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Organizações sociais: questões sobre a responsabilidade civil por danos causados ao usuário dos serviços

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01/11/2017 às 15:20
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O STF, sem declarar a nulidade do atual modelo das organizações sociais, já fixou a quais regras do regime jurídico de direito público estas entidades de direito privado devem se submeter.

INTRODUÇÃO.

O presente artigo irá abordar um tema bastante relevante e muito comum na prática da gestão pública: a responsabilidade civil nas relações que envolvem as organizações sociais.

Como é notório, há uma grande quantidade de serviços públicos, em especial na área da saúde, geridos por entidades do chamado Terceiro Setor, em especial as organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIPS) e as organizações sociais (OS), sendo sobre estas que o foco se direcionará.

Para fins didáticos, optou-se por iniciar o estudo com noções gerais acerca do Terceiro Setor, com o enfoque nas organizações sociais. O segundo capítulo, por sua vez, trata acerca da responsabilidade civil do Estado, desde os aspectos históricos até a análise do direito positivo brasileiro e o posicionamento da jurisprudência mais recente.

No terceiro capítulo, buscam-se as formas de concretização, à luz da realidade brasileira, dos aspectos teóricos até então trabalhados. Por fim, concluímos este artigo com assertivas objetivas, que visam oferecer respostas, de forma direta, aos seguintes questionamentos:

  1. Constitucionalidade das parcerias com as organizações sociais;
  2. O modelo da responsabilidade civil do Estado no Brasil;
  3. A responsabilização civil das organizações sociais e a aplicabilidade ou não do artigo 37, §6º, CRFB/88;
  4. A responsabilidade estatal em relação aos danos causados aos usuários dos serviços prestados pelos seus parceiros.


1. NOÇÕES GERAIS SOBRE O TERCEIRO SETOR

De acordo com a precisa definição de Marçal Justen Filho[1], a expressão Terceiro Setor é utilizada para diferenciar as organizações não governamentais “do Estado propriamente dito (primeiro setor) e da iniciativa privada voltada à exploração de atividade lucrativa (segundo setor)”.

Sem pretender se alongar em digressões históricas, que fugiriam ao escopo do presente trabalho, é preciso destacar que o avanço do regime de parcerias no Brasil está umbilicalmente relacionado ao fenômeno da desestatização que ganhou força em nosso país a partir da última década do século XX.

Ao lado das privatizações das estatais e da concessão de serviços públicos, o fomento a parceiros privados foi um dos principais mecanismos adotados pelo Estado para buscar conferir maior eficiência à Administração Pública e, consequentemente, atingir o interesse público de maneira mais efetiva.

Com a redemocratização, o Estado brasileiro passa, pouco a pouco, a abrir mão da proeminência econômica que o caracterizava no período da Ditadura Militar (1964-1985), e opta por se socorrer, cada vez mais, de institutos de direito privado para o exercício de atividades antes exclusivas do Poder Público[2]. Em ótima definição sobre a redução do papel do Estado à luz do ordenamento jurídico brasileiro, imprescindível a lição de Dinorá Adelaide Musetti Grotti:

“No direito brasileiro a idéia de privatização, tomada no seu sentido amplo, abrange todas as medidas tomadas com o fim de reduzir a presença do Estado, compreendendo: a) a desmonopolização de atividades econômicas; b) a concessão de serviços públicos, com a devolução da qualidade de concessionário à empresa privada e não mais à empresa estatal; c) a terceirização, mediante a qual a Administração Pública busca a parceria com o setor privado, através de acordos de variados tipos; d) a desregulação, com a diminuição da intervenção do Estado no domínio econômico; e) a desestatização ou desnacionalização, com a venda de empresas estatais ao setor privado.”[3]

A esse movimento de fuga para o direito privado foi dado o nome de Administração Pública Gerencial, que, teoricamente, viria para superar o modelo burocrático de gestão tradicional e sua crônica ineficiência.

Neste contexto, as parcerias com as entidades do Terceiro Setor, a partir do fomento das suas atividades pelo Poder Público, visam concretizar os princípios da eficiência, previsto no artigo 37, caput da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/88, e da consensualidade.

O princípio da consensualidade, conforme leciona Diogo de Figueiredo Moreira Neto[4], abrange “a colaboração no planejamento, na tomada de decisão, na execução, no controle e até mesmo na solução de conflitos.” Nada mais consentâneo com uma administração de parcerias do que esta definição, o que confirma ser o princípio da consensualidade um dos fundamentos do Terceiro Setor.

