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Garantias constitucionais do processo

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11/10/2017 às 08:40
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O artigo analisa as garantias constitucionais do processo, em especial (i) o devido processo legal, (ii) a inafastabilidade jurisdicional, (iii) o contraditório, (iv) a isonomia e (v) a fundamentação das decisões judicias.

1. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO

O processo civil deve ser lido à luz da Constituição Federal, em conformidade com os direitos e garantias fundamentalmente reconhecidos e tutelados no bojo do texto constitucional. A Constituição Federal, de acordo com tal concepção, deve ser o vértice normativo axiológico, imprescindível para a exegese de qualquer norma infraconstitucional. Irradiando-se para os demais ramos do Direito, a Constituição Federal fixa balizas normativas mínimas a serem respeitadas pelo legislador infraconstitucional, quando da edição dos demais atos normativos.

Em que pese seja objeto de recentes estudos, o modelo constitucional de processo civil é uma “antiga novidade”, como apregoa o professor João Batista Lopes. Eduardo J. Couture, por exemplo, já sustentava, em sua obra “Fundamentos del Derecho Procesal Civil”[1], a supremacia da Constituição sobre as normas processuais. O legislador, por conseguinte, não pode se distanciar dos comandos normativos entabulados na Constituição Federal, lhe sendo vedado, por conseguinte, desenhar uma arquitetura processual que viole frontalmente as garantias constitucionais do processo civil.

O delineamento do modelo constitucional do processo civil, por exemplo, já era objeto de estudo doutrinário na primeira metade do século passado. Após a superação de regimes autoritários, como o regime fascista italiano e o regime nazista germânico, houve uma grande preocupação com a positivação constitucional de determinadas garantias e direitos mínimos, a serem objeto de proteção em textos constitucionais. O passado recente de atrocidades e barbaridades cometidas demandou uma preocupação, por parte da sociedade, com a constitucionalização de garantias mínimas do processo, a fim de obstar novas violações por parte dos legisladores supervenientes. Ao inserir tais garantias em âmbito constitucional, vedou-se a sua supressão por maiorias legislativas momentâneas e eventuais, garantindo-se o devido respeito ao modelo constitucional de processo civil.

A constitucionalização do processo civil, na acepção do professor João Batista Lopes, deve adotar “como ponto de partida e de chegada a própria Constituição Federal”. O doutrinador, mais à frente, acrescenta, todavia, que “não se pode ignorar, à evidência, os princípios e regras do direito processual civil. Não se trata, pois, de esvaziar o direito processual civil, mas de estudá-lo à luz da Constituição para fazer atuar concretamente os valores da ordem jurídica”.[2]

Ada Pellegrini Grinover, ao analisar o direito processual constitucional, ressalta ser:

inegável o paralelo existente entre a disciplina do processo e o regime constitucional em que o processo se desenvolve. (...) Hoje acentua-se a ligação entre processo e Constituição no estudo concreto dos institutos processuais, não mais colhidos na esfera fechada da ordem processual, mas no sistema unitário do ordenamento jurídico: é esse o caminho, foi dito com muita autoridade, que transformará o processo, de simples instrumento de justiça, em garantia de liberdade[3].

Mais à frente, acrescenta a doutrinadora que:

Todo o direito processual, como ramo do direito público, tem suas linhas fundamentais traçadas pelo direito constitucional, o qual fixa a estrutura dos órgãos jurisdicionais, garante a distribuição da justiça e a efetividade do direito objetivo, estabelece alguns princípios processuais (...) Mas além de seus pressupostos constitucionais, comuns a todos os ramos do direito, o direito processual é fundamentalmente delineado pela Constituição em muitos de seus aspectos e institutos característicos. Alguns dos princípios gerais que o informam são, ao menos inicialmente, princípios constitucionais ou seus corolários[4].

Levando em consideração a estrutura hierárquica do ordenamento jurídico nacional, o processo civil deve ser objeto de interpretação em conformidade com os ditames constitucionais – em especial, os direitos e garantias fundamentais do processo. Houve, por conseguinte, uma releitura de diversos instrumentos processuais, com base na axiologia normativa constitucional.

A importância do dirigismo constitucional é realçada pelo doutrinador José Joaquim Gomes Canotilho. A Constituição fixa modelos normativos a serem respeitados pelo legislador infraconstitucional, quando da edição, por exemplo, das normas processuais. Há uma baliza normativa mínima a ser respeitada, nos moldes das garantias e direitos fundamentalmente elencados. O legislador, portanto, não tem uma atuação irrestrita e discricionária, devendo respeito à Constituição dirigente, nos moldes abaixo delineados.

Os atos do Poder Legislativo não possuem caráter meramente discricionário, uma vez que são constitucionalmente vinculantes, vinculação essa feita por intermédio da fundamentação, ou seja, como exigência de conformidade material com a Constituição dos atos dos poderes públicos[5].

Nelson Nery Junior, na obra “Princípios do Processo na Constituição Federal”, salienta que todos os ramos do direito, “notadamente o do direito processual, vinculam-se à Constituição, de sorte que é a Carta Política que fixa os princípios, os contornos e as bases sobre as quais deve erguer-se o edifício normativo brasileiro”[6]

O Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/15), no bojo do artigo 1º, estabelece, de forma inédita, se comparada com o Código de Processo Civil anteriormente em vigor no Brasil, que “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”. Ainda que seja uma redação redundante, a positivação do modelo constitucional de processo civil é simbólica, porquanto estabelece, textual e expressamente, a necessidade imperiosa de leitura do processo civil à luz da Constituição Federal.

1.1   DEVIDO PROCESSO LEGAL

O devido processo legal, segundo o escólio do professor João Batista Lopes, “significa que o processo deve ser cercado de garantias essenciais à sua atuação plena e efetiva, em tempo razoável”[7]. O devido processo legal encontra expressa previsão no bojo da Constituição Federal, consoante se infere do inciso LIV do artigo 5º: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

O conceito de devido processo legal congrega diversas garantias fundamentais, como a exigência de fundamentação das decisões judicias, o contraditório e a ampla defesa, a duração razoável do processo, a efetividade processual, a isonomia, a publicidade dos atos processuais, o juiz natural, a inafastabilidade jurisdicional, entre outras. Por isso, ante a complexidade e a tessitura normativa elástico do conceito do due processo of law, seria prescindível a enumeração, no texto constitucional, das demais garantias fundamentais, sendo suficiente apenas a consagração do devido processo legal. Todavia, a explicitação, no bojo do texto constitucional, dos demais princípios decorrentes do devido processo legal é necessária para a concretização e efetivação da própria Constituição, evitando que, em momentos históricos autoritários e repressivos, garantias fundamentais sejam suprimidas. Quanto maior o leque de direitos e garantias constitucionalmente assegurados, em maior âmbito de tutela constitucional se encontra o jurisdicionado.

