O Brasil verdadeiramente tem vivido, como bem observado pelo Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, “tempos estranhos”. A cada dia, uma nova e estarrecedora notícia é veiculada pela mídia, evidenciando que o Estado Brasileiro tem se tornado cada vez menos democrático e menos de Direito. Os caminhos que estão a ser trilhados conduzem inexoravelmente ao retrocesso. Isso não se pode negar.
Problemas político-institucionais têm mostrado que o governo, ao que parece, pelo menos em certos casos, está “(des)governado”, sem saber o que fazer com certas mazelas que de há muito assolam a sociedade de modo geral. Esse quadro vem influenciando drasticamente o Direito, como norma de convivência e pacificação social que é.
Levando-se em consideração que os fatos ocorridos na sociedade devem ser valorados para, somente depois, constituir-se normas (teoria tridimensional de Miguel Reale), poderia se afirmar que tudo está a seguir a normalidade. Afinal, como dizem alguns, situações drásticas pedem medidas enérgicas. E, assim, a cada “fato novo”, uma “nova medida” é adotada.
Ocorre, no entanto, que toda e qualquer medida, abrangendo-se aqui mormente as jurídicas, antes de ser implementada no “mundo real”, tem que observar o conjunto de normas jurídicas posto, uma vez que, se o contrariar, fomentará a desordem, e não a ordem – o que não se almeja, destaque-se.
É de ser ver, contudo, que ultimamente o dito “ordenamento jurídico” brasileiro tem sido deveras inobservado e, o pior, reiteradamente desrespeitado. Inobservado, quem sabe, por negligência; desrespeitado, talvez, por dolo.
Malgrado haja inúmeras medidas merecedoras de críticas, far-se-ão, na presente oportunidade, algumas singelas ponderações no que tange à declaração proferida pelo ex-Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, publicada em diversos meios de comunicação[2], na qual propôs que fossem gravadas as conversas entre advogado e cliente.
Veja-se, nesse sentido, fragmento da referida entrevista, disponível no site da Folha de São Paulo:
O sr. acha que tem que gravar conversa do advogado com os chefes de facção presos?
Eu acho que tem de ter o controle desse advogado. Recentemente, foi feita uma operação em São Paulo em que foram presos mais de 20 que não eram advogados.
Uma coisa é o advogado da causa, que está defendendo a pessoa, outra é toda pessoa que se identifica como advogado poder ingressar e conversar. Obviamente que, em São Paulo, eram advogados só de fachada, eram criminosos com carteira de advogados, como a própria OAB disse.[3]
Fica clara a generalização feita pelo jurista. Com efeito, indaga-se: por conta de um número ínfimo de advogados que desvirtuam a nobre advocacia (como ocorre em qualquer profissão ou cargo público), prejudicar-se-á a todos? Óbvio que não! Não se criam “regras” com base em exceções! Adotar medidas nesse sentido é afirmar, em outras palavras, que todo advogado é um e que, por isso, deve ser monitorado. Tal fato, nem de longe, condiz com a realidade.
É evidente que tal proposta não encontra respaldo jurídico e só torna manifesta a falta de razoabilidade que invadiu o Ministro naquele momento o fazendo propalar tão deplorável pensamento. Diz-se deplorável por conta do currículo de quem difundiu a malfadada ideia.
Ora, Alexandre de Moraes sempre foi tido como um grande constitucionalista, profundo conhecedor das temáticas atinentes à regra fundamental do Estado Democrático de Direito, qual seja, a Constituição. Não era de se esperar dele um ataque desse quilate à Carta Magna e à legislação infraconstitucional.
Observe-se que a Constituição Federal é clara ao dizer, em seu artigo 133, que o advogado é “inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão”. Na mesma toada, o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994), ao abordar os direitos do advogado, consagra “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.
