3. “RATIO LEGIS” DA INCRIMINAÇÃO
As razões motivadoras das incriminações previstas na Lei Antidrogas objetivam, em geral, a prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes de drogas, e a repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas. Assim, no que tange ao delito previsto no art. 28, considerando que a novatio legis não descriminalizou nem despenalizou tal conduta64, mas tão-somente promoveu um abrandamento, se comparada com a previsão legislativa anterior (art. 16, Lei n.º 6.368/76), a razão jurídica daquele que adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo para uso próprio é o “perigo social” que sua conduta representa. Importante diferenciar a ratio legis da norma do bem jurídico por ela tutelado. Nessa linha, o bem jurídico desenvolve um importante papel na interpretação dos tipos penais, cujo sentido e alcance estão, em grande parte, condicionados pela finalidade de proteção de um determinado bem jurídico. Sem embargo, o bem jurídico e a ratio legis (finalidade objetiva da norma), não são critérios idênticos nem absolutamente coincidentes, pois nem sempre a proteção outorgada pelo legislador a um determinado bem constitui a finalidade última que persegue o ordenamento ao outorgá-la.
As razões motivadoras da incriminação de uma conduta como delito não são, necessariamente, coincidentes com o bem jurídico, nem tampouco o são as causas político-criminais levadas em conta pelo legislador. Podem, certamente, vir depois dele e conferir-lhe seus últimos detalhes, mas não devem ser confundidos com o bem jurídico, pois este perderia sua certeza e concreção, é dizer, sua utilidade. Portanto, a ratio legis pode ser ou não complementada desde a previsão legislativa, enquanto o bem jurídico sempre resultará lesionado, ou ao menos, posto em perigo pela realização do delito, e esta exigência, por seu rigor lógico, afasta toda possibilidade de diminuir a importância de sua função interpretativa em favor da ratio legis.
Dessa forma, realizando uma aproximação prática, enquanto o bem jurídico tutelado pela Lei Antidrogas é a saúde pública 65 , a ratio legis, a pretexto de salvaguardar o referido bem jurídico, almeja a prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes de drogas, e a repressão da produção e do tráfico ilícitos de drogas.
4. POSSÍVEIS ALTERNATIVAS SOCIAIS PARA A DIMINUIÇÃO DA INCIDÊNCIA DO DELITO DO ART. 28. DA LEI N.º 11.343/06
Sendo o delito um fato complexo, resultante de múltiplas causas e fatores, o seu combate deve ser estabelecido através de diversas instâncias, tanto formais como materiais66. Assim, temos no Brasil, uma “política” totalmente equivocada no que tange ao “combate às drogas”, posto que, ainda não se percebeu que a polícia e a justiça (instâncias formais) têm pouca contribuição a dar no combate ao consumo de drogas, que é um problema de saúde, de educação, e não uma questão policial. Certamente, o melhor caminho seria que tivéssemos investimentos reais – e não somente financeiros – em instâncias materiais, formadoras do “alicerce humano”. Dito de outra forma, o que temos que convalescer é: a família 67, proporcionando condições para uma convivência harmônica, pacífica e duradoura entre seus membros; as instituições de ensino básico, fornecendo desde então, a realização pessoal, fortes ligações com a escola e com os professores e, consequentemente, perspectivas de crescimento profissional no seio de uma sociedade capitalista, a fim de melhorar as expectativas em relação às crianças e a exclusão social; e a saúde pública, totalmente alheia ao “problema das drogas”, sofre de total falta de recursos para a prevenção e atendimento, não havendo sequer oportunidades para aqueles que, por si só desejam livrar-se da dependência68.
Em decorrência do despreparo do homem, resultado dos fatores supracitados, falta-lhe oportunidades de trabalho e de lazer, gerando a exclusão social, a insatisfação com a vida e consequentes sintomas depressivos. Como, há muito, tais fatores não têm recebido a devida importância de nossos governantes, a resposta emergencial vem sendo dada por meio das instituições formais (lei, polícia, judiciário e estabelecimentos penais), a fim de reparar a citada omissão69. Ao invés de se buscar uma imunização do indivíduo às drogas, por obstáculo ou castigo, melhor seria torná-lo, na prática, na vida real, menos vulnerável a assumir comportamentos de risco, valendo-se principalmente de mecanismos fornecidos pelas instâncias materiais, realizados previamente, ou seja, na formação do homem. Neste sentido, a nova Lei Antidrogas trouxe, em seu art. 19, interessante rol de princípios e diretrizes a serem seguidos para a prevenção do uso indevido de drogas, faltando sua aplicação em favor da sociedade.