Analisando o due process of law, o doutrinador Gilmar Mendes tece os seguintes comentários:

É provável que a garantia do devido processo legal configure uma das mais amplas e relevantes garantias do direito constitucional, se considerarmos a sua aplicação nas relações de caráter processual e nas relações de caráter material. Todavia, no âmbito das garantias do processo, é que o devido processo legal assume uma amplitude inigualável e um significado ímpar como postulado que traduz uma série de garantias hoje devidamente especificadas e especializadas nas várias ordens jurídicas[8].

A origem histórica do due process of law remonta à Carta Magna do rei João Sem-Terra, no ano de 1215. Ainda que não haja expressa e textual referência ao due process of law, a Magna Charta assegura a necessidade de respeito à law of the land, no bojo do artigo 39. O termo due processo of law somente foi empregado em 1354, quando da edição do Statute of Westminster of the Liberties of London[9], durante o reinado de Eduardo III. As Constituições dos Estados confederados, anteriores à promulgação da Constituição Federal americana de 1787, também já consagravam o devido processo legal no bojo de seus textos, como se infere das redações adotadas por Maryland, Pensilvânia e Massachusetts, por exemplo. 

O devido processo legal tem, portanto, sua origem histórica no due process of law do direito anglo-saxão.

A cláusula do devido processo legal exige o respeito a um processo justo, na tutela dos direitos consagrados no ordenamento jurídico. Assim, ninguém poderá ser privado de seus bens ou de sua liberdade sem o devido processo legal. Normalmente, associa-se o due process of law ao trinômio vida, liberdade e propriedade. Assim, ninguém poderia ser cerceado de sua vida, de sua liberdade e da propriedade de seus bens (materiais e imateriais) sem que fosse precedido de um devido processo legal, com o respeito às garantias e direitos daí decorrentes.

Entretanto, não se pode associar, única e exclusivamente, o conceito do due process of law à concepção de tutela processual. Deve-se cindir o estudo do devido processo legal em sua vertente substancial ou material (substantive due process of law) e em sua vertente formal ou processual (procedural due processo of law).

A segunda vertente – devido processo legal processual ou formal – é aquela preconizada pela tutela processual, com o devido respeito às garantias daí decorrentes, como a isonomia no tratamento, a publicidade dos atos processuais, a inafastabilidade jurisdicional. Assim, ninguém poderia ser cerceado de sua liberdade ou privado de seus bens sem um devido processo legal, em que sejam respeitadas as garantias processuais constitucionalmente asseguradas. Extrai-se, de tal constatação, a conclusão de que o procedural due process of law ressalta o aspecto eminentemente processual do devido processo legal.

De acordo com os ensinamentos esposados pelo doutrinador Nery Nelson Júnior, o devido processo legal, em sua vertente processual, preconiza o dever de propiciar-se ao jurisdicionado:

a) comunicação adequada sobre a recomendação ou base da ação governamental; b) um juiz imparcial; c) a oportunidade de deduzir defesa oral perante o juiz; d) a oportunidade de apresentar provas ao juiz; e) a chance de reperguntar às testemunhas e de contrariar provas que forem utilizadas contra o litigante; f) o direito de ter um defensor no processo perante o juiz ou tribunal e g) uma decisão fundamentada, com base no que consta dos autos[10].

Entretanto, não se pode descurar da análise do devido processo legal em sua vertente substancial ou material. O substantive due process of law está intrinsicamente correlacionado ao direito material. Assim, no âmbito do Direito Administrativo, o devido processo legal substantivo é utilizado para o controle dos atos administrativos editados pelo Poder Público, que deve atuar em conformidade com as balizas normativas. No plano do Direito Privado, o substantive due process of law garante aos cidadãos a autonomia volitiva, preconizando a atipicidade dos negócios jurídicos a serem entabulados, viabilizando, por conseguinte, um espectro de liberdade de atuação maior, se comparado ao preconizado à Administração Pública. O substantive due processo of law está visceralmente interligado aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, parâmetros de aferição da legitimidade dos atos administrativos e normativos adotados pelo Poder Público, seja no âmbito do Poder Executivo, seja no âmbito do Poder Legislativo.

O devido processo legal material ou substantivo/substancial (substantive due process of law) consiste na vedação de atos estatais arbitrários e desproporcionais. Tutela-se o cidadão contra os abusos e arbítrios do Estado, desrespeitadores dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Um ato desapropriatório calcado em interesses pessoais, por exemplo, viola o devido processo legal substantivo, porquanto não obedece aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, configurando uma abusividade por parte do Estado, que deve ser combatida.

O devido processo legal substancial ou material permite a sindicabilidade dos atos estatais por parte do Poder Judiciário, averiguando-se o cometimento de eventual arbitrariedade ou abuso no exercício das funções estatais, com arrimo nas balizas de aferição calcadas na proporcionalidade e na razoabilidade.

André Luiz Borges Netto, no artigo “A razoabilidade constitucional – o princípio do devido processo legal substantivo aplicado a casos concretos”[11], tece os seguintes comentários sobre a divisão do devido processo legal em sua dupla faceta – substantiva e formal:

Duas são as facetas do devido processo legal, a adjetiva (que garante aos cidadãos um processo justo e que se configura como um direito negativo, porque o conceito dele extraído apenas limita a conduta do governo quando este atua no sentido de restringir a vida, a liberdade ou o patrimônio dos cidadãos) e a substantiva (que, mediante autorização da Constituição, indica a existência de competência a ser exercida pelo Judiciário, no sentido de poder afastar a aplicabilidade de leis ou de atos governamentais na hipótese de os mesmos serem arbitrários, tudo como forma de limitar a conduta daqueles agentes públicos).

De acordo com os ensinamentos do professor João Batista Lopes, o devido processo legal substancial “se ocupa das garantias no plano do direito material, como o direito adquirido, a irretroatividade da lei penal, a proibição da bitributação, etc.”, ao passo que o devido processo legal processual (também conhecido como formal) representa um modelo de processo garantidor do “acesso à justiça, do contraditório, da ampla defesa, do juiz natural, da igualdade de tratamento das partes, da proibição de provas ilícitas, etc.”.[12]

1.2. INFASTABILIDADE JURISDICIONAL

Nos moldes do inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Trata-se do princípio da inafastabilidade jurisdicional. O acesso à justiça deve ser garantido a todos os cidadãos, sob pena de caracterização de violação ao princípio constitucional ora em estudo.

