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Organizações sociais: questões sobre a responsabilidade civil por danos causados ao usuário dos serviços

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01/11/2017 às 15:20
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2. NOÇOES GERAIS SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL ESTATAL

A responsabilidade civil do Estado passou por muitas mudanças no decorrer da história até chegar ao seu atual estado. Para uma adequada compreensão do tema é fundamental abordar, de forma breve, o avanço histórico da matéria.

2.1. As fases da responsabilidade civil do Estado

O primeiro momento narrado pelos administrativistas é o da total irresponsabilidade do Estado, ou seja, este não respondia pelos danos que gerasse ao particular.

A irresponsabilidade estatal se justificaria pela própria natureza da atuação Estado, qual seja, a de atuar sempre em prol e em nome da coletividade, de maneira que não faria sentido punir esta mesma coletividade, o que ocorreria por via transversa ao impor uma sanção ao Erário. Com o avanço do absolutismo, ganhou mais força a impossibilidade de se responsabilizar o Estado, afinal, se este se confundia com a figura do governante, que possuía o direito divino de governar, falhar a ponto de acarretar a responsabilização civil seria um contrassenso. É desta época a famosa frase “the king can do no wrong”.

Com a perda de força do absolutismo e a ascensão da burguesia, avançou a responsabilização do Estado. A nova classe burguesa que ascendeu ao poder era cética quanto à noção de infalibilidade dos governantes e objetivava uma maior segurança para suas atividades econômicas, tornando imperiosa a existência de meios de se ressarcir de prejuízos provocados pelos entes públicos.

A primeira forma de responsabilizar o Estado aceita foi a adoção dos mecanismos de culpa civil, o que se coaduna perfeitamente com o espírito oriundo da Revolução Francesa de igualdade formal e de supremacia das codificações. Ressalta José Cretella Júnior[14] que o standard adotado para saber quais atos seriam aptos a ensejar a responsabilização civil é a divisão entre atos de gestão (indenizáveis) e os atos de império (insuscetíveis de indenização).

Esta divisão até hoje é utilizada em algumas searas do direito, mas, à luz da moderna teoria da responsabilidade civil, sua utilização foi extremamente reduzida. Os atos de gestão são aqueles que visam a satisfazer os interesses secundários do Estado, sendo estes entendidos como voltados apenas ao interesse patrimonial. Por sua vez, os atos de império são considerados como todos aqueles em que o Estado exerce sua atividade em posição de supremacia ante o particular, portanto, expressão da própria soberania.

Esta dicotomia é muito bem explorada por Yussef Said Cahali:

“Tinha-se como certo que duas classes de funções desempenha o Estado: as essenciais ou necessárias, no sentido de que tendem a assegurar a existência mesma do Poder Público (manter a ordem constitucional e jurídica), e as facultativas ou contingentes, no sentido de que não são essenciais para a existência do Estado, mas este, não obstante, as realiza para satisfazer necessidades sociais, de progresso, bem-estar e cultura, quando realiza as funções necessárias age como Poder Público soberano; quando realiza funções contingentes, age como gestor de interesses coletivos.”[15]

Por motivos óbvios, esta divisão não se revelou simples na prática, posto que ambos os conceitos apresentados são indeterminados, o que gerava uma grande insegurança jurídica devido ao amplo espaço conferido ao judiciário decidir quais situações ensejariam indenização ou não.

Ainda no âmbito da teoria civilista, em um segundo momento, “passou-se a entender que o Estado seria responsável por atos de seus agentes por culpa in eligendo e por culpa in vigilando, isto é, por ter escolhido mal o seu agente causador do dano ou porque teria se descurado do seu dever de vigilância” [16].

Sérgio Cavalieri Filho[17], em seu Programa de Responsabilidade Civil, acertadamente, afirma que este segundo momento permanece sendo essencialmente privatista, pois é pautado pela responsabilidade por fato de terceiro, típica do direito civil.

A responsabilidade civil do Estado se dissocia da responsabilidade civil própria do direito civil apenas com a adoção da teoria do órgão pelo direito administrativo, dando início ao que a doutrina, quase uníssona, chama de fase publicista da responsabilidade civil do Estado. Segundo esta teoria, os agentes presentam o Estado e não o representam, ou seja, é o próprio Estado que atua pelas mãos dos seus agentes. Logo, não é possível separar as responsabilidades entre eles.

Os problemas das teorias civilistas levaram ao surgimento das primeiras teorias genuinamente administrativas da responsabilidade civil de que se têm notícia: a da culpa anônima administrativa e a da falta do serviço.

