Avarias marítimas: aspectos gerais e legislação aplicável

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Conhecer conceitos, pressupostos e implicações de responsabilidade que envolvem o tema avarias marítimas é de grande valia para a segurança e desenvolvimento do comércio marítimo, além de contribuir para a uniformização do direito marítimo.

Sumário: 1. Avarias Marítimas; 1.1 Avarias Simples; 1.2 Avarias Grossas; 1.2.1 A legislação aplicável para a qualificação e a regulamentação das avarias grossas; 1.2.1.1 A regulação da avaria grossa no Código de Processo Civil de 2015; 1.2.1.2 Regras de York e Antuérpia (York & Antwerp Rules).

RESUMO:O constante crescimento do comércio exterior traz, por consequência, o incremento e a expansão do transporte marítimo mundial. Diante desse cenário, dada a importância e a grande relevância econômica que o comércio marítimo possui, torna-se imprescindível para a segurança da atividade marítima, o estudo e a abordagem do tema das avarias marítimas, de modo a abranger os pressupostos e as características essenciais, como natureza e classificação, e também, a legislação aplicável e suas principais implicações na regulamentação do instituto. Para tanto, será realizada pesquisa nas doutrinas das Professoras Eliane Maria Octaviano Martins e Carla Adriana Comitre Gilbertoni, assim como será feito uma análise da para legislação aplicável, como o Código Comercial Brasileiro de 1850, o Código de Processo Civil de 2015 e as Regras de York-Antuérpia.

Palavras-chaves: Avarias marítimas – Avaria grossa – Avaria simples  – Código Comercial - Regras de York-Antuérpia.


INTRODUÇÃO

O transporte marítimo de longo curso é, inquestionavelmente, um dos principais sustentáculos do comércio exterior, ao passo que, se torna inconcebível o desenvolvimento da economia global sem a contribuição do transporte marítimo transoceânico, que é um instrumento fundamental para o progresso econômico mundial.

Nesse cenário, o avanço do transporte marítimo coloca a tona diversos assuntos relacionados ao expedições marítimas, principalmente porque, via de regra, são estabelecidos de acordo com os padrões postos pelo direito inglês.

Dentre os temas de grande retumbância, que são causas de inúmeros litígios, ressalta-se as avarias marítimas. Desse modo, o presente estudo, tem por objetivo apresentar uma abordagem moderna do Direito Marítimo no que tange as suas espécies, conceitos, pressupostos, características e implicações de responsabilidade, bem como, como as legislações que poderão ser aplicadas, como o Código Comercial, o Código de Processo Civil e as Regras de York – Antuérpia.

Nesse sentido, inicialmente, no presente trabalho, serão explorados os aspectos gerais das avarias marítimas, como conceito e natureza. Posteriormente, será abordada as particularidades das avarias simples, demonstrando seus principais aspectos e implicações de responsabilidade.

Por conseguinte, adentrar-se-á especificamente nas avarias grossas, passando pelas suas características, pressupostos, até adentrar em sua legislação aplicável, fazendo uma analise de toda a legislação aplicável.

 A abordagem deste tema é de extrema importância uma vez que a doutrina é extremamente limitada. Tratar das avarias marítimas é falar de prejuízos em grandes escalas, que podem afetar a logística e o comercio mundial.


1 AVARIAS MARÍTIMAS

Presente desde os primórdios da navegação no Código de Hamurabi de 2.095 a.C, o instituto das avarias marítimas tem como objetivo primordial a regulamentação das despesas ou danos extraordinários sofridos pela carga ou pela embarcação ocorridos durante a expedição marítima.

No Brasil, o Código Comercial traz a definição de avaria como sendo:

Art. 761 - Todas as despesas extraordinárias feitas a bem do navio ou da carga, conjunta ou separadamente, e todos os danos acontecidos àquele ou a esta, desde o embarque e partida até a sua volta e desembarque, são reputadas avarias.[3]

Ressalta-se que o referido artigo define avaria de forma ampliativa, considerando esta como sendo os danos sofridos pelos diferentes tipos de carga ou com o próprio navio transportador, bem como, todas as despesas extraordinárias (indenizações e encargos) resultantes de um acidente marítimo.