Em determinados momentos históricos de autoritarismo e opressão dos direitos fundamentais, o Executivo tende a limitar o acesso à justiça e circunscrever o âmbito de eficácia da garantia da inafastabilidade jurisdicional. No dia 13 de dezembro de 1968, fora editado, pelo Executivo, o Ato Institucional nº 05, cujo artigo 11 era enfático ao excluir “de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos”. À luz da Constituição Federal de 1988, tal ato normativo violaria substancial e frontalmente o disposto no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, devendo ser considerado incompatível materialmente com as balizas normativas constitucionais. Deve-se assegurar ao cidadão o direito de levar qualquer lesão ou ameaça de lesão à apreciação do Poder Judiciário, sob pena, em última instância, de afronta direta ao devido processo legal e à própria noção de Estado Democrático de Direito.

Entretanto, para a devida concretização do princípio da inafastabilidade jurisdicional, o mesmo não pode ser interpretado restritivamente. A garantia do acesso meramente formal à ordem jurídica, por si só, não é suficiente para a efetivação do princípio constitucional em análise. A garantia formal de acesso à justiça, mediante a propositura de uma ação, não é a eficácia máxima que se deve assegurar ao inciso XXXV do artigo 5º do texto constitucional.

Kazuo Watanabe, no artigo “Tutela antecipatória e tutela específica das obrigações de fazer e não fazer”, ressalta que

o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, inscrito no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, não assegura apenas o acesso formal aos órgãos judiciários, mas sim o acesso à Justiça que propicie a efetiva e tempestiva proteção contra qualquer forma de denegação da justiça e também o acesso à ordem jurídica justa. Cuida-se de um ideal que, certamente, está ainda muito distante de ser concretizado e, pela falibilidade do ser humano, seguramente jamais o atingiremos na sua inteireza. Mas a permanente manutenção desse ideal na mente e no coração dos operadores do direito é uma necessidade para que o ordenamento jurídico esteja em contínua evolução[13]

O direito de ação, à luz do princípio da inafastabilidade jurisdicional, representa também uma garantia constitucional. Nos moldes do artigo 24, parágrafo 1º, da Constituição italiana, PISANI[14] ressalta a importância da garantia do acesso à justiça, ao realçar que a mera alegação da existência de determinado direito, ainda que seja prolatada sentença de improcedência, ao cabo da relação jurídica processual, deve, por si só, assegurar o acesso ao Poder Judiciário. É mister salientar, todavia, que a Corte de Cassação italiana entende constitucional as limitações ao direito de ação, desde que guardem relação de compatibilidade com o princípio da inafastabilidade jurisdicional. Assim, consoante o escólio de COMOGLIO[15], as limitações ao direito de ação são possíveis, desde que em conformidade com as balizas normativas constitucionais, em especial, a inafastabilidade jurisdicional. O que é vedado ao legislador é restringir o acesso ao Poder Judiciário, em grau incompatível com a Constituição Federal. Há, portanto, um comando negativo ao legislador, que não se pode furtar de cumprir com o comando constitucional. 

Mauro Cappelletti, em artigo intitulado “O acesso à justiça e a função do jurista em nossa época”[16], publicado, na década de 90, na Revista de Processo, já ressaltava a importância de garantir efetiva e concretamente o acesso à justiça. O jurista italiano já ressaltava, à época, as dificuldades para concretizar materialmente a inafastabilidade jurisdicional, ao enumerar três obstáculos estruturais:

a) o obstáculo econômico, pelo qual muitas pessoas não estão em condições de ter o acesso às cortes de justiça por causa de sua pobreza, aonde seus direitos correm o risco de serem puramente aparentes; b) o obstáculo organizador, através do qual certos direitos ou interesses “coletivos” ou “difusos” não são tutelados de maneira eficaz, se não se operar uma radical transformação de regras e instituições tradicionais de direito processual, transformações essas que possam ter uma coordenação, uma “organização” daqueles direitos ou interesses; c) finalmente, o obstáculo propriamente processual, através do qual certos tipos tradicionais de procedimentos são inadequados aos seus deveres de tutela[17]

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Em relação ao primeiro obstáculo – o de viés econômico, é mister salientar que, no bojo da primeira onda de acesso à justiça, foram assegurados diversos instrumentos jurídicos disponíveis aos mais necessitados economicamente, a fim de viabilizar e garantir efetiva e concretamente o acesso à justiça. Assim, foram previstas, em legislações especiais, o beneficio da gratuidade de justiça, isentando o jurisdicionado do pagamento das taxas e custas judiciais para a propositura da demanda, bem como do desenrolar da relação jurídica processual instaurada.

O inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição Federal, no bojo dos direitos fundamentais arrolados, estabelece a obrigação estatal em prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Seguindo tal mandamento constitucional, foram criadas as Defensorias Públicas, no molde do disposto no artigo 134 da Constituição Federal, com função constitucional de orientar juridicamente os necessitados, defendendo seus direitos individuais e coletivos, em todos os graus, judicial e extrajudicialmente.

Com tais medidas estruturantes, viabiliza-se que o hipossuficiente e vulnerável economicamente, em se constatando ameaça ou lesão a seu direito, tenha o efetivo acesso à justiça, mediante a representação processual pela Defensoria Pública, bem como pelo gozo da gratuidade de justiça.

O segundo obstáculo arguido pelo professor italiano é relevante para a compreensão da inafastabilidade jurisdicional. O processo civil, durante lapso temporal considerável, foi concebido para a resolução de problemas individuais, dentro de uma concepção de mundo oitocentista. Tal compreensão das finalidades do processo civil não mais reflete a realidade ora em vigor no cenário mundial. Os litígios individuais ainda existem, é evidente. Mas não se pode menosprezar a importância cada vez maior concedida aos direitos metaindividuais – difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos, nos moldes da tripartite classificação esposada no bojo do parágrafo único do artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor.

O direito difuso, nos moldes do inciso I do parágrafo único do artigo 81 do CDC, é transindividual, de natureza indivisível e seus titulares são pessoas indeterminadas e ligadas entre si por circunstâncias fáticas. Um exemplo corriqueiro para ilustrar o conceito do direito difuso é o meio-ambiente. O direito a um meio-ambiente ecologicamente equilibrado é garantia constitucional, consoante se infere da redação dada ao artigo 225 da Constituição Federal. Trata-se de um direito coletivo lato sensu ou metaindividual, porquanto não pertence única e exclusivamente a um cidadão, mas sim à coletividade como um todo. Outrossim, detém natureza indivisível, porquanto não é possível que apenas parcela da comunidade usufrua de um meio-ambiente ecologicamente equilibrado, enquanto que outra parcela assim não o faça. O gozo do direito, portanto, é indivisível, devendo ser garantido a todos os seus titulares. Além disso, não há um vínculo jurídico unindo os titulares de um direito difuso. O elo de ligação é pautado por uma circunstância de fato.

