3. O CONTROLE JUDICIAL DO MOTIVO DO ATO ADMINISTRATIVO
O controle judicial do ato administrativo representa, ao lado do princípio da legalidade, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, pois, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006, p. 711), não haveria razão para obrigar a Administração Pública a atuar conforme a lei e o direito, se a sua atuação não pudesse ser objeto de controle por um órgão imparcial, competente para apreciar e invalidar os atos administrativos ilícitos.
O artigo 5º da Constituição da República estabelece em seu inciso XXXV que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Esse dispositivo constitucional é o fundamento do princípio da inafastabilidade da jurisdição e do sistema da jurisdição una, adotado pela República Federativa do Brasil.
Dizer que no Brasil vigora a jurisdição una é o mesmo que afirmar que Judiciário detém o monopólio da atividade jurisdicional, ou seja: “do poder de apreciar, com força de coisa julgada, a lesão ou ameaça de lesão a direitos individuais e coletivos” (DI PIETRO, 2006, p. 711).
Para Celso Antônio Bandeira de Mello (2004, p. 110), a garantia individual expressa por meio do inciso XXXV do artigo 5º da Constituição, além de fundamentar o sistema da jurisdição una, representa, implicitamente, a previsão constitucional do princípio do controle judicial dos atos administrativos. Segundo o eminente autor:
No Direito brasileiro, ao contrário do que ocorre com na maioria dos países europeus continentais, há unidade de jurisdição. Isto é, nenhuma contenda sobre direitos pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário, conforme o art. 5º, XXXV, da Constituição. Assim, não há órgãos jurisdicionais estranhos ao Poder Judiciário para decidir, com esta força específica, sobre as contendas entre Administração e administrados.
É ao Poder Judiciário, e só a ele que cabe resolver definitivamente sobre quaisquer litígios de direito. Detém, pois, a universalidade da jurisdição, quer no que respeita à legalidade ou à consonância das condutas públicas com atos normativos infralegais, quer no que atina à constitucionalidade delas. Neste mister, tanto anulará atos inválidos, como imporá à Administração os comportamentos a que esteja de direito obrigada, como proferirá e imporá condenações pecuniárias cabíveis.
Na lição de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2008, p. 661), o controle judicial, definido como “um meio de preservação de direitos individuais dos administrados”, é exercido sobre os atos administrativos praticados pelos três Poderes (Executivo, Legislativo, e Judiciário), busca verificar a legalidade dos atos e, em regra, acontece após a edição desses (a posteriori).
Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006, p. 771), ao discorrer sobre os limites (ou o alcance) do referido controle, nos lembra que, além de relacionar-se à legalidade do ato, o controle judicial deve averiguar a moralidade – princípio constitucional expresso que informa a atividade administrativa:
O Poder Judiciário pode examinar os atos da Administração Pública, de qualquer natureza, sejam gerais ou individuais, unilaterais ou bilaterais, vinculados ou discricionários, mas sempre sob o aspecto da legalidade e, agora, pela Constituição, também sob o aspecto da moralidade (arts. 5º, inciso LXXIII, e 37).
Em regra, o ato administrativo discricionário também é objeto de controle judicial. Contudo, o Poder Judiciário não poderá interferir em aspectos reservados à apreciação subjetiva da Administração Pública ligados ao mérito administrativo – compreendido como o campo de liberdade, delimitado em lei, que permite à Administração Pública, utilizando-se de critérios de conveniência, oportunidade, justiça e equidade, escolher, após valorações no seu âmbito interno, a melhor decisão a ser tomada em um caso concreto.
No entanto, ao apreciar o motivo do ato administrativo – pressuposto de fato que antecedeu a sua edição –, o Judiciário não invade o mérito, pois podem existir casos em que o Poder Público baseou a sua atuação em motivos falsos ou inexistentes, o que configura ilegalidade e deixa o ato passível de invalidação judicial (DI PIETRO, 2006, p. 711).
Hely Lopes Meirelles (2004, p. 201) também reconhece a possibilidade de exame, por parte do Judiciário, dos motivos que ensejaram a edição de determinado ato administrativo discricionário, sem que isso represente invasão do mérito administrativo. Este exame permite averiguar se a atuação administrativa se deu conforme o princípio da legalidade:
A ilegitimidade, como toda fraude à lei, vem quase sempre dissimulada sob as vestes da legalidade. Em tais casos, é preciso que a Administração ou o Judiciário desça ao exame dos motivos, disseque os fatos e vasculhe as provas que deram origem à prática do ato inquinado de nulidade. Não vai nessa atitude qualquer exame do mérito administrativo, porque não se aprecia a conveniência, a oportunidade ou a justiça do ato impugnado, mas unicamente sua conformação, formal e ideológica, com a lei em sentido amplo, isto é, com todos os preceitos normativos que condicionam a atividade pública.
Odete Medauar (2003, pp. 127-128), ao reconhecer a possibilidade da apreciação pelo Judiciário dos motivos que impulsionaram a Administração Pública a praticar determinado ato discricionário, salienta que:
A exigência de nexo entre o ato administrativo e seus antecedentes de fato, tornou o motivo um vínculo a mais no exercício do poder discricionário. Como decorrência, veio a possibilidade do controle jurisdicional dos antecedentes de fato e das justificativas jurídicas que levam à tomada da decisão em determinado sentido, ou seja, o controle do motivo. Um dos aspectos mais marcantes desse controle consiste na averiguação dos fatos; se num primeiro motivo não se admitia que o Judiciário pudesse apreciar fatos e provas relativos à atividade da Administração, firmou-se, depois, orientação no sentido da plena possibilidade de exame de fatos e provas.
