pessoa. Exige a normativa que o valor do dano causado pela conduta delituosa seja inferior ou igual a vinte salários-mínimos. Em síntese, o Ministério Público deixaria de propor a denúncia, firmando negócio processual penal com o réu, desde que o este confesse formal e detalhadamente a prática do delito, indicando eventuais provas de seu cometimento. O indiciado deverá confessar formal e detalhadamente a prática do delito e indicar eventuais provas de seu cometimento, além de cumprir os seguintes requisitos, de forma cumulativa ou não:

“I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima;

II – renunciar voluntariamente a bens e direitos, de modo a gerar resultados práticos equivalentes aos efeitos genéricos da condenação, nos termos e condições estabelecidos pelos artigos 91 e 92 do Código Penal;

III – comunicar ao Ministério Público eventual mudança de endereço, número de telefone ou e-mail;

IV – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público.

V – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito.

VI – cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada.

§ 1º Não se admitirá a proposta nos casos em que:

I – for cabível a transação penal, nos termos da lei;

II – o dano causado for superior a vinte salários-mínimos ou a parâmetro diverso definido pelo respectivo órgão de coordenação;

III – o investigado incorra em alguma das hipóteses previstas no art. 76, § 2º, da Lei n. 9.099/95;

IV – o aguardo para o cumprimento do acordo possa acarretar a prescrição da pretensão punitiva estatal.” (extraído do artigo 18 da resolução 181 do CNMP)

Nos termos da Resolução, o acordo deverá ser formalizado nos autos, com a qualificação completa do investigado e estipulando de modo claro as suas condições, eventuais valores a serem restituídos e as datas para cumprimento. Tudo será firmado pelo Membro do Ministério Público, pelo investigado e seu advogado. A confissão detalhada dos fatos e as tratativas do acordo deverão ser registrados pelos meios ou recursos de gravação audiovisual. O  “acordo de não-persecução” poderá ser celebrado na mesma oportunidade da audiência de custódia, sendo que, descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo ou não comprovando o investigado o seu  cumprimento, no prazo e condições estabelecidas, o Membro do Ministério Público deverá, se for o caso, imediatamente oferecer denúncia.

O descumprimento do “acordo de não-persecução” pelo investigado poderá ser utilizado pelo Membro do Ministério Público como justificativa para o eventual não-oferecimento de suspensão condicional do processo. Sobretudo, cumprido integralmente o acordo, o Ministério Público promoverá o arquivamento da investigação, sendo que esse pronunciamento, desde que esteja em conformidade com as leis e com esta resolução, vinculará toda a Instituição.

A promoção de arquivamento será apresentada ao juízo competente, nos moldes do art. 28 do Código de Processo Penal, ou ao órgão superior interno responsável por sua apreciação, nos termos da legislação vigente. Percebe-se que a resolução outorga ao acordo cumprido a natureza jurídica de causa de extinção de punibilidade.


‘Acordo de não-persecução’, um paralelo com a experiência estrangeira

A revolução industrial e econômica fez borbulhar os conflitos penais na América do Norte, com aumento significativo dos números de casos. A sociedade americana não tolerava mais o aumento astronômico de gastos pelo Poder Judiciário e demais órgãos de persecução. Assim, foi edificada uma justiça penal mais otimizada e individualizada, impingindo políticas premiais em um julgamento calcado num speedy criminal trial fomentado pela barganha. Lá, a criação do plea bargaining não se deu de forma legislativa, foram os próprios agentes processuais que passaram a atuar de maneira negocial[5], com o fim de conseguirem melhores resultados e facilidades nos trabalhos.

Em Portugal, o “acordo sobre sentença em processo penal”, ao arrepio de expressa previsão legislativa, foi cotejado por Figueiredo Dias.[6] Em 2010, o nobre doutrinador lançou proposta baseada no modelo germânico, corretiva do formato tradicional de persecução português. Em síntese, as partes celebrariam um acordo que teria como pressuposto essencial o arguido confirmar os fatos que lhe são imputados pela acusação.

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Percebam que há nítida semelhança entre a proposta do CNMP brasileiro (Resolução Nº 181/2017) e a experiência Portuguesa, sobretudo no que diz respeito ao fundamento para prática negocial penal (confissão). Figueiredo Dias alicerçou-se na crise estrutural do judiciário português e na sobrecarga de serviços, levantando razões de celeridade e eficiência para propor a possibilidade de aplicação imediata de pena no Processo Penal.