No que tange à natureza, as avarias marítimas podem ser classificadas em duas espécies distintas. A primeira é a chamada avaria-dano, que abarca todos os danos materiais e imateriais decorrentes do estrago e da redução do valor do bem transportado.

A segunda, é a avaria-despesa, que se refere aos desembolsos excepcionais, que não foram previstos, mas se tornaram necessários para que o navio e a carga chegassem com segurança no local de destino.

Nas palavras da professora Eliane Octaviano Martins:

As avarias-danos (ou avarias deteriorantes, "Average Loss") são motivadas, essencialmente, por faltas náuticas. No contexto dos danos, se enquadram os danos materiais, decorrentes da inutilização ou estrago da coisa (navio e/ou carga) e os danos imateriais, dos quais resulta apenas redução no valor da coisa. As avarias-despesas (ou avarias expensivas, "Average Expenditures") são geralmente causadas por elementos de força maior ("Acts Of God"). Consubstanciam-se em desembolsos de caráter excepcionais necessários para que o navio complete a expedição marítima com segurança ou que a carga efetivamente venha a chegar, com a mesma segurança, a seu destino. [4]

Cumpre esclarecer que as despesas já previstas no início da viagem não podem ser consideradas como avarias-despesas mesmo que tenham sido desemprenhadas em benefício do navio e da carga (VALLE, 1921). Nesse sentido, o Código Comercial exemplifica as despesas que não constituem essa modalidade, como os gastos para aligeirar o navio e as despesas de pilotagem da costa. Veja-se:

Art. 767 - Se em razão de baixios ou bancos de areia conhecidos o navio não puder dar à vela do lugar da partida com a carga inteira, nem chegar ao lugar do destino sem descarregar parte da carga em barcas, as despesas feitas para aligeirar o navio não são reputadas avarias, e correm por conta do navio somente, não havendo na carta-partida ou nos conhecimentos estipulação em contrário.

Art. 768 - Não são igualmente reputadas avarias, mas simples despesas a cargo do navio, as despesas de pilotagem da costa e barras, e outras feitas por entrada e saída de obras ou rios; nem os direitos de licenças, visitas, tonelagem, marcas, ancoragem, e outros impostos de navegação.

Ademais, tanto as avarias-despesas, quando as avarias-dano, podem ser classificadas quanto à causa de sua ocorrência – tal distinção possui grande relevância no direito marítimo, uma vez que a depender do motivo ensejador da avaria, a legislação, a abrangência e o valor dos dados e das despesas serão completamente distintos.

Nessa perspectiva, conforme expressamente prevê o art. 763 do Código Comercial, as avarias se dividem em duas espécies: avaria simples ou particular e avaria grossa ou comum.

Art. 763 - As avarias são de duas espécies: avarias grossas ou comuns, e avarias simples ou particulares. A importância das primeiras é repartida proporcionalmente entre o navio, seu frete e a carga; e a das segundas é suportada, ou só pelo navio, ou só pela coisa que sofreu o dano ou deu causa à despesa.

AVARIAS SIMPLES

As avarias simples (Particular Average) são um ato involuntário que acarreta uma despesa extraordinária suportada pelo navio, ou pela coisa que sofreu o dano ou deu causa à despesa. Em outras palavras, são os danos sofridos pelo navio ou pela carga, que ocorrem durante a viagem ou durante o período de embarque e desembarque.

Numa P. do Valle sintetiza explicando que:

Avarias simples ou particulares são todas as despezas extraordinárias feitas a bem do navio ou da carga, separadamente, independentemente de deliberação especial e sem o objectivo de salvação commum, e todos os damnos acontecidos, só ao navio, ou só à carga, desde o seu embarque e partida até a sua volta e desembarque. [5]

Em todas as situações de avaria simples, não há qualquer ato de vontade do agente para ocorrência do dano; elas derivam essencialmente de fortuna do mar (caso fortuito e de força maior), de vício próprio do navio e/ou da carga, de fatos da tripulação e de fatos do transportador/armador (SIMAS, 1938).