No que se refere aos atos políticos ou de governo (como o indulto, a sanção, o veto e a iniciativa de leis delegadas), editados em obediência direta à Constituição pelo Poder Executivo, também podem ser submetidos ao controle judicial. A nossa atual Constituição proíbe que qualquer lesão ou ameaça a direito seja excluída da apreciação judicial. Dessa forma, se um ato político causar lesão, ou ameaçar direitos individuais ou coletivos poderá ser invalidado pelo Judiciário (DI PIETRO, 2006, p. 712).
Deve ser mencionado, todavia, que os atos normativos editados pelo Executivo (decretos regulamentares, regimentos, resoluções) só poderão ser invalidados pelo Judiciário através de ação direta de inconstitucionalidade. Em se tratando de ato normativo federal ou estadual, a competência julgadora será do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, a); no caso de ato normativo estadual ou municipal que viole a Constituição Estadual, caberá ao respectivo Tribunal de Justiça julgar (Constituição do Estado da Bahia, art. 123, I, d).
Fora a ação direta de inconstitucionalidade, existem outros mecanismos que permitem ao Judiciário examinar, nos casos concretos, a legalidade ou a constitucionalidade de lei ou ato administrativo normativo praticado pelo Executivo. Porém, o julgamento, em regra, somente produzirá efeitos entre as partes. Ademais, um ato normativo do Poder Público só poderá ser declarado inconstitucional pelo voto da maioria absoluta dos membros do tribunal ou dos membros do respectivo órgão especial (CF, art. 97).
Conforme o meio utilizado e o tipo de pedido, as consequências do controle judicial poderão variar. Dentre as consequências mais comuns, podem ser citadas: a) suspensão de atos ou atividades – quando a decisão do Judiciário impede a produção dos efeitos de algum ato administrativo, ou ordena a paralisação de alguma atividade da Administração Pública, até a decisão final da causa ou por tempo indeterminado (é o caso das liminares); b) anulação do ato administrativo – que produzirá efeitos retroativos à data da sua edição (ex tunc); c) imposição de fazer – quando a decisão definitiva contém uma ordem para a realização de algo (praticar determinada atividade material ou editar um ato administrativo); d) imposição de se abster de algo – quando a Administração Pública é condenada a não fazer determinada atividade; e) imposição de pagar – nos casos em que o Poder Público é obrigado a pagar, por exemplo, vencimentos e benefícios a servidores, ou devolver indébitos aos administrados; f) imposição de indenizar ou ressarcir – surge em decorrência de decisões judiciais que obrigam a Administração Pública a realizar a reparação de danos ou a indenização (MEDAUAR, 2003, pp. 428-429).
4. ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL
O Poder Judiciário brasileiro manteve, durante muito tempo, um posicionamento que se filiava à ideia de inadmissibilidade do controle dos atos discricionários, pois considerava impenetrável a discricionariedade do ato administrativo e, por isso, impraticável o controle.
Aos poucos, a jurisprudência nacional começou a mudar o seu posicionamento, passando a vislumbrar a possibilidade de se exercer o controle judicial nos elementos intrínsecos aos atos administrativos.
Nesse contexto, faz-se oportuno citar, inicialmente, o julgamento do Recurso Extraordinário nº 125556/PR[3], através do qual o Supremo Tribunal Federal, na década de 1990, decidiu pela ilegitimidade da verificação secreta da conduta pública e privada de um candidato, realizada em razão de um concurso público para provimento do cargo de delegado de polícia.
No ano de 1992, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 21923/MG[4], manifestou-se no sentido de que é licito ao Poder Judiciário examinar o ato administrativo sob o aspecto da moralidade e do desvio de poder, concluindo que a Constituição exige da Administração, “além de uma conduta legal, um comportamento ético”.
Em 1994, através do julgamento do Mandado de Segurança nº 3500/DF[5], o Superior Tribunal de Justiça, ao tratar da necessidade de motivação do ato administrativo, estabeleceu que, até mesmo os atos cujos motivos não foram explicitados podem ser objeto de controle judicial.
No julgamento do Recurso Extraordinário nº 192568/PI[6], o Supremo Tribunal Federal, no ano de 1996, manifestou-se pela necessidade de um motivo “socialmente aceitável” para justificar a prorrogação do prazo de validade de um concurso público para provimento do cargo de magistrado.
Em 1998, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Ordinário no Mandado de Segurança nº 9594/RS[7], posicionou-se no sentido de reconhecer que o mérito do ato administrativo é próprio do administrador e não deve ser substituído pelo Poder Judiciário, que poderá, contudo, analisar os fundamentos utilizados pela decisão administrativa para concluir se a opção do administrador possui respaldo jurídico.
No ano de 2002, o Supremo Tribunal Federal decidiu, através do julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2213/DF[8], sobre a possibilidade de as medidas provisórias, no que se refere aos pressupostos constitucionais de relevância e urgência, serem objeto de controle judicial, a fim de se evitar distorções no modelo político e manter a integridade do princípio constitucional da separação de poderes.
Em 2003, no julgamento do Recurso Especial nº 443310/RS[9], o Superior Tribunal de Justiça manifestou-se no sentido de que a Administração Pública deve sempre pautar as suas atividades nos parâmetros da razoabilidade e da proporcionalidade.
Já no ano de 2004, ao julgar o Recurso Ordinário no Mandado de Segurança nº 24699/DF[10], o Supremo Tribunal Federal admitiu a possibilidade de controle judicial sobre atos administrativos que envolvam a aplicação de “conceitos jurídicos indeterminados”, em razão dos princípios que regem a Administração Pública.
Em 2013, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 628159/MA[11], entendeu que não viola o princípio da separação dos poderes a determinação, pelo Judiciário, para que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos reconhecidos pela Constituição como essenciais.