Os direitos coletivos stricto sensu são objeto de definição legal no bojo do inciso II do parágrafo único do artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor. Assim como os direitos difusos, os direitos coletivos em sentido estrito também são transindividuais e de natureza indivisível. A diferença reside no fato de que, no bojo dos direitos coletivos stricto sensu, os titulares são grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base (e não por uma mera circunstância de fato, como nos direitos difusos). Assim, os empregados de determinada fábrica possuem uma relação jurídica laboral com o empregador e merecem um meio-ambiente de trabalho sadio e que reduza os riscos de acidentes de trabalho. Trata-se de um direito transindividual, de natureza indivisível (o gozo do direito não pode ser cindido – ou todos têm acesso a um meio-ambiente laboral adequado ou ninguém o tem). Entretanto, a ligação entre todos os titulares não deflui de uma circunstância de fato, mas sim de uma relação jurídica (o vínculo de emprego, no exemplo dado).

Já os direitos individuais homogêneos, na definição de Barbosa Moreira, são considerados acidentalmente coletivos, em comparação aos direitos difusos e coletivos em sentido estrito (assim considerados, como essencialmente coletivos). Os direitos individuais homogêneos, com arrimo no disposto no inciso III do parágrafo único do artigo 81 do CDC, são assim considerados aqueles decorrentes de origem comum. Em uma relação de consumo, determinado fornecedor reduz unilateralmente a quantidade de determinado produto, em que pese não forneça tal informação de maneira clara e adequada no bojo da embalagem do produto comercializado. A depender da hipótese, não será vantajoso economicamente ao consumidor o ajuizamento de ação para ser ressarcido do prejuízo material suportado, ainda mais quando se constata, na maior parte das hipóteses, a demora na tramitação processual. Trata-se, classicamente, de um direito individual. Entretanto, o legislador agrupou tais direitos em uma nova classificação – os direitos individuais homogêneos. São interesses que defluem de uma origem comum (no exemplo dado, consumidores do produto comercializado pelo fabricante em questão). Trata-se de direitos acidentalmente coletivos, porquanto, ontologicamente, podem ser objeto de ações individuais. Entretanto, também podem ser objeto de uma tutela coletiva, a ser manuseada com o intuito de conferir a devida efetividade à ordem jurídica.

No caso do direito acidentalmente coletivo, a depender do prejuízo patrimonial suportado (na maior parte das vezes, limitado a alguns centavos), a maioria dos consumidores afetados preferirá não judicializar a questão, suportando o prejuízo patrimonial ínfimo. Tal atitude é ainda mais acentuada quando se constata a demora na tramitação da relação jurídica processual. Se se adotasse única e exclusivamente a tutela jurídica oitocentista e circunscrita à resolução de demandas individuais, provavelmente o fornecedor não seria afetado economicamente, levando em consideração a reduzida quantidade de ações judicias que seriam propostas junto ao Poder Judiciário.

Entretanto, é mister salientar as alterações legislativas e estruturais que vêm sendo delineadas no ordenamento jurídico nacional, especialmente no âmbito do microssistema da tutela coletiva. No exemplo dos direitos acidentalmente coletivos (individuais homogêneos), é conferido um tratamento molecularizado e não atomizado do litígio. Ao invés de se julgar isoladamente cada demanda individual ajuizada, privilegia-se o tratamento molecularizado da questão, em um processo coletivo.

No âmbito do direito consumerista, os legitimados coletivos (como o Ministério Público, por exemplo, nos moldes do inciso I do artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor) podem ajuizar ações coletivas para a defesa dos direitos individuais homogêneos. No exemplo acima ilustrado em relação à comercialização de produto em quantidade incompatível com o indicado no bojo da embalagem, o Ministério Público poderia ajuizar ação coletiva, a fim de condenar o fornecedor à devolução, proporcionalmente, do prejuízo patrimonial suportado pelos consumidores, ao adquirirem o produto em desconformidade com o indicado na embalagem. Em se prolatando sentença de procedência, o título executivo judicial será exarado de maneira genérica, constatando o ato ilícito praticado, bem como a responsabilidade civil daí decorrente, consoante o disposto no artigo 95 do Código de Defesa do Consumidor.

Posteriormente, os consumidores interessados se habilitarão, quando da liquidação da sentença genérica prolatada, nos moldes do artigo 97 do código consumerista. O consumidor que pretender liquidar o título executivo genérico deverá comprovar a titularidade do direito (que adquira o produto em questão), bem como os danos daí decorrentes, a fim de liquidar o prejuízo a ser reparado judicialmente pela fornecedora, já anteriormente condenada quando da prolação da sentença condenatória genérica.

Consoante se infere das breves incursões acima delineadas, o tratamento normativo conferido à tutela dos direitos coletivos em sentido amplo é diverso do delineado outrora para o enfrentamento de questões essencialmente individuais. O legislador infraconstitucional, a fim de garantir concreta e eficazmente uma tutela jurisdicional adequada e eficiente, nos moldes do princípio da inafastabilidade jurisdicional, deve adotar mecanismos normativos adequados às peculiaridades do direito em questão, devendo estar em constante processo de adaptação às modificações fenomênicas da realidade.

A terceira onda de acesso à justiça, por conseguinte, preconiza a necessidade de delineamento de novos institutos jurídicos e remodelações de estruturas processuais pensadas, outrora, para o enfrentamento de litígios individuais, dentro de uma concepção oitocentista, não mais reinante. A Lei nº 7.347/85 representou um passo importante na concretização de novos instrumentos para a tutela efetiva e adequada dos novos direitos metaindividuais, ao consagrar o instituto da ação civil pública e do próprio inquérito civil. A fim de se compatibilizar com os problemas da realidade contemporânea, o processo civil deve ser objeto de constantes modificações, a fim de ser, ao máximo possível, adequado e efetivo para a resoluções dos problemas atuais. É por isso que se torna imprescindível o constante aprimoramento dos institutos processuais, que devem ser eficazes e efetivos para a solução dos cada vez mais complexos e interligados problemas contemporâneos.

1.3 CONTRADITÓRIO

O contraditório, outrora visto como simples necessidade de informação à parte adversa, oportunizando-lhe a apresentação de sua própria versão dos fatos, teve seu âmbito de alcance maximizado à luz da Constituição Federal. O inciso IV do artigo 5º do texto constitucional estabelece que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Trata-se de um comando normativo constitucional, que deve ser objeto de obediência por parte do legislador infraconstitucional, quando da edição das normas processuais. Deve-se assegurar aos litigantes não apenas a ciência formal dos fatos arguidos pelo autor e dos pedidos por ele deduzidos. Deve-se oportunizar ao réu a efetiva influência e participação na decisão do magistrado. O contraditório não deve ser interpretado como uma garantia formal, mas sim material e efetiva. Por conseguinte, deve ser objeto de uma releitura, com arrimo no comando constitucional em questão.