A fortuna do mar diz respeito às ocorrências que não são previstas e muito menos controladas pelo armador. Como exemplo, podemos citar as tempestades, as mudanças forçadas de derrota, os abalroamentos, encalhes, naufrágios, incêndios, ação das correntes oceânicas, nevoeiros, etc. (SANTOS, 1968). Nesses casos, entende-se, via de regra, pela exclusão de responsabilidade por parte do transportador, haja vista que, em que pese tenha havido perda ou deterioramento da carga, os danos causados foram provenientes de incidentes da navegação.

Outra causa de avaria marítima é o vício do próprio navio e/ou da carga. Há vício do próprio navio quando este apresentar defeitos ou estiver em condições precárias – nesses casos, ainda que a embarcação tenha certificado de navegabilidade, não há que se falar em exoneração de responsabilidade do transportador. Outrossim, a avaria ocasionada por vício da carga ocorre em razão da natureza do bem transportado, seja por facilidade de decomposição,  combustão espontânea, ou até pelo mau acondicionamento da carga.

A terceira possível forma de avaria simples esta ligada aos fatos da tripulação, ou seja, aos atos praticados por qualquer pessoa a bordo que ocasionaram dano a carga ou ao navio. Nessa hipótese, aquele que gerou o prejuízo será responsabilizado pelos danos produzidos. 

Por fim, os fatos da navegação, ou faltas do capitão, se referem aos casos em que a avaria ocorre porque o transportador agiu com negligência ou com falta de vigilância para com o acondicionamento da carga. Assim, tendo em vista que o capitão é considerado o verdadeiro depositário da carga e é seu dever guarda-la em bom condicionamento e conservação - segundo o art. 519 do Código Comercial, este será responsável pelos prejuízos causados.

O Código Comercial é claro ao exemplificar os tipos de avarias simples. Confira-se:

Art. 766 - São avaria simples e particulares:

1 - O dano acontecido às fazendas por borrasca, presa, naufrágio, ou encalhe fortuito, durante a viagem, e as despesas feitas para as salvar.

2 - A perda de cabos, amarras, âncoras, velas e mastros, causada por borrasca ou outro acidente do mar.

3 - As despesas de reclamação, sendo o navio e fazendas reclamadas separadamente.

4 - O conserto particular de vasilhas, e as despesas feitas para conservar os efeitos avariados.

5 - O aumento de frete e despesa de carga e descarga; quando declarado o navio inavegável, as fazendas são levadas ao lugar do destino por um ou mais navios (artigo nº. 614).

Em geral, as despesas feita; e o dano sofrido só pelo navio, ou só pela carga, durante o tempo dos riscos.

Nesses casos, vale destacar que a principal característica da avaria simples é de que as despesas resultantes do dano sofrido serão de responsabilidade do proprietário da coisa afetada (uma só pessoa) – sendo apenas lhe garantido o direito de regresso em face do verdadeiro causador do dano.

Pertinente elencar também que, nessa modalidade, aplica-se as Regras de Haia, as Regras de Haya-Visby e Hamburgo. Se incidente legislação brasileira, aplicar-se-á o Código Comercial e a legislação complementar.

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AVARIAS GROSSAS

As avarias grossas (gross, General Average), por sua vez, correspondem a toda e qualquer despesa ou dano extraordinário que tenha sido ocasionado por um ato intencional e inteiramente voluntário visando à segurança do navio e de suas cargas diante de um contexto de perigo real e iminente.

Entende-se pelo conceito de avaria grossa a conduta intencional e voluntária adotada pelo Capitão do navio que teve como objetivo evitar um mal maior à expedição marítima – desde que diante de uma situação de perigo atual e iminente. É uma atitude efetiva na tentativa de preservar o bem comum em detrimento de interesses particulares.

O conceito de avaria grossa pode ser extraído da Regra A das Regras de York e Antuérpia de 2016, a qual prevê:

Regra A

1. Há avaria grossa quando, e somente quando, qualquer sacrifício ou as despesas são intencionalmente e razoavelmente feitas ou incorridas para a segurança comum com a finalidade de preservar de perigo a propriedade envolvida em uma aventura marítima comum.