5. ESTRUTURA DO TIPO DE INJUSTO DO ART. 28. DA LEI N.º 11.343/06
Partindo da premissa que o injusto penal refere-se somente ao aspecto objetivo do crime, sendo correspondente ao fato típico e antijurídico, passaremos a analisar a estrutura do tipo de injusto do art. 28. da Lei n.º 11.343/06. Apesar do abrandamento obtido em relação à lei anterior, a conduta continua incriminada, e, portanto, penalizada, devendo o acusado ser submetido a um desgastante processo penal – desnecessário -, diga-se de passagem. Ou será que a Lei 11.343/06 não possui caráter penal? E a sujeição a um processo, onde senta-se no banco dos réus e se é submetido ao crivo judicial em uma vara criminal, passando a deter todos os efeitos estigmatizantes que só um processo-crime é capaz de causar também não possui caráter de pena? Será que é disso que o usuário e o dependente de drogas precisam?
O art. 28. da Lei em comento, que pune “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. Não se pune, porém, o uso pretérito da droga, pois com se vê, não fora descrito dentre as condutas do tipo. Mas o uso presente continua a ser punido na conduta de trazer consigo. Observa-se, outrossim, que deve estar presente o fim especial de consumo, ou seja, o dolo do agente ter ou trazer a droga, especificamente, para consumo pessoal (dimensão subjetiva da infração70), podendo restar configurado outro delito. Não se pune, portanto, a forma culposa.
O sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa, seja usuário noviço, recreacional (eventual), dependente ou inveterado. Quanto à sujeição passiva, absurdamente se prevê como sendo a coletividade - o conjunto indiscriminado de cidadãos - os destinatários da proteção ensejada pela lei penal. Temos, portanto, um dispositivo legal que tenta proteger um “conjunto indiscriminado de cidadãos” de uma conduta inofensiva, isto é, protege-se não se sabe quem, de nada. Tal crítica torna-se ainda mais evidente no que tange à consumação do delito, que ocorre com a prática de qualquer dos núcleos do tipo71 - lembrando que guardar, trazer consigo e ter em depósito configuram crimes permanentes, bem como na modalidade cultivar -, de modo que, não caracteriza o crime de “porte de entorpecente” a conduta do agente que, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, a consome incontinenti, pois a incriminação do porte de tóxico só se pode explicar como delito contra a “saúde pública”, possibilitando uma situação de perigo contra indeterminado número de pessoas72. Restando a dúvida: o que se protege? Do que? Trata-se, portanto de crime de perigo abstrato que se utiliza da ratio legis para justificar a incriminação, ou seja, vale-se da finalidade da lei e não do bem jurídico penal, o qual inexiste aqui. Vejamos então a objetividade jurídica do delito: a) Adquirir: significa alcançar a propriedade ou a posse, pouco importando a forma ou o meio: troca, doação, venda etc; b) Guardar: compreende a ocultação pura e simples, permanente ou precária; c) Ter em depósito: é manter a droga sob seu domínio, sob condições de pronto alcance; d) Transportar: significa levar de um local a outro.
No que tange à consumação do delito previsto no § 1º, do art. 28, Lei n.º 11.343/06, basta semear, cultivar ou colher. Já quanto à tentativa, admitir-se-á apenas na modalidade adquirir73. Já quanto as hipótese do § 1º, é perfeitamente possível a tentativa quando, por exemplo, o agente apenas preparou o local e foi surpreendido com as sementes (sem princípio ativo), antes de lançá-las ao destino pretendido (semear). Importa mencionar, por fim, a previsão legal do § 6º do dispositivo em comento, segundo o qual, caso o agente se recuse injustificadamente a cumprir uma das penas previstas pelo caput, quando da condenação, poderá o magistrado submetê-lo sucessivamente a: I - admoestação verbal; II – multa.
6. CONCLUSÃO
O fenômeno criminal, por complexo e multifacetário que é, merece constante atenção das ciências que estudam analisam as sociedades humanas. Seja sob uma perspectiva meramente jurídica, consubstanciada em mera violação da lei penal, seja por uma visão sociológica do fenômeno ou mesmo sob uma angulação biopsicológica, de fato o tema é merecedor observação. Sabemos que o problema da criminalidade, cujos índices se fizeram sentir de forma aguda a partir da década de 1980, tem gerado uma forte demanda “de políticas criminais duras” com o recrudescimento das leis e ampliação de tipos penais, muitas vezes desprovidos de seu exclusivo objeto de proteção, qual seja o bem jurídico penal. O crime como fenômeno social e, portanto, humano, deve ser estudado à luz da natureza desse ser complexo cuja dignidade transcende superficiais conceitos legais estabelecidos em épocas de lógica pouco democrática. Veja-se que o delito não só é um fenômeno social normal, como também cumpre outra função importante, qual seja, a de manter aberto o canal de transformações de que a sociedade precisa.
Afirmar-se que o ser humano tem livre-arbítrio sobre seus atos, podendo posicionar-se ou não, de acordo com a lei - sem uma coerente e necessária observação de fatores criminogenéticos, vindos da própria constituição do delinquente ou do meio social em que vive -, pode nos conduzir a um infecundo e arbitrário Direito Penal das presunções, mecanismo odioso do ponto de vista democrático. Maior relevo se dá a essa questão quando associada à discussão “das drogas”, problema de primeiro escalão nos dias atuais, que atingiu esse patamar porque a “solução” (criminalizar) da qual se valeu o Estado mostrou-se totalmente equivocada e ineficaz. Nessa linha, o tratamento penal das drogas é incompatível com os postulados da racionalidade que devem informar os atos do governo em um Estado Democrático de Direito, ao se instituir no campo da intimidade e da vida privada, em cujo âmbito é vedado ao Estado e, portanto, ao Direito penetrar.