A alocação das entidades do terceiro setor dentro da Administração Pública foi objeto de grande celeuma doutrinária. Por exemplo, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, no que era acompanhado por Hely Lopes Meirelles, defendia que existiriam três espécies de entes da Administração, quais sejam:

“os entes administrativos estatais, que são pessoas jurídicas de direito público, às quais a ordem jurídica outorga o desempenho de funções públicas administrativas; os entes administrativos paraestatais, que são pessoas jurídicas de direito privado, cuja criação for por lei autorizada, e dela recebe delegação para o desempenho de funções administrativas; e os entes administrativos extraestatais, que são pessoas jurídicas de direito privado, que se associam ao Estado para o desempenho de funções administrativas ou de simples atividades de interesse público, através de vínculos administrativos unilaterais ou bilaterais de colaboração.”[5]

Sob esta ótica, as entidades do terceiro setor fariam parte da Administração Indireta. Maria Sylvia Zanella Di Pietro[6] em seu curso, rebate esta ideia, listando quatro razões para tanto.

A primeira razão colocada é a maior intensidade da incidência do regime jurídico de direito público nas sociedades de economia mista e nas empresas públicas em comparação às entidades do terceiro setor. A diversidade de regimes é evidente, o que vem sendo reconhecido não só pela doutrina, mas, também, pelos tribunais pátrios.

A segunda razão listada pela autora é a ausência de delegação quanto às entidades ora estudadas, pois estas, ao contrário das estatais, não são fruto de descentralização administrativa, mas, sim, particulares que, por direito próprio, exercem atividades econômicas de interesse público, ainda que com apoio estatal.

A terceira razão elencada é o fato de que mesmo as empresas estatais não exercem sempre atividade delegada pelo Estado, podendo atuar em questões com o escopo de apenas intervir na ordem econômica.

Finalmente, a quarta e última razão de discordância da autora é o fato de que toda entidade da Administração Indireta, ainda que tenha personalidade jurídica de direito privado, são “braços de atuação do Estado”. O mesmo não ocorre com os particulares em colaboração, posto que estes, como dito, exercem suas atividades por direito próprio.

A posição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, majoritária, parece ter sido expressamente adotada com o advento da CRFB/88, que, em seu artigo 37, XIX, prevê como entidades da Administração Pública Indireta apenas autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias, nada falando sobre outras entidades.

Em consonância com os pontos abordados, este artigo adota a posição de Di Pietro e tratará as entidades do terceiro setor (também chamadas de entidades de colaboração) como espécies das entidades paraestatais. Por fim, para que não restem dúvidas, esclarecedoras as palavras da própria autora:

Pelo nosso conceito, as entidades paraestatais são definidas como pessoas jurídicas de direito privado, instituídas por particulares, com ou sem autorização legislativa, para o desempenho de atividades privadas de interesse público, mediante fomento e controle pelo Estado.

(...)

Exatamente por atuarem ao lado do Estado e terem com ele algum tipo de vínculo jurídico, recebem a denominação de entidades paraestatais; nessa expressão podem ser incluídas todas as entidades integrantes do chamado terceiro setor, o que abrange as declarações de utilidade pública, as que recebem certificado para fins filantrópicos, os serviços sociais autônomos (Sesi, Sesc, Senai), os entes de apoio, as organizações sociais e as organizações da sociedade civil de interesse público.”[7]

Superada a explanação acerca da origem destas entidades e da polêmica sobre sua inclusão ou não no conceito de Administração Pública, devem-se analisar as entidades que compõe o grupo das entidades de colaboração.

José dos Santos Carvalho Filho[8] classifica o regime de parcerias em três grupos, quais sejam, o regime de convênios administrativos, o regime de contratos de gestão (OS) e o regime da gestão por colaboração (OSCIPs). Com o advento da Lei 13.019/2014, já atento as mudanças realizadas pela Lei 13.204/2015, podemos falar em três novos grupos a se somarem aos anteriores: o dos termos de parceria, o dos termos de fomento e o acordo de cooperação.

Di Pietro[9], por sua vez, classifica as entidades do terceiro setor em fundações de apoio, serviços sociais autônomos, organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público.

Independentemente da classificação adotada, dada à proeminência das organizações sociais, a análise irá se restringir a esta modalidade. Conforme leciona José dos Santos Carvalho Filho[10], os três principais aspectos a serem observados por estas entidades são (i) o dever de ter personalidade jurídica de direito privado; (ii) a impossibilidade de perseguir fins lucrativos; e (iii) destinar-se ao ensino, à cultura, à saúde, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico e à preservação do meio ambiente.