2. A média geral de sacrifícios e despesas deve ser suportada pelos diferentes interesses contribuintes, na base a seguir indicada (tradução livre). [6]

Os sinônimos “avaria grossa” e “avaria comum”, segundo Francisco Fariña (1956), exprimem três características dessa modalidade: 1) ato de realizar um sacrifício de interesse comum de uma expedição marítima; 2) perda ou o dano ocasionado por tal conduta; 3) contribuição imposta para o ressarcimento dos prejuízos causados. 

Nas palavras de Heitor Mendonça, a avaria grossa é:

Uma categoria de danos causados à carga ou embarcação, em oposição à avaria simples ou comum, para o fim de preservação do sucesso da expedição e do interesse comum quando o evento causador do dano é imprevisto resultante de perigo extremo e comum, ensejando sacrifício voluntário visando à salvação do bem comum e quando ocorrer durante o transporte. O fato imprevisto aqui analisado não se configura como causa excludente de responsabilidade civil. Trata-se de ocasião em que, apesar da surpresa gerada por força maior, os danos sofridos são necessários para preservação do bem comum, ou seja, manter a salvo a embarcação e, tanto quanto possível, os bens embarcados. [7]

Verifica-se que há uma participação humana com o objetivo de evitar males de maior vulto diante de um perigo ou desastre imprevisto. No entanto, cumpre ressaltar que o a conduta adotada deve ser intencional e razoável, de modo que seja a única alternativa a ser realizada pelo Comandante, e que irá superar um risco maior que tenha surpreendido a expedição.

Nesse sentido, alguns pressupostos são estabelecidos pela doutrina como elementares para o enquadramento dos prejuízos como sendo uma avaria grossa ou comum.

O primeiro é a necessidade de o dano extraordinário ter sido executado de maneira intencional, razoável e com o fim de proteger os envolvidos na viagem marítima, sobretudo o navio e a carga. O segundo pressuposto é a existência de um perigo real e iminente – e não apenas o receio de um perigo.

Sobre o tema, Miranda Filho elucida e exemplifica as situações de perigo iminente de forma brilhante:

É muito difícil definir o grau de real perigo, que precisa estar presente para que se consubstancie o ato de avaria grossa. O perigo pode não ser iminente, mas ser real. E, também, pode ser iminente, mas não se tornar real. Entretanto, para ser admitido na avaria grossa, o prejuízo tem que ser nascido de um perigo cuja iminência e o grau de realidade sejam um fato inconteste. Exemplo de um perigo real, mas não iminente: um navio em pleno oceano, sem hélice, mar calmo, tempo bom. Pedir socorro, rebocar este navio para um porto seguro é uma medida tomada pela segurança comum e razoável, pelo extraordinário do momento. Já um navio que navega normalmente e o Comandante resolve abrigar-se em um porto de refúgio por causa do aviso aos navegantes, de um possível forte mau tempo que se aproxima e, ao final, o mau tempo não ocorreu, isto é prudência tão somente, e não serão consideradas como avarias grossas as despesas desta decisão. [8]

Alguns doutrinadores defendem ainda a ideia de um terceiro pressuposto, que preza pelo resultado útil e pelo salvamento parcial ou total do interesse envolvido na expedição marítima. Todavia, tal condição encontra grande divergência doutrinária (MARTINS, 2011).

A inobservância de tais pressupostos, quando ocorrida a avaria marítima, ainda que extraordinária, afasta a configuração de uma avaria comum ou grossa, fazendo com que seja reconhecida como avaria particular ou simples.

No entanto, uma vez configurada a avaria grossa ou comum, as despesas e os danos dela decorrentes serão rateados por todos os envolvidos e interessados na expedição marítima, é o chamado “valor contribuinte”, que tem por objetivo a reintegração e a recomposição dos danos causados e dos bens sacrificados.

Tal regra se justifica através do principio da equidade – basilar na aplicação da avaria grossa, haja vista que a avaria foi necessária para o salvamento ou atenuação dos danos sofridos pelo navio, pela carga e pela comunidade de bordo, que conseguiram escapar à custa daquele sacrifício realizado pelo Comandante em benefício do bem comum (GONÇALVES, 1956).