Especificamente em relação ao contraditório, o Código de Processo Civil, na parte final do artigo 7º, determina competir “ao juiz zelar pelo efetivo contraditório”. Mais à frente, no bojo do artigo 9º, veda que decisão judicial seja proferida contra uma das partes “sem que ela seja previamente ouvida”, estabelecendo a necessidade, como regra geral, de prévio contraditório. O elemento dialógico no contraditório é ressaltado pelo legislador infraconstitucional também no artigo 10, quando se vedam “decisões judicias surpresas”, obstando, por conseguinte, que o juiz decida com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobra a qual deva decidir de ofício”.

Viabiliza-se, com base nos dispositivos normativos supramencionados, um contraditório efetivo e participativo e não apenas formalmente assegurado. Ao juiz incumbe o exercício de um papel não mais meramente passivo e inerte. Como se constatou quando da análise do artigo 10 do Código de Processo Civil atualmente em vigor, incumbe ao magistrado viabilizar o contraditório, ainda que sobre matérias cognoscíveis de ofício. Compete ao juiz promover o diálogo entre as partes, sendo-lhe vedada a prolação de decisões judicias surpresas. O papel do magistrado, no bojo das relações jurídicas processuais, sofreu alterações relevantes, com base, inclusive, no modelo constitucional de processo civil delineado.

Deve-se, à luz do direito comparado, cotejar o artigo 10 do Novo Código de Processo Civil com o artigo 183, 4ª alínea, do Codice di Procedura Civile. A quarto comma do artigo 183 do Código de Processo Civil italiano estabelece que o magistrado deve exigir das partes, em relação à base dos fatos alegados, os esclarecimentos necessários. Além disso, deve o juiz indicar às partes as questões cognoscíveis de ofício que entender oportunas para a discussão[18].

Edoardo Ricci, ao analisar o dispositivo normativo italiano supramencionado, analisa as consequências processuais decorrentes da não observância, pelo magistrado, da provocação das partes a respeito das matérias cognoscíveis de ofício[19]. Caso o juiz, ao prolatar a decisão judicial, não oportunize previamente às partes a possibilidade de se manifestarem quanto à questão conhecível ex officio, haveria nulidade processual? Para o professor italiano, não haveria cominação de nulidade, porquanto não se trataria de um correlato do princípio do contraditório, mas sim de um poder do magistrado, que poderia, a depender da hipótese, renunciar à colaboração das partes, ante a irrelevância dialógica no caso concreto.

Entretanto, em que pese o brilho do entendimento adotado pelo doutrinador, é mister salientar a existência de entendimento jurisprudencial italiano divergente. No dia 21 de novembro de 2001, a Corte de Cassação italiana, em precedente de nº 14.637, reconheceu ser “nula a sentença que se funda sobre uma questão cognoscível de ofício e não submetida pelo juiz ao contraditório das partes”[20]. A violação do artigo 183, quarto comma, do Codice di Procedura Civile não representaria apenas uma mera irregularidade, mas sim nulidade, ante a afronta ao princípio do contraditório. Mais do que um poder do magistrado, o dever de esclarecimento e a vedação da decisão judicial surpresa representam aspectos do princípio do contraditório, cujo desrespeito e violação acarretam nulidade da decisão judicial exarada em desconformidade com tais parâmetros de validade.

Uma posição intermediária entre a tese defendida por Eduardo Ricci (a de que o magistrado pode dispensar a participação das partes ao conhecer, ex officio, de questões de natureza pública, uma vez que a não manifestação das partes, dentro desta sistemática, seria um poder do magistrado e não um elemento identificador do conceito do contraditório) e a sustentada no precedente da Corte de Cassação acima aludido (necessidade de prévia oportunização às partes de manifestação, inclusive sobre as questões cognoscíveis de ofício, sob pena de caracterização de decisão judicial surpresa – decisione della terza via – e violação ao princípio constitucional do contraditório e, por conseguinte, caracterização de nulidade processual) é a esposada pelo doutrinador Chiarloni[21].

Para o doutrinador italiano, a previsão normativa da quarta comma do artigo 183 do Codice di Procedura Civile não é uma mera facoltà do magistrado, mas sim uma verdadeira e própria obrigação (un vero e proprio obbligo). Entretanto, não haverá, pelo seu desrespeito, uma nulidade absoluta e imediata. O error in judicando sobre a questão, para o doutrinador, não acarretaria, a posteriori, obrigatoriamente a declaração de nulidade da sentença (l’invalidità della sentenza). O professor italiano sustenta que a declaração de invalidade deve ser precedida de comprovação de prejuízo, ou seja, seria ônus probatório da parte comprovar que o error cometido pelo magistrado comprometeu a justiça da sentença. A nulidade, por conseguinte, deveria, para ser judicialmente reconhecida, ser precedida da comprovação do efetivo prejuízo à posição processual de qualquer uma das partes.

Em mudança de entendimento jurisprudencial, a Corte de Cassação, em 2005, deu a entender que a declaração judicial de invalidade da sentença por afronta ao dispositivo normativo que veda a decisão judicial surpresa deve ser acompanhada da demonstração de qual prejuízo a parte sofreu com a omissão judicial. Ao não oportunizar a prévia manifestação e decidir, ex officio, a questão, o magistrado deve ter acarretado à parte prejuízo processual patente. Caso não houvesse o error in iudicando, a parte poderia ter se valido de determinada atividade processual que lhe possibilitaria influir efetiva e concretamente na decisão judicial[22]. Aproxima-se à idéia do brocardo francês pas de nullité sans grief.

Em se comprovando o prejuízo, deve-se dar provimento ao recurso e, por conseguinte, cassar a sentença, determinando-se que seja realizada a atividade processual cuja produção fora erroneamente suprimida da parte com a prolação da decisão solitariamente adotada pelo magistrado (decisão surpresa)[23].

Além do mais, no precedente normativo de 2005 supramencionado, a Corte de Cassação entendeu que o artigo 183 do Código de Processo Civil italiano não cominara textualmente nulidade à eventual decisão judicial surpresa, razão pela qual não se poderia pronunciar a invalidade da sentença prolatada[24].