Di Pietro conceitua as organizações sociais da seguinte forma:

“qualificação jurídica dada à pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, instituída por iniciativa de particular, e que recebe delegação do Poder Público, mediante contrato de gestão, para desempenhar serviço público de natureza social. Nenhuma entidade nasce com o nome de organização social; a entidade é criada como associação ou fundação e, habilitando-se perante o Poder Público, recebe a qualificação; trata-se de título jurídico outorgado e cancelado pelo Poder Público, segundo os critérios estabelecidos pela Lei 9.637/1998.” [11]

O contrato de gestão celebrado pela Administração com a entidade privada é, portanto, o instrumento negocial que confere a esta o status de organização social. A sua natureza jurídica é muito similar ao que, tradicionalmente, se chamava de “convênio” – denominação esta que, com a promulgação do novo marco regulatório das parcerias, passou a ser restrita às parcerias entre os entes federativos e as pessoas jurídicas a eles vinculadas (artigos 84 e 84-A da Lei 13.019/2014) e, em virtude do disposto no art. 199, §1º da CRFB/88 e das alterações promovidas pela Lei 13.204/2015, a parcerias, inclusive com particulares, na área da saúde.

Esclarecidas as principais características das organizações sociais, é mister destacar que a Lei 9.637/1998, que dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais e a criação do chamado “Programa Nacional de Publicização” sempre fora alvo de severas criticas, das quais o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello[12] foi o seu principal porta-voz. O principal ponto citado pelo autor como ofensivo à ordem constitucional era o fato de estas entidades poderem receber benesses sem observar o princípio constitucional da licitação. Para o autor, tal circunstância deveria levar à invalidação da qualificação conferida nos moldes da Lei 9.637/98 e a responsabilização dos beneficiários destas qualificações.

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Ademais, o fato de estas entidades serem tratadas pela Lei 9.637/98 como integrantes do Programa Nacional de Publicização é visto por boa parte da doutrina como uma forma de dissimular as reais intenções da lei. Isso porque, na prática, trata-se de transferência da execução de serviços públicos para o setor privado. Nesse sentido, tem-se a contundente crítica de Tarso Cabral Violin[13], que confere a alcunha de “neoliberal” ao que se chama de modelo gerencial.

Décadas depois, em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF), finalmente, encerrou a discussão, reconhecendo a constitucionalidade da Lei 9.637/98, quando do julgamento da ADI 1923/DF, a partir de uma interpretação conforme, no qual foram estabelecidos parâmetros para a qualificação e atuação das organizações sócias.

No último ponto da ementa, o STF elenca as principais conclusões adotadas no julgado, trecho cuja transcrição se impõe:

“(...)

20. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido é julgado parcialmente procedente, para conferir interpretação conforme à Constituição à Lei nº 9.637/98 e ao art. 24, XXIV, da Lei nº 8666/93, incluído pela Lei nº 9.648/98, para que: (i) o procedimento de qualificação seja conduzido de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e de acordo com parâmetros fixados em abstrato segundo o que prega o art. 20 da Lei nº 9.637/98; (ii) a celebração do contrato de gestão seja conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF; (iii) as hipóteses de dispensa de licitação para contratações (Lei nº 8.666/93, art. 24, XXIV) e outorga de permissão de uso de bem público (Lei nº 9.637/98, art. 12, §3º) sejam conduzidas de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF; (iv) os contratos a serem celebrados pela Organização Social com terceiros, com recursos públicos, sejam conduzidos de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio a ser editado por cada entidade; (v) a seleção de pessoal pelas Organizações Sociais seja conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio a ser editado por cada entidade; e (vi) para afastar qualquer interpretação que restrinja o controle, pelo Ministério Público e pelo TCU, da aplicação de verbas públicas.”

(ADI 1.923/DF, Rel. Ministro Luiz Fux, DJe 16/12/2015)

O STF, portanto, sem declarar a nulidade do atual modelo das organizações sociais, fixou a quais regras do regime jurídico de direito público estas entidades de direito privado devem se submeter. O resultado foi satisfatório, visto que, em uma ponderação de princípios, manteve-se incólume o núcleo essencial da moralidade administrativa, ao mesmo tempo em que se atendeu o princípio da eficiência.

Dessa forma, as organizações sócias são uma entidade do terceiro setor amplamente utilizadas na práxis da gestão pública nacional, cuja constitucionalidade já foi reconhecida pelo STF, o que torna imperioso afirmar que a postura dos entes federados que firmam contratos de gestão com estas entidades é válida. Esta noção torna mais complexa a discussão sobre qual regime de responsabilidade civil do Estado em relação aos danos causados por estes parceiros.

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Sobre o autor
Dante Silva Tomaz

Advogado. Pós-graduado em Direito do Estado e da Regulação na FGV-RJ. Graduado pela UFRJ. Autor dos livros "O controle concentrado de constitucionalidade nas Constituições Estaduais" e "Iniciativa Popular de PEC", ambos pela Editora Simplíssimo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOMAZ, Dante Silva. Organizações sociais: questões sobre a responsabilidade civil por danos causados ao usuário dos serviços. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5236, 1 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60637. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Artigo elaborado com base no Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Pós-graduação lato sensu LL.M em Direito: Estado e Regulação. FGV DIREITO RIO.

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