Trata-se do principal efeito da avaria grossa a criação simultânea de um direito e de uma obrigação. O direito dos interessados na viagem marítima de serem indenizados, e a obrigação dos mesmos de contribuir nas referidas despesas.

Dessarte, ressalta-se que a responsabilidade de cada um dos envolvidos será apurada através de uma procedimento denominado “regulação de avaria”, o qual é realizado pelo regulador de avarias (profissional habilitado na área), em que o quantum indenizatório é arbitrado proporcionalmente ao valor empenhado na expedição - os armadores assumem o valor da embarcação e os embarcadores se responsabilizam pelo valor de suas cargas. É o que dispõe o artigo 756 do Código Civil Brasileiro. Veja-se:

Art. 756. No caso de transporte cumulativo, todos os transportadores respondem solidariamente pelo dano causado perante o remetente, ressalvada a apuração final da responsabilidade entre eles, de modo que o ressarcimento recaia, por inteiro, ou proporcionalmente, naquele ou naqueles em cujo percurso houver ocorrido o dano.[9]

O Código Comercial Brasileiro prevê, inclusive, que o Capitão poderá exigir dos consignatários da carga uma fiança idônea a fim de contribuir com o pagamento de avaria grossa. Nos casos em que não for dada tal garantia, o transportador marítimo terá o direito de requerer o deposito judicial das mercadorias para venda posterior.

Art. 784 - O capitão tem direito para exigir, antes de abrir as escotilhas do navio, que os consignatários da carga prestem fiança idônea ao pagamento da avaria grossa, a que suas respectivas mercadorias forem obrigadas no rateio da contribuição comum.

Art. 785 - Recusando-se os consignatários a prestar a fiança exigida, pode o capitão requerer o depósito judicial dos efeitos obrigados à contribuição, até ser pago, ficando o preço da venda sub-rogado, para se efetuar por ele o pagamento da avaria grossa, logo que o rateio tiver lugar.

Outrossim, cumpre ressaltar que a responsabilidade civil nos casos de avaria grossa difere da regra geral da responsabilidade objetiva do ordenamento jurídico pátrio, prevista no art. 733 do Código Civil[10], isso porque, no transporte marítimo, o armador assume obrigação de meio, em que há o rateio dos riscos da expedição, e não de resultado, em que há a responsabilidade objetiva do transportador e sua culpa do é presumida.

Nessa perspectiva, Rodrigo Mazzei e Werner Braun Rizk lecionam que:

Ao contrário do que ocorre com o sistema de responsabilidade objetiva e de resultado incidente sobre os contratos de transporte em geral – o transporte pela via marítima foi construído sobre a premissa de rateio dos riscos de expedição. Isso quer dizer que, de regra, o transportador não responde exclusiva e integralmente por perdas e danos ocorridos durante o transporte de carga de terceiros nem assumo obrigação de resultado. Trata-se de regime especial que afasta, neste aspecto, a regra geral do art. 733 do CC. [11]

Desse modo, não há que se falar em responsabilidade exclusiva e integral pelas perdas e danos ocorridos durante a expedição marítima. A regra das avarias grossas é a divisão proporcional das despesas entre os proprietários das cargas embarcadas e o navio.

1.2.1 A legislação aplicável para a qualificação e a regulamentação das avarias grossas

No que tange a legislação aplicável, a avaria grossa esta regulamentada no ordenamento pátrio nos artigos 707 e seguintes do Código de Processo Civil, e também nos artigos 764 e 765 do Código Comercial, que enumeram, de forma exemplificativa, as situações em que a avaria grossa estará configurada, e também nas regras de York e Antuérpia (RYA), que por serem puramente privadas, é facultativa sua adoção nos contratos de transporte marítimo.

No Brasil, de um modo geral, os transportes internacionais estão sujeitos às Regras de York e Antuérpia de 2004[12], quanto à regulamentação das avarias comuns. Ao passo que a navegação de cabotagem[13] se submete as disposições do Código Comercial de 1850.

Desse modo, nos termos da Regra de Interpretação, na regulamentação das avarias grossas serão as RYA, excluindo-se qualquer lei e prática incompatíveis com elas. Destarte, as RYA, quando expressamente indicadas em contrato, são aplicáveis, em detrimento de qualquer lei nacional ou internacional (MARTINS, 2011).