Nos acordos sobre sentença português a colaboração do réu implicaria em menor medida de pena. Naturalmente, houve insurgências contra a proposta, pois uns identificavam uma heterodeterminação da pena, que violaria o princípio da culpa; outros levantavam a crise do Estado de Direito, especialmente frente à indisponibilidade do Processo Penal. A obra de Figueiredo Dias (Acordo sobre sentença em processo penal) sofreu ferrenhas críticas provenientes da doutrina alemã. Nesse contexto, Schünemann[7] chega a se referir à proposta como “eufemismo”, “camuflagem”, procedimento “contra legem”, “provincianismo”.

A doutrina portuguesa demonstrou preocupação com a preservação do devido processo legal. Os críticos argumentavam que o “acordo sobre sentença” redundaria na supressão do dever de esclarecimento judicial dos fatos; que a admissão da confissão como razão determinante para condenação outorgaria a ela exacerbado valor probatório. Nesse viés, ocorreria patente violação do princípio da investigação ao ponto em que a postura do Estado persecutor aniquilaria com o princípio do nemo tenetur se accusare[8].

Ignorando as críticas da doutrina, a proposta de Figueiredo Dias foi festejada, inicialmente, pela jurisprudência portuguesa. Em janeiro de 2012, a Procuradoria-Geral Distrital (PGD) de Lisboa emite a Orientação nº 1/12, em seguida, a PGD de Coimbra (fevereiro de 2012), ambas sugerindo a exploração do caminho da via consensual, tendo como pano de fundo a proposta de Dias. As mencionadas Procuradorias (Ministério Público Português) reconheciam a plena compatibilidade entre o Código de Processo Penal Português e os acordos sobre sentença, exigindo, para sua eficiência, a confissão do arguido; permitiam, em orientação, a deliberação pelas partes do limite máximo da pena, conservado ao tribunal o poder de avaliar a credibilidade da confissão.

Interessante notar que a ordem processual penal portuguesa, em seu artigo 334[9], outorga determinante valor probatório à confissão, preceituando que, no caso de o arguido declarar que pretende confessar os fatos que lhe são imputados, o presidente, sob pena de nulidade, pergunta-lhe se o faz de livre vontade e fora de qualquer coação, bem como propõe-se fazer uma confissão integral e sem reservas, que implica na renúncia à produção da prova relativa aos fatos imputados e consequente consideração desses como provados.

A vanguardismo da proposta era flagrante, mas a ausência de legislação contemplando as diretrizes do instituto trouxe inquietação. Como era de se esperar, a análise da constitucionalidade do tema chegou a Suprema Corte Portuguesa em 2013.

O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão[10] proferido no dia 10 de abril de 2013, sacramentou não haver suporte normativo que legitime os “acordos sobre sentença em processo penal. Identificou que: a falta de previsão legal geraria insegurança jurídica; subentendeu que a promessa ministerial, de vantagem legalmente inadmissível, constitui uma proibição de prova. Identificou, por fim, insuportável violação à integridade moral dos arguidos, encerrando a possibilidade de aplicação dos acordos sobre sentença no processo penal português[11]. Falecia, em Portugal, a aplicação supra normativa de um acordo sobre sentença.

No sistema processual penal alemão, os acordos sobre sentença foram corriqueiros, desde o fim dos anos 1970. Antes de positivar o instituto, a Alemanha, habituada à civil law, admitiu o negócio penal sem a prévia regulamentação normativa. Edificou-se uma jurisprudência dos interesses (acusação e defesa), com a substituição de um método de uma subsunção lógico-formal processual, nos rígidos conceitos legislativos, pelo de um juízo consensual.

Em 1987, a Corte Federal Constitucional Alemã declarou a constitucionalidade dos acordos sobre sentença. Apenas em 2009 adveio norma regulamentadora, introduzindo, formalmente, o julgamento antecipado da lide penal, com a edificação da norma processual regulamentadora.

Mesmo havendo uma simetria entre Brasil e Alemanha[12] quanto à adoção da civil law, o sistema processual penal brasileiro não comporta um ‘acordo de não-persecução’ regulamento por instrumento diverso de lei, em estrito senso. Vejamos as razões.

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Sobre o autor
Danni Sales Silva

Promotor de Justiça no Estado de Goiás Ex. Promotor de Justiça no Estado do Tocantins. Pós Graduado em Direito Penal. Especialista em Ciências Criminias pela UL (Universidade Lisboa). Especialista em Direito Processual Penal. Mestrando em Ciências Criminias pela Faculdade de Direito de Lisboa. Bacharelando em Filosofia pela PUC-GO. Professor de Direito Penal e Processo Penal. Professor de Pós Graduação em Direito Processual Penal na Rede Juris de Ensino e PUC/GO. Pesquisador pelo Max Planck Institute for Foreign and International Criminal Law in Freiburg i. Br., Germany. Membro do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). Membro da Confraria do Júri

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Danni Sales. Acordo de não-persecução penal: Inconformidade jurídico constitucional da Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5192, 18 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60570. Acesso em: 22 nov. 2024.

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