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Organizações sociais: questões sobre a responsabilidade civil por danos causados ao usuário dos serviços

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01/11/2017 às 15:20
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3. A RESPONSABILIDADE CIVIL DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E DO ESTADO EM RELAÇÃO AOS DANOS GERADOS AO USUÁRIO

Fixadas as bases dos institutos jurídicos fundamentais do caso relacionados à responsabilidade civil e o Terceiro Setor, prossegue-se para o exame da espécie de responsabilidade do parceiro privado e do poder público fomentador.

Como premissas para esta análise, é importante destacar que o presente estudo irá se restringir aos aspectos de direito público da responsabilidade civil, excluindo-se a responsabilidade objetiva prevista no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor (CDC), por fugirem ao escopo deste artigo.

3.1. A responsabilidade da organização social face aos usuários do serviço: a incidência ou não do art. 37, §6º da CRFB/88

Não restam dúvidas de que os danos passíveis de ocorrerem em virtude da má prestação dos serviços por organizações sociais são consideráveis. Afinal, em setores como a saúde, a integridade física do usuário pode estar em jogo ou até mesmo a sua própria vida. Dessa forma, natural que eventuais prejudicados busquem se socorrer da previsão mais protetiva do art. 37, §6º da CRFB/88, enquanto que os prestadores de serviço, por sua vez, afirmam estar submetidos ao regime privado.

A literalidade do artigo 37, §6º, ao afirmar que as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público responderão de forma objetiva pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem, não parece respaldar a posição defendida pelas organizações sociais. Não há dúvidas que estas entidades são pessoas jurídicas prestadoras de serviço público e aptas a causar dano enquanto exercem suas atividades.

Todavia, a doutrina majoritária e a jurisprudência vêm caminhando no sentido da não aplicação do artigo 37, §6º da CRFB/88 às organizações sociais. Rafael Oliveira[33], entre outros, adota esta posição, sob o fundamento de que a Constituição da República buscou se referir apenas aos agentes privados que prestem serviços públicos em que, necessariamente, seja necessária concessão do Estado.

Este, realmente, não é o caso das organizações sociais, que, via de regra, exercem os chamados serviços públicos impróprios, ou seja, aqueles cuja atividade é aberta aos particulares – tais como saúde e educação, ramos em que a atuação do Estado se dá lado a lado ao particular. Isto é reforçado pelo fato do artigo 199 da CRFB/88 prever que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada. Logo, ainda conforme Rafael Oliveira, a parceria firmada entre o Estado e as entidades do Terceiro Setor não se caracterizam como delegação de serviço público, mas sim como fomento de atividade privada.

A mesma posição é defendida por Alberto Shinji Higa[34], em obra específica sobre o tema, em que o autor defende que não se pode tratar a atividade de fomento como equivalente à delegação de serviços públicos. O autor apenas ressalva desta regra as hipóteses em que organizações sociais verdadeiramente substituem o Estado no desempenho de serviço público a seu encargo, mediante a cessão de bens e servidores públicos, ou nas hipóteses em que haja previsão na legislação infraconstitucional (como no CDC e nas atividades de risco que se subsumam ao art. 927, parágrafo único do CC/02) de que as organizações sociais devam responder objetivamente. Fora destas duas hipóteses, a responsabilidade sempre seria subjetiva.

D.m.v, ousamos discordar dos ilustres mestres e da corrente majoritária. Neste trabalho, defende-se que não é adequado que a doutrina e a jurisprudência amesquinhem uma garantida conferida pela Constituição ao cidadão, qual seja, a de ser ressarcido por danos sofridos em decorrência de atos praticados por particulares prestadores de serviços públicos.

A posição topográfica é importante para uma correta interpretação do dispositivo e, realmente, não há que se falar que todo particular que exerça atividade econômica da espécie serviço públicos (sejam sociais ou impróprios) responderá objetivamente com fundamento no artigo 37, §6º apenas pelo fato do dispositivo não prever, literalmente, a necessidade de delegação. Afinal, não faria sentido que a Constituição desse com uma mão o direito do particular atuar na saúde e, com a outra mão, o impusesse um regime de responsabilidade mais rigoroso.

Todavia, a ausência da exigência expressa das palavras “delegação”, “concessão”, “permissão” ou “autorização” no artigo 37, §6º da CRFB/88 deve ser interpretada como um silêncio eloquente do constituinte, de forma que, se o Estado atua em parceria com o particular, deve ser atraída a responsabilidade objetiva. Ora, a partir do momento em que o Estado fomenta uma atividade de serviço público deve ser considerado que houve uma opção por investir os recursos estatais nesta forma de prestação, o que atrairia a incidência da responsabilidade objetiva.

A posição aqui defendida, embora indiscutivelmente minoritária, não é isolada. Cristiana Fortini[35], por exemplo, defende a responsabilidade objetiva das organizações sociais com fundamento no artigo 37, §6º da CRFB/88, sob o argumento de que uma interpretação sistemática da Lei 9.637/98 e as derrogações de direito público aplicáveis as entidades do Terceiro Setor justificariam a exclusão do regime comum da responsabilidade civil. Também o STF, no julgamento da supracitada ADI nº 1923, ao reconhecer uma série de limites ao caráter privado destas entidades, parece caminhar neste sentido.