A legislação aplicável é indicada na cláusula de avaria grossa (General Average Clause) inserida no Bill of Lading ou no Chater Party. Na omissão dos contratantes aplicar-se-á as normas do Código Comercial Brasileiro. É o que dispõe o art. 762 desse diploma:

Art. 762 - Não havendo entre as partes convenção especial exarada na carta partida ou no conhecimento, as avarias hão de qualificar-se, e regular-se pelas disposições deste Código.

Desse modo, em síntese, o Código Comercial além de tratar sobre a natureza, a classificação e exemplificar as avarias grossas, o diploma normativo também autoriza de forma expressa a validade da aplicação das Regras de York e Antuérpia caso seja convencionado entre as partes.

1.2.1.1 A regulação da avaria grossa no Código de Processo Civil de 2015

Outrossim, cumpre trazer à baila as inovações trazidas pelo Novo Código de Processo Civil de 2015, no que tange à regulação da avaria grossa. O tema está disciplinado na parte destinada dos procedimentos especiais, especificamente nos artigos 707 a 711. Isso porque o procedimento de regulação das avarias grossas comporta rito procedimental específico conotado por fases próprias capazes de atender a realidade do direito material tutelado (SICA, 2016).

A primeira grande alteração regulada pelo NCPC esta no art. 707, em que o legislador possibilita que o regulador da avaria grossa poderá ser nomeado pelo magistrado nos casos em que não há nomeação consensual entre as partes.

Art. 707. Quando inexistir consenso acerca da nomeação de um regulador de avarias, o juiz de direito da comarca do primeiro porto onde o navio houver chegado, provocado por qualquer parte interessada, nomeará um de notório conhecimento.

Tal regra possui grande importância, uma vez que a avaria comum possui natureza complexa, que enseja muitas divergências entre os litigantes.

No entanto, importante explicar que o dispositivo supra não remete a uma competência do Tribunal Marítimo, considerando que o procedimento de regulação das avarias grossas esta voltado à tutela de direito privados ligados ao ressarcimento dos danos sofridos na condição de avaria grossa, sem qualquer caráter sancionatório (SICA, 2016).

 No art. 708 do CPC, por sua vez, o legislador norteia a atuação do regulador de avarias, deixando claro que ao avaliar o sinistro ocorrido, este deve declarar, de forma justificada, se os danos são passiveis de rateio na forma da avaria comum, e ainda, deve exigir das partes envolvidas a apresentação de garantias idôneas. Ipsis litteris:

Art. 708. O regulador declarará justificadamente se os danos são passíveis de rateio na forma de avaria grossa e exigirá das partes envolvidas a apresentação de garantias idôneas para que possam ser liberadas as cargas aos consignatários.

§ 1º A parte que não concordar com o regulador quanto à declaração de abertura da avaria grossa deverá justificar suas razões ao juiz, que decidirá no prazo de 10 (dez) dias.

§ 2º Se o consignatário não apresentar garantia idônea a critério do regulador, este fixará o valor da contribuição provisória com base nos fatos narrados e nos documentos que instruírem a petição inicial, que deverá ser caucionado sob a forma de depósito judicial ou de garantia bancária.

§ 3º Recusando-se o consignatário a prestar caução, o regulador requererá ao juiz a alienação judicial de sua carga na forma dos arts. 879 a 903.

§ 4º É permitido o levantamento, por alvará, das quantias necessárias ao pagamento das despesas da alienação a serem arcadas pelo consignatário, mantendo-se o saldo remanescente em depósito judicial até o encerramento da regulação.

O dispositivo retira do comandante o papel de declarar a avaria grossa, os prejuízos decorrentes e a extensão do dano para cada uma das partes, atribuindo a um terceiro, que possui qualidade técnica específica, o dever de apurar os haveres e os deveres dos envolvidos.

Além de disciplinar sobre a conduta do regulador de avarias, o Código de Processo Civil, no art. 709, prevê que é dever das partes fornecer os documentos necessários para o início do procedimento de regulação obedecendo ao prazo fixado pelo regulador de acordo com as peculiaridades de cada caso. Veja-se:

Art. 709. As partes deverão apresentar nos autos os documentos necessários à regulação da avaria grossa em prazo razoável a ser fixado pelo regulador.