A vedação da decisão surpresa (também conhecida como decisione della terza via ou Überraschungsentscheidungen), devendo o magistrado sinalizar às partes as questões conhecíveis ex officio que entender relevantes e oportunas para a prestação jurisdicional, é uma das balizas do princípio do contraditório, porquanto assegura a possibilidade de influir na decisão do magistrado, antes que a mesma seja proferida. Evita-se o caráter da surpresa da decisão judicial, privilegiando o aspecto dialógico do contraditório.

 Sobre o tema, Humberto Theodoro Júnior, na obra “Novo CPC – fundamentos e sistematização”, salienta que:

O contraditório constitui uma verdadeira garantia de não surpresa que impõe ao juiz o dever de provocar o debate acerca de todas as questões, inclusive as de conhecimento oficioso, impedindo que, em solitária onipotência, aplique normas ou embase a decisão sobre fatos completamente estranhos à dialética defensiva de uma ou de ambas as partes. Tudo o que o juiz decidir fora do debate já ensejado às partes corresponde a surpreendê-las e a desconsiderar o caráter dialético do processo, mesmo que o objeto do decisório corresponda à matéria apreciável de ofício[25]

Com uma postura mais ativa, por parte do magistrado, na concretização do contraditório, constata-se que o outrora binômio “informação e reação” não mais é suficiente para a configuração constitucionalizada da garantia fundamental do contraditório, devendo ser acrescido o elemento dialógico-participativo.

A inclusão do elemento diálogo-participativo é imprescindível para a compreensão do contraditório à luz da Constituição Federal, como apregoa o professor João Batista Lopes, nos moldes do ensinamento abaixo transcrito.

A evolução por que passa o estudo do processo civil pode ser facilmente verificada pelo cotejo entre os manuais clássicos e os contemporâneos dessa disciplina. Nos primeiros, temas como o princípio do contraditório ocupavam não mais que uma página. Na atualidade, os doutrinadores demoram-se em assinalar o maior elastério conferido a esse princípio do que do simples binômio “informação-reação” passou ao trinômio “informação-reação-diálogo”[26]

Especificamente sobre o tema objeto da presente dissertação, o contraditório, no bojo das tutelas de urgência, é um tema assaz delicado. O artigo 9º do Novo Código de Processo Civil estabelece, como regra geral, a necessidade de prévio contraditório. Apenas após ser oportunizada às partes a possibilidade de serem previamente ouvidas é que o magistrado pode proferir decisão judicial. A exceção, por conseguinte, consiste no diferimento do contraditório, previsto no bojo do parágrafo único do supracitado dispositivo normativo. Uma das hipóteses arroladas é justamente a concessão da tutela provisória de urgência. Em determinadas hipóteses, o contraditório diferido (e, por conseguinte, a concessão da tutela de urgência inaudita altera parte) é a única alternativa processual viável à efetivação do direito material em questão, sob pena, inclusive, de seu próprio perecimento.

Em virtude da urgência inerente ao requerimento de determinada medida judicial (tutela antecipada para a concessão de determinada cirurgia de emergência, sob pena de vir a óbito o jurisdicionado, por exemplo), torna-se inviável a concessão de prazo à parte adversa para se manifestar sobre o pleito, a fim de, somente após, o magistrado vir a decidir sobre o pedido de concessão da tutela provisória de urgência. O contraditório, por mais que seja uma garantia fundamental com previsão constitucional, não pode ser objeto de uma exegese absoluta e ilimitada. Vindo a colidir com outros princípios constitucionais, como a efetividade processual e a própria inafastabilidade jurisdicional, deve ser sopesado, à luz do princípio da proporcionalidade.

De acordo com a divisão tripartite do princípio da proporcionalidade nos subprincípios da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, deve-se avaliar se o contraditório postergado ou diferido é proporcional. A postergação do contraditório é adequada para a viabilização do direito à saúde do jurisdicionado, em risco de vida. Além disso, não há outro meio, a princípio, disponível que seja menos oneroso e, ao mesmo tempo, tão ou mais adequado e eficaz, razão pela qual também se preenche o requisito da necessidade. Por fim, sopesando os ônus e bônus decorrentes da colisão entre o princípio do contraditório e o princípio da efetividade processual e do próprio direito à vida e à saúde, nos moldes do artigo 196 da Constituição Federal, constata-se que, no caso em concreto, é proporcional em sentido estrito diferir e retardar o contraditório para momento temporal processual superveniente. Não haverá prejuízo significativo à parte adversa, porquanto não lhe fora tolhido o exercício do contraditório, mas sim apenas retardado para momento processual futuro, viabilizando-se, ao mesmo tempo, que o direito da parte autora tampouco perecesse, caso lhe fosse imposto integralmente o ônus do tempo do processo, ao aguardar o término da relação jurídica processual para somente então poder usufruir do direito que lhe pertence.

Outra hipótese deve ser objeto de análise para a concessão da tutela provisória inaudita altera parte: quando a oitiva da parte adversa, per si, tiver a possibilidade efetiva de frustrar a eficácia da medida em questão. Caso o demandado fosse intimado do requerimento formulado de arresto ou sequestro, por exemplo, muito provavelmente adotaria providencias práticas a fim de inviabilizar o sucesso da medida constritiva patrimonial pleiteada. Assim, em virtude da possibilidade de frustação da eficácia da medida, caso a outra parte tome prévia ciência do requerimento, o magistrado pode deferi-la inaudita altera parte. Não haverá qualquer prejuízo processual à parte, que terá assegurado o seu direito ao exercício do contraditório posteriormente, podendo, por conseguinte, influir concreta e efetivamente junto ao magistrado, à luz dos argumentos fático-jurídicos que vier a expender no processo, e quiçá acarretar a revogação da medida anteriormente concedida.

1.4 ISONOMIA

O princípio da isonomia tem expressa previsão no bojo da Constituição Federal, consoante se denota da redação dada pelo Constituinte ao caput do artigo 5º - “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

No bojo do Antigo Regime (Ancien Régime), a sociedade francesa era estamental. Com a Revolução Industrial, iniciou-se o processo de concentração das riquezas junto à burguesia, que, todavia, era desprovida dos privilégios restritos aos estamentos da classe dos nobres. A nobreza detinha privilégios reais e familiares, que se perpetuavam no poder. Em que pese providos de riqueza, a burguesia não tinha acesso aos privilégios concedidos única e exclusivamente à família monárquica, aos nobres e aos militares da sociedade até então. Visando a alterar tal estrutura segmentada e estamental, a Revolução Francesa encampou o conceito da isonomia formal, desenvolvido ao longo dos séculos XVIII e XIX.