Estas teorias, segundo Cavalieri, devem ser entendidas como a superação da necessidade de se demonstrar a falha na atuação de algum agente – ao contrário: é “dispensável a prova de que funcionários nominalmente especificados tenham incorrido em culpa. Basta que fique constatado um mau agenciador geral, anônimo, impessoal, na defeituosa condução do serviço, à qual o dano possa ser imputado.” [18]

A publicização da responsabilidade civil estatal foi um inegável avanço, contudo, não representou uma panaceia. O seu caráter subjetivo tornava a prova da falha no serviço por vezes diabólica, impossibilitando o ressarcimento de agentes privados que sofreram danos pelo Estado.

O caminho seguinte foi a objetivização da responsabilidade civil estatal. Alexandre Santos de Aragão[19] destaca que a exclusão do elemento culpa na responsabilidade civil estatal representa, de certa forma, um reencontro com as origens civilistas do instituto. Isso porque sua adoção no direito administrativo foi precedida pela adoção da “teoria do risco” do direito civil, elaborada diante da ampliação dos possíveis efeitos colaterais de atividades econômicas. Como exemplo, podemos citar os acidentes em ferroviais e aeronaves, cujo impacto social e dificuldade probatória tornariam inócua a exigência de comprovação da culpa por cada lesado.

Nessa esteira, não caberia mais tratar de culpa administrativa ou de falha no serviço, pois a mera realização de atividades de risco pelo Estado, se comprovado o dano ao particular, levaria ao dever de indenizar. Assim, o Estado, ao aumentar a sua atuação na sociedade e na economia, se sujeitava a causar cada vez mais danos, que deveriam ser reparados. [20]

A situação da responsabilidade civil estatal, hoje, é indubitavelmente fundamentada na teoria do risco administrativo. Segundo preconiza esta teoria, o elemento subjetivo (culpa) se torna desnecessário, bastando que subsistam os demais elementos objetivos que, em síntese, são apenas três: a conduta, comissiva ou omissiva, o dano e o nexo causal.

O segundo fundamento da responsabilidade objetiva é a teoria da repartição dos encargos sociais. Este deve ser entendido, conforme leciona Leon Duguit, da seguinte maneira:

A atividade do Estado se exerce no interesse de toda a coletividade; as caras que dela resultam não devem pensar mais fortemente sobre uns e menos sobre os outros. Se, da intervenção do Estado, assim da atividade estatal, resulta prejuízo para alguns, a coletividade deve repará-lo, exista ou não culpa por parte dos agentes públicos. [21]

A maior polêmica reside na responsabilidade civil do Estado em decorrência de atos omissivos, o que será abordado mais adiante.

2.2. A responsabilidade civil do Estado no Direito Brasileiro

O direito brasileiro, conforme leciona Yussef Said Cahali[22], jamais se furtou em reconhecer a responsabilidade do Estado. Em sua clássica obra “Responsabilidade Civil do Estado”, é demonstrado que, em todas as nossas Constituições, o Estado possuía o dever de indenizar, de tal forma que não vivenciamos uma fase em que se pudesse vislumbrar a irresponsabilidade absoluta do Estado pelos seus atos.

A CRFB/88, no célebre artigo 37, §6º, consagra expressamente a responsabilidade objetiva do Estado por seus atos comissos, in verbis:

Art. 37, §6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Como se vê, a redação do dispositivo afirma, expressamente, que o dano – e não a culpa – é o fundamento da reparação. Não restam dúvidas do caráter objetivo da responsabilidade.

Fernando Dias Menezes de Almeida[23], dentro do Tratado de Direito Administrativo coordenado por Di Pietro (volume VII), analisa este artigo e afirma, categoricamente, que o os elementos trazidos impõem um mínimo para caracterizar a responsabilidade estatal, e que este mínimo prescinde de elementos subjetivos. Há apenas de se verificar a ação causadora e o efeito danoso.

Prossegue o autor[24], afirmando que a responsabilização objetiva do Estado, prevista no artigo 37, §6º, não utiliza expressamente esta expressão e, tampouco, a necessidade de verificação do risco, de forma que não existiriam óbices para que a legislação infraconstitucional previsse outras restrições à responsabilização do Estado.

Nesse ponto, deve ser dito que a Lei 8.666/93, por exemplo, afasta expressamente a responsabilidade do Estado contratante pelas obrigações trabalhistas dos contratados. Apesar de se tratar de responsabilidade contratual e não aquiliana - como a que o artigo 37, §6º, CRFB/88 é vocacionado a regular – é mais um exemplo da possibilidade da legislação infraconstitucional abordar de diferentes formas a responsabilidade estatal.