Não obstante, o art. 710 fixa o limite de 12 (doze) meses para o regulador entregar o laudo de avaria a partir da data de entrega dos documentos necessários, podendo as partes aceita-lo ou impugna-lo no prazo de 15 (quinze) dias.  

Art. 710. O regulador apresentará o regulamento da avaria grossa no prazo de até 12 (doze) meses, contado da data da entrega dos documentos nos autos pelas partes, podendo o prazo ser estendido a critério do juiz.

§ 1º Oferecido o regulamento da avaria grossa, dele terão vista as partes pelo prazo comum de 15 (quinze) dias, e, não havendo impugnação, o regulamento será homologado por sentença.

§ 2º Havendo impugnação ao regulamento, o juiz decidirá no prazo de 10 (dez) dias, após a oitiva do regulador.

O art. 711, por fim, preceitua que aplica-se ao regulador de avarias as mesmas disciplinas normativas do perito consubstanciadas nos artigos 156 a 158 do CPC, aplicando-se inclusive, o impedimento, a suspeição e até sanção pelo não cumprimento do prazo estipulado.

1.2.1.2 Regras de York e Antuérpia (York & Antwerp Rules)

As Regras de York e Antuérpia são uma tentativa de uniformização intencional acerca das avarias marítimas, empreendida desde 1997 pela International Law Association, e que vem sendo atualizadas periodicamente.

No comércio internacional, as RYA são padrões privados, incorporadas de forma expressa nos contratos de afretamento, visando a melhor distribuição dos encargos diante de uma eventual avaria marítima.

Carla Adriana C. Gilbertoni faz uma breve digressão e explica que:

As denominadas regras de York-Antuérpia, inicialmente conhecidas por Regras de York, tiveram origem em 1869, na cidade de York. Posteriormente, em 1877, foram discutidas e concretizadas, na cidade de Antuérpia, ficando conhecidas como o nome de Regras de York-Antuerpia de 1877, sendo revisadas em 1890 e 1903. Em 1924, em Estocolmo, as regras foram totalmente revisadas e ganharam um nova forma. Criaram-se as normas alfabéticas, com um preâmbulo, a fim de manter as numéricas em sua ordem em anterior. São sete as regras alfabéticas (de A a G), de caráter geral, e incluem os princípios básicos de avaria grossa, definem os fundamentos da avaria, a sua natureza e disciplinam certas circunstancias como a questão da culpa e as despesas em substituição. [14]

As RYA são um conjunto normativo composto por i) uma Regra de Interpretação; ii) uma Regra Preponderante; iii) Sete regras letradas (Regras de A a G); e iv) vinte e três regras numéricas (Regras de I a XXIII).

As regras letradas preveem, sobretudo, a configuração da avaria grossa, bem como seus pressupostos, parâmetros regulatórios e de indenização. Já as regras numéricas – listadas de forma exemplificativa -, ilustram a inclusão ou a exclusão dos danos e dos gastos, tais como as matérias de deduções, depósitos, juros e bonificações (MARTINS, 2011).

Nesse contexto, nos casos de conflito entre uma regra letrada e uma regra numérica, aquelas prevalecem.

Visando uma melhor percepção, confira-se as Regras sintetizadas:

Regra A - Conceituação primeira de avaria grossa

Regra B - Avaria marítima comum

Regra C - Exclusão de despesas decorrentes da avaria grossa no montante a ser rateado

Regra D - Indiferença da causa primária

Regra E - Ônus probante e notificação

Regra F - Despesas adicionais

Regra G - Do lugar de regulamentação da avaria grossa

Regra I - Alijamento da carga

Regra II - Perda ou dano por sacrifícios para a segurança comum

Regra III - Extinção de incêndio a bordo

Regra IV - Remoção de destroços por corte

Regra V - Encalhe voluntário

Regra VI - Remuneração por salvamento

Regra VII - Avaria às máquinas e caldeiras

Regra VIII - Despesas de alívio de uma embarcação quando encalhada e danos consequentes

Regra IX - Carga, materiais da embarcação e provisões utilizados como combustível

Regra X - Despesas num porto de refúgio

Regra XI - Soldadas e manutenção da tripulação e outras despesas para levar ao porto de refúgio e no porto de refúgio, etc.