A igualdade formal pressupõe que todos sejam iguais perante a lei. Veda-se, portanto, a concessão de privilégios nobiliárquicos, revogando-se, por conseguinte, o substrato legitimador do poder e dos privilégios da nobreza até então reinante. Todas pessoas devem submissão ao império da lei. O apego à literalidade das normas era tamanho que se chegou a cogitar ser o magistrado única e exclusivamente a bouche de la loi (a boca da lei). O papel dos juízes, na visão iluminista da Revolução Francesa, era circunscrito à subsunção dos fatos à norma. A norma deveria ser objeto de uma exegese literal e gramatical. Numa visão codificada, o Código Civil Napoleônico deveria abarcar a tudo e a todos, não se cogitando a existência sequer de lacunas normativas. O papel do magistrado era restrito a apenas verbalizar, quando da prolação da sentença, o que a lei já havia dito anteriormente. A igualdade era encarada no plano da norma, abstraindo-se da realidade fático-fenomênica e das desigualdades econômico-sociais existentes na sociedade.

Daniel Roberto Hertel, no bojo do artigo “Reflexos do princípio da isonomia no direito processual”, ressalta que a “igualdade formal é aquela meramente prevista no texto legal. É uma igualdade puramente negativa, que tem por escopo abolir privilégios, isenções pessoais e regalias de certas classes. Consiste no fato de a lei não estabelecer qualquer diferença entre os indivíduos. Situa-se, pois, num plano puramente normativo e formal”. É justamente o que a burguesia, quando da Revolução Francesa, desejava – abolir os privilégios e isenções concedidas à nobreza.

Entretanto, como se pode deduzir, a isonomia formal não é suficiente para a concretização dos comandos constitucionais. Deve-se tratar os desiguais desigualmente, na medida em que se desigualam. A concessão de cotas, por exemplo, no bojo do acesso ao ensino universitário, dentro de uma percepção formal da isonomia, poderia configurar um privilégio que não se justificaria. Todavia, levando em consideração a desigualdade material existente na sociedade, o discrímen adotado pelo legislador respeita o conceito de isonomia material e da proporcionalidade.

A fim de avaliar se o princípio da isonomia, em sua vertente material, está sendo respeitado, deve-se proceder a uma análise acurada do discrímen adotado no bojo da norma restritiva, bem como sua compatibilidade com os comandos constitucionalmente previstos. A exigência de que o candidato ao cargo de Delegado de Polícia seja homem representa um discrímen em desconformidade com a Constituição. Não há qualquer justificativa que embase a discriminação posta em exemplo, representado uma violação à igualdade material. Todavia, a imposição de determinado percentual de vagas, em um concurso público, para o acesso a pessoas com deficiência é um discrímen em conformidade com a Constituição, especialmente com o modelo inclusivo e plural adotado em inúmeros de seus dispositivos normativos, inclusive com o recente Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei nº 13.146/15. Deve-se, portanto, avaliar se o discrímen adotado está em compatibilidade com os mandamentos constitucionais, bem como com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Outrossim, deve-se avaliar se há uma relação de adequação e necessidade entre o discrímen adotado e a finalidade almejada pelo legislador, quando da edição da lei.

A norma deve ser pautada pelos critérios da generalidade e da abstração. Ainda que conceda determinados direitos a uma classe de indivíduos com determinada deficiência, à luz do princípio da isonomia material, não se pode autorizar a edição de normas com conteúdo nitidamente casuístico. A edição de norma concessiva de percentual de vagas de emprego para pessoas com deficiência é patentemente constitucional, porquanto concede um determinado direito a toda e qualquer pessoa que se subsuma ao conceito de pessoa portadora de deficiência, nos moldes legalmente estabelecidos. O que se veda, todavia, são as restrições casuísticas, endereçadas a indivíduos previamente delineados. Seria violadora da isonomia uma norma que concedesse determinado número de vagas de emprego única e exclusivamente aos portadores de deficiência cuja inicial do nome começasse com determinada letra do alfabeto ou que morassem numa determinada rua. Extrai-se do conceito de isonomia material a vedação de restrições casuísticas.

Sobre o assunto, o doutrinador constitucionalista português Canotilho ressalta que:

As razões materiais desta proibição sintetizam-se da seguinte forma: (a) as leis particulares (individuais e concretas), de natureza restritiva, violam o princípio material da igualdade, discriminando, de forma arbitrária, quanto à imposição de encargos para uns cidadãos em relação aos outros;  (b) as leis individuais e concretas restritivas de direitos, liberdades e garantias representam a manipulação da forma da lei pelos órgãos legislativos, ao praticarem um ato administrativo individual e concreto, sob as vestes legais (abuso de poder legislativo e violação do princípio da separação dos poderes); (c) as leis individuais e concretas não contêm uma normatização dos pressupostos da limitação, expressa de forma previsível e calculável e, por isso, não garantem ao cidadãos nem a proteção da confiança nem alternativas de ação e racionalidade de atuação[27]

No plano do processo civil, o inciso I do artigo 139 do Novo Código de Processo Civil estabelece incumbir ao juiz, ao dirigir o processo, assegurar às partes a igualdade de tratamento. No bojo do artigo 7º do mesmo diploma legislador, o legislador assegurou às partes paridade de tratamento, em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais.

Em relação ao objeto da presente dissertação, é mister salientar, como se verá mais à frente, que a tutela de urgência não caracteriza violação ao princípio da isonomia. Poder-se-ia imaginar que, ao se prever a tutela de urgência, o legislador estaria tutelando de maneira desproporcional o autor em comparação com o tratamento dispensado ao réu. Entretanto, a tutela de urgência, como se verá em outro tópico, é uma técnica de sumarização da cognição, a fim de redistribuir, dentro da relação jurídica processual, o ônus do tempo. É a ausência da previsão normativa da tutela de urgência que afrontaria não somente a efetividade processual, como também a isonomia material. Deve-se prever, com arrimo na tutela jurisdicional diferenciada, meios de garantir a redistribuição isonômica do ônus do tempo na relação jurídica processual. Ao viabilizar que seja concedido ao autor, ainda no início da relação jurídica processual, a antecipação dos efeitos do provimento jurisdicional final, em restando comprovados os requisitos autorizadores, consagra-se o princípio da isonomia, em sua vertente material ou substancial, como dito anteriormente. João Batista Lopes salienta que “a tutela antecipada surgiu para privilegiar o polo ativo da ação com o escopo declarado de dividir o ônus da demora processual”[28].

Há determinadas vedações normativas à concessão da tutela antecipada, quando, exemplificativamente, afigure no polo passivo da demanda a Fazenda Pública. A Lei nº 8.437/92 e a Lei nº 9.494/97, além da Lei do Mandado de Segurança (Lei nº 12.016/09), por exemplo, vedam a concessão de tutela antecipada em face do Poder Público, em determinadas hipóteses legalmente arroladas no bojo das legislações especiais acima delineadas.