Analisado o núcleo da origem constitucional da responsabilidade estatal por atos comissivos e fixado seu caráter objetivo com base na teoria do risco administrativo, é válido trazer à baila outros diplomas normativos que reforçam o exposto.

O Código Civil de 2002, artigo 927, parágrafo único, consagra a teoria do risco, conforme se depreende do dispositivo:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Pela leitura do dispositivo, é possível afirmar que a Constituição da República, muitos anos antes do próprio Código Civil, já previa a responsabilização independentemente do elemento subjetivo. Com base neste artigo, a doutrina majoritária dos civilistas afirma que a responsabilidade no âmbito cível ainda seria, em regra, subjetiva (necessita da demonstração de dolo ou culpa), ao contrário da responsabilidade estatal. [25]

Contudo, mesmo o Código Civil, excepciona os entes públicos desta regra geral em seu artigo 43:

Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem dados a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

Fixadas as premissas e destacados os principais dispositivos legais a respeito da responsabilidade civil do Estado por atos comissivos, é fundamental analisar os aspectos relacionados à responsabilidade por atos omissivos.

Uma primeira posição, defendida por Hely Lopes Meirelles[26], afirma que a responsabilidade por omissão também é objetiva, visto que a Constituição da República apenas atribui ao Estado o dever de indenizar em caso de existir dano, sem excepcionar nenhuma situação.

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Segundo um vetusto brocardo jurídico, quando o legislador não restringe não cabe ao intérprete fazê-lo, de forma que, se a CRFB/88 garantiu aos administrados o direito de serem reparados sem a demonstração de culpa, não podem os Tribunais exigirem o elemento subjetivo com fundamento apenas em uma construção jurisprudencial.

A segunda posição, cuja defesa é realizada por importantes doutrinadores, dentre os quais citamos Celso Antônio Bandeira de Mello[27] e Oswaldo Aranha Bandeira de Mello[28], levanta a bandeira da responsabilidade subjetiva do ente público no caso de ato omissivo, porém, com a inversão do ônus da prova – ou seja, o dever de provar que não falhou no dever de agir é do Estado. Esta ainda é a corrente majoritária na doutrina e na jurisprudência.

Em reforço a esta segunda posição, transcreve-se trecho da ementa de julgado do Superior Tribunal de Justiça em que se reconheceu o caráter subjetivo da responsabilidade estatal por omissão:

4. A jurisprudência desta Corte tem se posicionado no sentido de que em se tratando de conduta omissiva do Estado a responsabilidade  subjetiva e, neste caso, deve ser discutida a culpa estatal. Este entendimento cinge-se no fato de que na hipótese de Responsabilidade Subjetiva do Estado, mais especificamente, por omissão do Poder Público o que depende é a comprovação da inércia na prestação do serviço público, sendo imprescindível a demonstração do mau funcionamento do serviço, para que seja configurada a responsabilidade. Diversa é a circunstância em que se configura a responsabilidade objetiva do Estado, em que o dever de indenizar decorre do nexo causal entre o ato administrativo e o prejuízo causado ao particular, que prescinde da apreciação dos elementos subjetivos (dolo e culpa estatal), posto que referidos vícios na manifestação da vontade dizem respeito, apenas, ao eventual direito de regresso. Precedentes: (REsp 721439/RJ; DJ 31.08.2007; REsp 471606/SP;  DJ 14.08.2007; REsp 647.493/SC;  DJ 22.10.2007; REsp 893.441/RJ, DJ 08.03.2007; REsp 549812/CE;  DJ 31.05.2004)

5. In casu, o Tribunal de origem entendeu tratar-se da responsabilidade subjetiva do Estado, em face de conduta omissiva, consoante assentado: "(...)Também restou incontroverso nos autos que o incêndio teve como causa imediata as faíscas advindas do show pirotécnico promovido irresponsavelmente dentro do estabelecimento, não obstante constar da caixa de fogos o alerta do fabricante para soltá-los sempre em local aberto, ao ar livre, e nunca perto de produtos inflamáveis. Ainda assim, me parece óbvio que, se o município tivesse sido diligente, exercendo regularmente seu poder de polícia, fiscalizando o estabelecimento e tomando as medidas condizentes com as irregularidades constatadas, certamente evitaria o incêndio, porque a Casa não estaria funcionando, ou, alternativamente, daria às pessoas ali presentes a possibilidade de se evadirem do local de  maneira mais rápida e segura   .(...)"(fls. 410)

6. Desta forma, as razões expendidas no voto condutor do acórdão hostilizado revelam o descompasso entre o entendimento esposado pelo Tribunal local e a circunstância de que o evento ocorreu por ato exclusivo de terceiro, não havendo nexo de causalidade entre a omissão estatal e o dano ocorrido.