Equilibra-se assim, a omissão estatal de uma administração que não proporcionou educação, saúde, cultura, entre outros direitos sociais essenciais à formação e desenvolvimento humano, através do Direito Penal, “protegendo” a aristocracia incomodada da “plebe infratora”. Sob esse ângulo, a descriminalização é um impensável imperativo nascido do indispensável respeito à liberdade individual, que colocaria a legislação pátria em consonância com as novas tendências do Direito Penal Internacional minimalista, contrário ao modelo repressivo norte-americano, que é menos eficaz. Posto que o Direito Penal repressor tornou-se absolutamente ineficiente neste tópico, devendo ceder passagem para as demais instâncias do controle social e para os demais ramos do Direito.
Não se quer, portanto, patrocinar o uso indiscriminado de drogas, mas apenas sua descriminalização e consequente regulamentação, diante, por exemplo, da venda controlada e criação de estabelecimentos próprios para consumo, tal como ocorre na maioria dos países europeus. A questão aqui discutida refere-se à contrariedade da criminalização de tal conduta com a sistemática penal atual, pois a construção do bem jurídico não significa mais do que uma descrição da finalidade da lei (ratio legis), deixando de dizer se a obtenção deste fim pertence aos pressupostos indispensáveis de uma coexistência pacífica, ou ainda, qual seria o dano social inevitável de outra maneira causado pelo consumo particular de drogas.
Esclarece-se, ainda, tratar-se de um problema de saúde pública e prevenção educacional, sendo que a polícia e a justiça têm pouco ou nada a contribuir. O Direito Penal, então, não terá atingindo nenhuma de suas funções sociais, sequer será instrumento de efetiva proteção a bens jurídicos – já que não há nenhum a ser tutelado -, mas mecanismo de lesão a estes. Assim sendo, no que tange ao tratamento jurídico-penal dos comportamentos autolesivos e autodestrutivos, a aplicação dos princípios da intervenção mínima e, especialmente, da lesividade dos bens jurídicos impede que, por mais paternalista que seja um Estado, este possa ampliar seu âmbito de atuação até o ponto de aplicar uma pena criminal a comportamentos cuja relevância não ultrapasse os limites do próprio interesse individual. Ademais, ao se admitir a violação de direitos e garantias individuais dos “infratores”, direitos estes assegurados no núcleo intangível da Constituição Federal a fim de salvaguardar o mínimo de liberdade aos cidadãos, limitando a atuação do Estado. Certamente tal violação se estenderá, em um futuro próximo, como consequência, aos direitos dos “cidadãos”, permitindo que a esfera de atuação e reprodução do poder estatal cresça em detrimento da liberdade individual do homem, restringida.
Demais disso, a criminalização do uso de drogas coloca o usuário e dependente à margem da sociedade, estigmatizando-os e dispensando–lhes tratamento de criminosos, enquanto o ideal seria convencê-los, educá-los (ou reeducá-los) e inseri-los (ou reinseri-los) na sociedade. É, portanto, um trabalho de convencimento, e não é a pena que resolve. Porque, de certa forma, a estigmatização penal é a única diferença entre comportamentos objetivamente idênticos, como por exemplo: uso de drogas, de álcool, de derivados do tabaco etc. Abandoná-la é fundamental para política antidrogas, posto que, não há como diminuir a criminalidade decorrente de substâncias psicotrópicas enquanto os envolvidos em tais crimes forem vistos como seres inferiores, marginalizados e insuportáveis à moralidade, vitimas de uma padronização social, mais preocupada com a expressividade da conduta, do que com os indivíduos, sucumbidos à oca literalidade da lei confeccionada por legisladores de conhecimentos forenses limitados. Ressalte-se por fim que a ausência de estudos mais aprofundados quanto ao problema das drogas, e a carência de atitudes coerentes do Estado-juiz e do Estado-administração quando da aplicação e elaboração das leis, têm implementado a formação de uma brutalizada população carcerária cuja presença de usuários e dependentes é notória. Longe de se alcançar o verdadeiro fim curativo-preventivo do Direito Punitivo.
No que tange ao tráfico ilícito de drogas e delitos congêneres, dever-se manter a criminalização até que o Estado detenha o monopólio da produção e comercialização de drogas, quando então poderá dispensar tratamento semelhante àquele conferido aos medicamentos de venda controlada, regulamentando o mercado dos estupefacientes na esfera administrativa e, subsidiariamente, na penal, tal como ocorre com remédios, bebidas, tabacos, alimentos etc. Além de poder controlar as substâncias maléficas misturadas em razão do fabrico clandestino de entorpecentes. Alcançando, com isso, um verdadeiro avanço, poderá o Estado tributar a venda de drogas e aumentar sua arrecadação, podendo reverter maior número de recursos em prol da sociedade.