Tamanha a afronta levada a efeito pelo Ministro, que não foi sem razão a crítica da Advogada Criminalista integrante do Instituto dos Advogados Brasileiros, Maira Fernandes, ao afirmar que “é de estarrecer que um constitucionalista proponha a violação do sigilo advogado-cliente, medida evidentemente inconstitucional e ilegal. Há um capítulo inteiro no Código de Ética e Disciplina da OAB sobre isso. Ele já leu? Pois deveria.”. [4]
Em repúdio às palavras do ex-Ministro da Justiça Alexandre de Moraes, o ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, José Roberto Batochio, o “pai” do Estatuto da Advocacia, em matéria disponível no site Consultor Jurídico (Conjur), classificou a proposta de “franca agressão à prerrogativa básica” da profissão.[5]
Não obstante, porém, as diversas críticas feitas por diversos especialistas, a questão, ao que parece, ultrapassa as barreiras da prerrogativa do advogado. Permeia todo o rol de direitos e garantias fundamentais consagrados no artigo 5º da Carta Política, revelando-se verdadeira cláusula pétrea, ínsita ao próprio direito fundamental à ampla defesa e ao silêncio em seu desdobramento do nemo tenetur se detegere (vedação de produção de provas contra si mesmo).
Nesse mesmo sentido, aliás, são as considerações do Advogado Criminalista Artur Barros Freitas Osti, para quem “A Constituição Federal, ao garantir em seu artigo 5º, inciso LV, o direito ao contraditório e ampla defesa, com os meios de recursos a ela inerentes, por razões lógicas resguarda os diálogos havidos entre advogado e cliente”.[6]
Com efeito, como se falar em devido processo legal, em contraditório e ampla defesa, tendo o constituinte (preso) receio de falar com seu próprio advogado? Como advogar para um preso que, ao conversar com seu defensor, omite informações indispensáveis à sua defesa por receio – e com razão, ressalte-se – de serem utilizadas em seu desfavor posteriormente?
Se na conversa, por exemplo, o preso confessar o delito para seu advogado e constar das gravações, o que será feito com esse conteúdo? Decerto não poderá servir para nada, visto que é uma clara hipótese de prova ilícita. Todavia, como aponta Advogado Criminalista André Lozano, “Quem garante que essa conversa não será usada – ainda que não oficialmente – para agravar a situação do réu ou para a acusação antecipar as teses defensivas?”. [7]
Insofismavelmente, tal medida é de todo inviável, uma vez que a inviolabilidade do advogado, o sigilo advogado-cliente, o direito à ampla defesa e a vedação à prova ilícita consubstanciam cristalinos mandamentos constitucionais, verdadeiras cláusulas pétreas. Bem por isso que Lenio Streck, de modo bastante severo, afirmou no sítio virtual do Conjur que “Até o porteiro do Supremo Tribunal Federal iria declarar essa proposta inconstitucional”.[8]
Em verdade, não há interpretação que confira validade à ilusória manifestação do ex-Ministro da Justiça, atual Ministro do STF, Alexandre de Moraes; por qualquer prisma que se analise, sua opinião, ao menos nesse caso específico, não pode e não deve ser levada a sério. Como ele não pode (des)dizê-la, resta a todos (os defensores do Estado Democrático de Direito) rechaçá-la.
Notas
[2] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/01/1849095-visita-de-advogado-de-faccao-deveria-ser-gravada-nas-prisoes-diz-ministro.shtml. Acesso em 13/01/2017.
[3] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/01/1849095-visita-de-advogado-de-faccao-deveria-ser-gravada-nas-prisoes-diz-ministro.shtml. Acesso em 13/01/2017.
[4] http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/12/juristas-e-entidades-reagem-proposta-de-moraes-de-gravar-cliente-e-advogado/
[5] http://www.conjur.com.br/2017-jan-12/proposta-ministro-gravar-advogados-presos-lei
[6] http://www.conjur.com.br/2014-ago-31/artur-osti-interceptacao-dialogo-entre-advogado-cliente-ilicita. Acesso em 13/01/2017.
[7] Idem.
[8] http://www.conjur.com.br/2017-jan-12/proposta-ministro-gravar-advogados-presos-lei. Acesso em 13/01/2017.