Regra XII - Dano à carga no descarregamento, etc.

Regra XIII - Dedução do custo de reparos

Regra XIV - Reparos provisórios

Regra XV - Perda de frete

Regra XVI - Quantia a ser permitida para a carga perdida ou danificada por sacrifício

Regra XVII - Valores contribuintes

Regra XVIII - Danos à embarcação

Regra XIX - Carga não declarada ou declarada com erro

Regra XX - Provisão de Fundos

Regra XXI - Juros em perdas permitidas na avaria grossa

Regra XXII - Tratamento de depósito em dinheiro

Regra XXIII - Período de prescrição para as contribuições de avaria grossa - "time bar"

Nesse enquadramento, as RYA uniformizam diversas situações relacionadas as avarias grossas, como por exemplo, que os danos ocasionados por fogo, calor ou fumaça são considerados como avaria simples, e não grossa (Regra III); não configura avaria comum a perda ou os danos sofridos em virtude do corte de destroços ou de partes da embarcação as quais tenham sido previamente danificadas ou que estejam efetivamente perdidas por acidente (Regra IV); o custo da manipulação a bordo ou da descarga das mercadorias, do combustível ,ou provisões,  serão considerados como avaria grossa somente quando a reestivagem for necessária para a segurança comum (Regra X).

Para mais, a Regra C esclarece os casos em que não se configura avaria grossa: I) Danos e despesas não resultantes diretamente do ato de avaria grossa (RYA, Regra C, 1); II) Perdas, danos ou despesas incorridas em relação a dano ao meio ambiente ou em consequência de escapamento ou liberação de substâncias poluentes da propriedade envolvida na aventura marítima comum (RYA, Regra C, 2); III) Sobreestadia, perda de mercado e qualquer perda ou dano sofrido ou despesa incorrida em consequência de demora, quer em viagem ou subsequentemente, e perda indireta, qualquer que seja (RYA, Regra C, 3).

Destarte, importa dizer que, após 12 (doze) anos, em maio de 2016, durante o Congresso em Nova Iorque, foi aprovada a revisão das Regras de York e Antuérpia de 2016. A versão atual foi criada de modo a atender os interesses doa armadores em detrimento dos seguradores. As principais alterações foram:

1) Regra VI: houve a redistribuição dos valores a serem pagos a título de salvamento;

2) Regra XX: extinguiu-se a comissão de 2% dos desembolsos de avaria grossa, salários e manutenção de comandante, oficiais e tripulação bem como combustível e mantimentos;

3) Regra XXI: instituiu-se a previsão da taxa ICELIBOR no calculo de juros acumulados a cada 12 (doze) meses;

4) Regra XXII: instituiu a conta especial para depósito do montante coletado pelo regulador.

Por todo exposto, é indispensável que as partes envolvidas na expedição marítima conheçam a fundo as normas, as responsabilidades e pressupostos de enquadramento das avarias desde a fase negocial - indubitavelmente, no contexto de mundo globalizado e competitivo, que todas as partes envolvidas devem exercer o direito-prevenção além de primar pela continuidade das parcerias negociais. É vital que se faça uma analise conscientemente dos riscos e possibilidades da ocorrência de danos e despesas decorrentes da expedição marítima, essencialmente no que tange à possível contribuição obrigatória na hipótese de decretação de avarias grossas ou exclusão de responsabilidades nas avarias simples.

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Sobre os autores
Laís Mazioli Camporez

Aluna da Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Vitória.

Marcelo Fernando Q. Obregon

Doutor em Direito. Direitos e Garantias Fundamentais na Faculdade de Direito de Vitória - FDV, Mestre em Direito Internacional e Comunitário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Especialista em Política Internacional pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo, Coordenador Acadêmico do curso de especialização em Direito Marítimo e Portuário da Faculdade de Direito de Vitória - FDV -, Professor de Direito Internacional e Direito Marítimo e Portuário nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito de Vitória - FDV.

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