Já houve o controle de constitucionalidade das normas ora em análise. Quando do julgamento da ADC nº 04 (Ação Declaratória de Constitucionalidade), ajuizada justamente em virtude da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação dos dispositivos normativos em questão (nos moldes do inciso III do artigo 14 da Lei nº 9.868/98, um dos requisitos para o ajuizamento da inicial da ação declaratória de constitucionalidade), o Supremo Tribunal Federal reputou tais normas em conformidade com os parâmetros de validade da Constituição Federal. Entretanto, não se veda a análise da constitucionalidade in concreto das vedações da concessão da tutela antecipada em face do Poder Público, com base nas peculiaridades do caso em concreto. Em recentes julgados de reclamações ajuizadas pelos entes federativos junto ao Supremo Tribunal Federal por suposta violação ao caráter erga omnes e vinculante do julgado exarado em sede de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade, a Corte Constitucional vem mitigando o entendimento exarado na ADC nº 04. Os recentes julgados afirmam ser possível que, à luz do caso concreto, com arrimo nos princípios constitucionais da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, o magistrado entenda que a vedação abstrata de concessão de determinada tutela provisória seja incidentalmente inconstitucional, após o cotejo com os demais direitos e garantias constitucionalmente assegurados. Não há, por conseguinte, inconstitucionalidade abstrata e genérica das normas em questão. Entretanto, incidentalmente, na análise do caso concreto em discussão, o juiz pode conceder a liminar pleiteada, reputando, por conseguinte, inconstitucionais as normas que vedem a concessão de tutela de urgência em face do Poder Público.

De acordo com o doutrinador João Batista Lopes, seria inconstitucional o “projeto que pretendesse, pura e simplesmente, proibir liminares contra a Fazenda Pública”[29]

O inciso XXXV do artigo 5º da Constituição assegura a inafastabilidade jurisdicional, ao prever que nenhuma lesão ou ameaça de lesão será excluída da apreciação pelo Poder Judiciário. Deve-se, todavia, reconhecer um acesso não apenas formal à justiça. A tutela jurisdicional a ser concedida deve ser efetiva e adequada a tutelar o direito material violado ou ameaçado de violação. Assim, uma norma que vedasse a concessão de qualquer tutela provisória em face do Poder Público violaria não apenas o princípio da isonomia (por ausência de razoabilidade no discrímen adotado pelo legislador), como também o próprio princípio da inafastabilidade jurisdicional, compreendido em sua acepção material. Para a efetivação do princípio da inafastabilidade jurisdicional, deve-se assegurar ao jurisdicionado tutelas diferenciadas e adequadas às peculiaridades do direito material em debate. Assim, em estando presente a probabilidade do direito (fumus bonis iuris) e o perigo de dano daí decorrente (periculum in mora), dever-se-á assegurar ao autor o direito à tutela provisória, independentemente de quem figure no polo passivo da demanda, incluindo, por conseguinte, a própria Fazenda Pública.

1.5 FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS

Nos moldes da redação do inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal, com base na Emenda Constitucional nº 45/04, “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”

De acordo com o comando constitucional, constata-se que uma decisão judicial não devidamente fundamentada está cominada de nulidade. Trata-se de um vício de validade. A fundamentação, assim como o relatório e o dispositivo, são partes integrantes da sentença. Os fundamentos fático-jurídicos adotados pelo magistrado para a prolação da decisão judicial são de extrema relevância para o efetivo controle judicial. É através da análise dos fundamentos adotados pelo juiz que as partes podem realizar o controle sobre a decisão judicial exarada e, se for o caso, interpor os recursos cabíveis a fim de reformar, invalidar ou sanar as omissões, contradições ou obscuridade eventualmente existentes. Outrossim, a fundamentação é de extrema importância para o controle social das decisões judicias, uma vez que viabiliza a aferição da imparcialidade do magistrado, bem como da legitimidade de sua decisão. A fundamentação da decisão judicial, portanto, é imprescindível para a realização do controle democrático da imparcialidade do magistrado, bem como da legitimidade de suas decisões.

O sistema adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, como regra geral, é o do livre convencimento motivado. As provas não são previamente tarifadas pelo legislador, incumbindo ao magistrado, quando do momento da decisão, aferir as provas existentes e julgar, desde que reste devidamente fundamentada a sua decisão judicial. Levando em consideração a tessitura normativa aberta da Constituição Federal, bem como o emprego constante de conceitos jurídicos indeterminados e princípios, o magistrado deve densificá-los, quando do julgamento. A mera menção aos conceitos jurídicos indeterminados, sem a adequada individualização e concretização de sua incidência no caso em análise, não é suficiente a fim de se qualificar a decisão judicial como fundamentada. O §1º do artigo 489 do Novo Código de Processo Civil confere importância ao conceito de “legitimidade argumentativa” para os provimentos decisórios[30], assim como os §§ 2º e 3º do mesmo dispositivo normativo[31].

Com base nos dispositivos normativos, uma decisão judicial como a “concedo a tutela provisória, uma vez que se encontram preenchidos os requisitos do artigo 300 do Código de Processo Civil” não possui legitimidade argumentativa, uma vez que a simples referência ao dispositivo normativo não legitima argumentativamente a decisão judicial.

O professor João Batista Lopes, analisando o princípio da fundamentação das decisões judicias, tece os seguintes comentários:

Importa ressaltar que o princípio da fundamentação das decisões judicias exige que o juiz aponte as razões que lhe formaram o convencimento, não sendo suficientes expressões genéricas e vazias de conteúdo, como “presentes os requisitos legais, concedo a liminar” ou “indefiro, por falta de amparo legal”. A partir da vigência do novo Código, não poderão, também, ser toleradas decisões judiciais que se limitem, por exemplo, a afirmar que a parte não agiu de boa-fé, sem indicar claramente a conduta por ela assumida. Também não bastará, por exemplo, invocar a função social da propriedade, sem demonstrar sua vinculação com o caso sub judice[32].

A mera menção a conceitos jurídicos normativos vagos, sem a individualização do alcance normativo em face das peculiaridades do caso em concreto sob análise, não preenche o requisito de validade relativo à fundamentação, devendo a decisão judicial ser reconhecida nula, se não estiver devidamente motivada. Em que pese tais constatações serem extraídas diretamente do texto constitucional, nos moldes do inciso IX do artigo 93, é mister salientar o caráter simbólico dos §§ 1º, 2º e 3º do artigo 489 do Código de Processo Civil atualmente em vigor.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALIM, Pedro Losa Loureiro. Garantias constitucionais do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5215, 11 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60594. Acesso em: 23 abr. 2024.

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