(Resp 888420 / MG, Rel. Min Luiz Fux, 1ª Turma, DJe 27/05/2009)

Nenhuma destas parece ser a posição mais adequada. A doutrina majoritária defende o caráter subjetivo da responsabilidade estatal em decorrência de omissão, fundamentando sua posição na literalidade do artigo 37, §6º da CRFB/88, cuja dicção trata genericamente sobre danos que os agentes causarem.

Entretanto, em uma análise mais meticulosa, outra importante parcela da doutrina, a qual este artigo se alinha, afirma ser preciso diferenciar as espécies de omissões do Estado. De um lado, as omissões específicas, aptas a acarretar a responsabilidade objetiva do Estado e, do outro lado, as omissões genéricas, em que a culpa terá de ser demonstrada pelo lesado.

Rafael Oliveira, com maestria, realiza elucidada análise a respeito da diferença entre as duas espécies de omissão:

“Todavia, somente será possível responsabilizar o Estado nos casos de omissão específica, quando demonstradas a previsibilidade e a evitabilidade do dano, notadamente pela aplicação da teoria da causalidade direta e imediata quanto ao nexo de causalidade (art. 403 do CC). Vale dizer: a responsabilidade restará configurada nas hipóteses em que o Estado tem a possibilidade de prever e de evitar o dano, mas permanece omisso. Nas omissões genéricas, em virtude das limitações naturais das pessoas em geral, que não podem estar em todos os lugares ao mesmo tempo, e da inexistência do nexo de causalidade, não há que falar em responsabilidade estatal, sob pena de considerarmos o Estado segurador universal e adotarmos a teoria do risco integral. Assim, por exemplo, o Estado não é responsável pelos crimes ocorridos em seu território. Todavia, se o Estado é notificado sobre a ocorrência de crimes constantes em determinado local e permanece omisso, haverá responsabilidade.”[29]

O STF possui alguns precedentes em que reconhece o caráter objetivo da responsabilidade do Estado nos casos de omissão específica. Por todos:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. ARTIGO 37, § 6.º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. DANOS CAUSADOS POR TERCEIROS EM IMÓVEL RURAL. DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL. INDENIZAÇÃO. ILEGITIMIDADE DE PARTE. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. Esta Corte já firmou entendimento de que é incabível, na via extraordinária, alegação de ofensa indireta à Constituição Federal, por má interpretação de normas processuais, contidas na legislação infraconstitucional. Caracteriza-se a responsabilidade civil objetiva do Poder Público em decorrência de danos causados, por invasores, em propriedade particular, quando o Estado se omite no cumprimento de ordem judicial para envio de força policial ao imóvel invadido. Recursos extraordinários não conhecidos.

(RE 81602/MG, Rel. Min Carlos Veloso, 1ª Turma, Dj 13/09/2002)

Destaque-se que o Professor Rafael Oliveira, conforme se depreende da leitura do trecho de sua obra transcrito acima, não adota propriamente a teoria defendida neste estudo. Ele adota uma quarta posição, que também vem crescendo, cujo traço distintivo é afastar os últimos resquícios da culpa na responsabilidade civil estatal. Para a melhor compreensão desta corrente, fundamental é a leitura de Flávio de Araújo Willeman, in verbis:

“Assim, pode-se afirmar que apenas as omissões específicas oriundas das pessoas jurídicas de direito público serão consideradas como causas diretas e imediatas de eventuais danos, capazes de deflagrar o necessário nexo de causalidade para ensejar o dever jurídico de indenizar, não se olvidando que o dever tem de advir de imposição legal ou, na ausência disso, da situação prática que reclamava uma ação razoável por Parte do Poder Público. No caso das omissões genéricas, deve, como regra, prevalecer a irresponsabilidade estatal, não cabendo, neste caso, a aplicação da teoria subjetiva para responsabilização do Estado.

(...)

Sem se querer ser repetitivo, conclui-se que as omissões somente serão consideradas como aptas a deflagrar o nexo de causalidade e a consequente obrigação de indenizar o Estado quando houver quebra do dever de agir ou sua inanição irrazoável, situações que deverão ser aferidas em cada caso concreto, cabendo a ele (Estado), em ambos os casos elidir o nexo de causalidade por meio das excludentes já anunciadas, isto é, por meio da prova de fato exclusivo da vítima, de caso fortuito ou força maior, ou de fato de terceiro, ou, ainda, demonstrando que sua conduta foi lícita, razoável e dentro das possibilidades materiais da Administração Pública, não lhe sendo permitida outra conduta razoável que pudesse evitar o dano.”[30]

A transcrição acima traz à tona os chamados elementos excludentes do nexo causal, que são justamente os que diferenciam a teoria do risco integral da teoria do risco administrativo.