Por todo o exposto, conclui-se que o regime jurídico aplicável é o do artigo 37, §6º da CRFB/88, não obstante entendimento doutrinário majoritário em sentido contrário.

3.2 – Responsabilidade do Estado pelos danos causados pelo parceiro a terceiros

Em regra, não existem maiores discussões doutrinárias quanto à responsabilidade subsidiária do Estado por danos causados por seus parceiros privados – abarcando tanto os que celebram contratos quanto os que celebram convênios ou outros instrumentos afins.

As pessoas jurídicas de direito privado em parceria com o Estado respondem primariamente com seu patrimônio pelos danos causados, sendo a responsabilidade do Estado apenas eventual e subsidiária. Essa é a tese defendida por Rafael Oliveira[36].

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Para caracterização da responsabilidade solidária teria de ser demonstrada alguma conduta ilícita do Estado ou alguma omissão específica no dever de fiscalização previsto no contrato de gestão.

Contudo, deve ser destacada a posição sobre convênios e instrumentos afins firmados no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), em que se invoca, novamente, a obra de Alberto Shinji Higa, cuja leitura da seguinte passagem é essencial:

Conclui-se, pois, que as entidades sem fins lucrativos e as filantrópicas quando prestam serviços de saúde no âmbito o Sistema Único de Saúde (SUS), mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público, o fazem como agentes do Estado, razão pela qual não se trata de responsabilidade civil do Estado pela atividade administrativa de fomento no domínio social.[37]

Nesse sentido também parece caminhar o STJ:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. ALEGADA VIOLAÇÃO DO ART. 535, I E II, DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. HOSPITAL PRIVADO. ATENDIMENTO CUSTEADO PELO SUS. RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO. OFENSA AOS ARTS. 7º, IX, A, E 18, I, X E XI, DA LEI 8.080/90. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. PRECEDENTES. PROVIMENTO.

1. Não viola o art. 535, I e II, do CPC, nem importa negativa de prestação jurisdicional, o acórdão que decide, motivadamente, todas as questões argüidas pela parte, julgando integralmente a lide.

2. A questão controvertida consiste em saber se a União possui legitimidade passiva para responder à indenização decorrente de erro médico ocorrido em hospital da rede privada localizado no município de Campo Bom/RS, durante atendimento custeado pelo SUS.

3. A Constituição Federal diz que a "saúde é direito de todos e dever do Estado" (art. 196), competindo ao "Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado" (art. 197), ressalvando-se, contudo, que as "ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada" , constituindo um sistema único, organizado, entre outras diretrizes, com base na descentralização administrativa, "com direção única em cada esfera de governo" (art. 198, I).

4. A Lei 8.080/90 – que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes – prevê as atribuições e competências da União, Estados, Distrito Federal e Municípios quanto aos serviços de saúde pública.

5. Compete à União, na condição de gestora nacional do SUS: elaborar normas para regular as relações entre o sistema e os serviços privados contratados de assistência à saúde; promover a descentralização para os Estados e Municípios dos serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal; acompanhar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde, respeitadas as competências estaduais e municipais (Lei 8.080/90, art. 16, XIV, XV e XVII).

6. Os Municípios, entre outras atribuições, têm competência para planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços públicos de saúde; participar do planejamento, programação e organização da rede regionalizada e hierarquizada do SUS, em articulação com sua direção estadual; celebrar contratos e convênios com entidades prestadoras de serviços privados de saúde, bem como controlar e avaliar sua execução; controlar e fiscalizar os procedimentos dos serviços privados de saúde (Lei 8.080/90, art. 18, I, II, X e XI).

7. As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o SUS serão desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da CF/88, obedecendo, entre outros, o princípio da descentralização político-administrativa, com "ênfase na descentralização dos serviços para os Municípios" (Lei 8.080/90, art. 7º, IX, a).

8. "Relativamente à execução e prestação direta dos serviços, a Lei atribuiu aos Municípios essa responsabilidade (art. 18, incisos I, IV e V, da Lei n.º 8.080/90), compatibilizando o Sistema, no particular, com o estabelecido pela Constituição no seu artigo 30, VII: 'Compete aos Municípios (...) prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população'" (REsp 873.196/RS, 1ª Turma, Rel. p/ acórdão Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 24.5.2007).

9. Recurso especial provido, para se reconhecer a ilegitimidade passiva da União.

(Resp nº 717800/RS, Rel. Min. Denise Arruda, 1ª Turma, DJe 30/06/2008)

A posição defendida por HIGA se coaduna com o que se defende neste artigo, no que concerne à responsabilidade civil das organizações sociais. A opção de celebrar parcerias com os parceiros privados é também uma forma do Estado prestar serviço público e, portanto, deverá responder de maneira solidária.

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Sobre o autor
Dante Silva Tomaz

Advogado. Pós-graduado em Direito do Estado e da Regulação na FGV-RJ. Graduado pela UFRJ. Autor dos livros "O controle concentrado de constitucionalidade nas Constituições Estaduais" e "Iniciativa Popular de PEC", ambos pela Editora Simplíssimo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOMAZ, Dante Silva. Organizações sociais: questões sobre a responsabilidade civil por danos causados ao usuário dos serviços. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5236, 1 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60637. Acesso em: 24 abr. 2024.

Mais informações

Artigo elaborado com base no Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Pós-graduação lato sensu LL.M em Direito: Estado e Regulação. FGV DIREITO RIO.

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