A teoria do risco integral considera que o Estado é, na prática, um segurador universal, visto que apenas a conduta e o dano bastam para ensejar o dever de indenizar o prejudicado. Dessa forma, segundo os adeptos desta teoria, dos quatro elementos originalmente necessários para caracterizar a responsabilidade civil (conduta, culpa, nexo causal, dano), restam apenas dois: conduta e dano.

A teoria do risco administrativo, por sua vez, é reconhecida pela quase totalidade da doutrina e da jurisprudência como a adotada pelo ordenamento jurídico pátrio. Por esta teoria se admitem as excludentes de nexo causal, chamadas por José de Aguiar Dias[31] de “cláusulas de salvaguarda”, sendo estas: a força maior ou caso fortuito, culpa exclusiva da vítima e o fato de terceiro.  A teoria vigente atualmente no ordenamento jurídico pátrio, a qual Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona[32] afirmam não terem dúvidas quanto a sua adoção pela Constituição, é a da responsabilidade pelo risco administrativo.

O Supremo Tribunal Federal, em julgado de 2016, em sede de repercussão geral, afastou a teoria do risco integral e manifestou, expressamente, sua opção pela teoria do risco administrativo. In verbis:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR MORTE DE DETENTO. ARTIGOS 5º, XLIX, E 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. A responsabilidade civil estatal, segundo a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, § 6º, subsume-se à teoria do risco administrativo, tanto para as condutas estatais comissivas quanto paras as omissivas, posto rejeitada a teoria do risco integral. 2. A omissão do Estado reclama nexo de causalidade em relação ao dano sofrido pela vítima nos casos em que o Poder Público ostenta o dever legal e a efetiva possibilidade de agir para impedir o resultado danoso. 3. É dever do Estado e direito subjetivo do preso que a execução da pena se dê de forma humanizada, garantindo-se os direitos fundamentais do detento, e o de ter preservada a sua incolumidade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal). 4. O dever constitucional de proteção ao detento somente se considera violado quando possível a atuação estatal no sentido de garantir os seus direitos fundamentais, pressuposto inafastável para a configuração da responsabilidade civil objetiva estatal, na forma do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal. 5. Ad impossibilia nemo tenetur, por isso que nos casos em que não é possível ao Estado agir para evitar a morte do detento (que ocorreria mesmo que o preso estivesse em liberdade), rompe-se o nexo de causalidade, afastando-se a responsabilidade do Poder Público, sob pena de adotar-se contra legem e a opinio doctorum a teoria do risco integral, ao arrepio do texto constitucional. 6. A morte do detento pode ocorrer por várias causas, como, v. g., homicídio, suicídio, acidente ou morte natural, sendo que nem sempre será possível ao Estado evitá-la, por mais que adote as precauções exigíveis. 7. A responsabilidade civil estatal resta conjurada nas hipóteses em que o Poder Público comprova causa impeditiva da sua atuação protetiva do detento, rompendo o nexo de causalidade da sua omissão com o resultado danoso. 8. Repercussão geral constitucional que assenta a tese de que: em caso de inobservância do seu dever específico de proteção previsto no artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, o Estado é responsável pela morte do detento. 9. In casu, o tribunal a quo assentou que inocorreu a comprovação do suicídio do detento, nem outra causa capaz de romper o nexo de causalidade da sua omissão com o óbito ocorrido, restando escorreita a decisão impositiva de responsabilidade civil estatal. 10. Recurso extraordinário DESPROVIDO.

(RE 841526/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 29/07/2016)

Fixadas estas premissas gerais sobre a responsabilidade civil do Estado, passa-se à análise da responsabilidade civil aplicada ao Terceiro Setor propriamente dita.

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Sobre o autor
Dante Silva Tomaz

Advogado. Pós-graduado em Direito do Estado e da Regulação na FGV-RJ. Graduado pela UFRJ. Autor dos livros "O controle concentrado de constitucionalidade nas Constituições Estaduais" e "Iniciativa Popular de PEC", ambos pela Editora Simplíssimo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOMAZ, Dante Silva. Organizações sociais: questões sobre a responsabilidade civil por danos causados ao usuário dos serviços. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5236, 1 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60637. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

Artigo elaborado com base no Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Pós-graduação lato sensu LL.M em Direito: Estado e Regulação. FGV DIREITO RIO.

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