CONCLUSÃO
“Pena justa, devo dizer, na perspectiva de que, não deixando de retribuir o mal causado, não torne, de outro lado, o condenado instrumento de satisfação de anseios punitivos, como que se em sua pessoa houvessem de ser expiados os males do mundo”[37].
Mais que a incolumidade física e moral, os cárceres corrompem e aniquilam qualquer perspectiva de transformação, a despeito do que obrigam uma transformação para que o ex-preso não se sujeite novamente ao “inferno terrestre”[38] chamado Sistema Prisional.
A superlotação, somada à má qualidade estrutural dos presídios, ratifica a afirmativa supra, ao passo que, além de os presos viverem uns sobre os outros, convivem com a escuridão, em condições totalmente insalubres, dividindo espaço com ratos, baratas, dormindo próximos do ralo do banheiro (se este existir), em celas fétidas e tomadas por doenças.
Tal cenário, que remete à tortura, ao desumano, irá despertar a reserva selvagem daqueles seres para que possam sobreviver enquanto permanecerem naquele local. Incutir-se-á, portanto, maiores pulsões destrutivas e de ódio contra a sociedade, corrompendo-se, definitivamente, aquele ser que, quando posto em liberdade, levará consigo os sentimentos destrutivos que compõe a personalidade construída no cotidiano carcerário, tornando-o mais perigoso, e, portanto, aumentando o problema da criminalidade.
Tratá-los como feras os tornará ainda mais perigosos à coletividade, incutindo o sentimento de repulsa por aqueles que os trataram como parias, humilhando-os e os considerando como um mal à sociedade, dignos de serem expungidos de uma vez por todas do convívio social. E nisto me reporto ao forte relato de Marilene Felinto:
"a sociedade é tão cruel quanto o bandido - apenas se esquece disso -, faz de conta que o preso e seus parentes estão fora da ‘sociedade’. A sociedade deseja a destruição, a extinção do bandido e de seus parentes. Resta saber quanto por cento da população alimenta esse desejo de que a cavalaria esmague a rebelião como um elefante pisa sobre um inseto, de que o choque atire uma bomba e acabe com aquele amontoado de assassinos pobres, pretos e pardos (...) Resta saber quanto por cento da população quer que o crime se perpetue: o crime de manter sob condições desumanas milhares de criminosos que vão ficando cada dia mais perigosos e animalescos - canibais que decapitam companheiros. Resta saber quanto por cento quer direitos humanos para todos, sem exceção (...) É preciso esfregar na cara do cidadão comum as condições a que são relegados os párias sociais, os excluídos de tudo, os presos pobres: é preciso formar filas nos presídios, obrigar cidadãos de classe média e alta a visitar as cadeias fétidas, superlotadas de homens ociosos, os futuros - e impiedosos, e cruéis - assassinos de seus filhos, de seus netos. É preciso que as classes média e alta vejam de perto que tipo de cobras estão criando - que vejam e vomitem até mudar de atitude (...)”e conclui: “Eles vão nos matar, porque nós os matamos todos os dias"{C}[39]
E o que é pior, as falhas do sistema carcerário estendem ao interior das celas as exclusões, pois aqueles que possuem maior “poder” tratam de estabelecer as regras no cárcere. Assim, v.g., em algumas instalações, em geral as mais superlotadas, se tem que pagar “aluguéis” para se utilizar uma cela. Segundo José Carlos Félix da Silva, ex-promotor da Vara de Execuções Criminais de Juazeiro do Norte "(...) na Casa de Detenção de São Paulo, os presos pagam entre R$ 180 e R$ 800 reais para dividir uma cela, dependendo de sua qualidade e localização. Neste local, prisioneiros poderosos possuem ou controlam dez ou mais celas"{C}[40].
Entretanto, o caminho para que os cárceres consigam dar o mínimo de condições existenciais aos presos, dando fim ao problema da superlotação, não está na construção de novos presídios. Neste pé, cabe o exemplo do estado da Califórnia, EUA, que conduziu “o programa mais vasto e mais ousado”[41] na construção de centros prisionais. Mesmo que a população estudantil tenha crescido mais do que a carcerária, o estado da Califórnia permaneceu investindo e construindo novos centros, diminuindo, em conseqüência, os investimentos na seara educacional. Ocorre que, em 1994 a população carcerária, naquele estado, superou o número de estudantes universitários[42].
A construção desenfreada de presídios implica na construção social de novos presos, ao passo que o direcionamento de investimentos para conter a criminalidade restará em um corte dos investimentos das políticas sociais, que tem por fito dar perspectivas aqueles que não a possuem, v.g., pela educação, evitando que, pela ausência de perspectiva, busquem conquistar aquilo que lhes fora negado, pelas vias da criminalidade.
Não há que se negar: nem todo preso surge da não-oportunidade negligenciada pelo Estado. E neste sentido, “ninguém contesta que o Estado deve intervir, com firmeza, para evitar danos para o patrimônio e vidas das pessoas. Mas dentro do Estado de Direito, até mesmo o Direito tem limites”[43], e, para àqueles que realmente são perigosos ao convívio social utiliza-se o presídio, no seu sentido originário, como analisamos. Desse modo, “reservaríamos a prisão à última instância de controle social”[44], pois a mesma é “um mal necessário, mas deve-se resguardá-la para o criminoso que realmente é pernicioso à sociedade. Para aquele que, em liberdade, não sabe dela usufruir sem ocasionar danos a terceiros, sem provocar o temor por suas ações inescrupulosas. Em suma, para aquele que, livre, somente encontra estímulos para infringir as normas penais, atentando contra a ordem pública, sem dar atenção às conseqüências que poderão atingi-lo, como à própria sociedade”[45].
Ainda, àqueles cuja periculosidade não denote a necessidade de seu afastamento, levando-o ao cárcere, necessário se faz utilizar de meios punitivos que realmente tenham uma função de (re)inserção e (re)socialização.
Para tanto, cumpre evocar a Teoria Funcionalista desenvolvida por Émile Durkeim[46], onde a união, i.e., o nexo do indivíduo com a comunidade, dá-se pela solidariedade orgânica, ou seja, uma sociedade cuja coesão funda-se em que cada um possui tarefas e responsabilidades diferentes, tornando-se essencial ao corpo social. A interação do indivíduo com a comunidade se dá pela profissão[47], onde o trabalho desenvolvido confere um papel social, despertando o senso de cooperação, e, conseqüentemente, de solidariedade entre os cidadãos.
Todavia, aquele que está no presídio perde seus vínculos sociais. Quando livre, não se sente como parte da sociedade, e, além de tudo, enfrenta toda uma coletividade que o teme e que irá consumar a exclusão e o desrespeito à sua dignidade já esfacelada pelo cotidiano carcerário.
“Dessa forma, o egresso sofre dificuldades em desempenhar papéis sociais. Muitas vezes, há o afastamento dos amigos, dos familiares e da vida laboral, pois poucas são as pessoas que confiam nos indivíduos que se submeteram às experiências carcerárias (Bitencourt, 1993). Sentimentos como os de insegurança e submissão são revivenciados; a sociedade torna a excluir aquele que já fora excluído, o que aumenta a probabilidade da reincidência do crime, já que o indivíduo não se percebe como parte de um grupo social”[48].
Não há como se sustentar, portanto, que o presídio seja capaz de desenvolver um papel social ao preso isolando-o em um sistema cujas regras discrepam do tempo e da realidade social. E, nesse sentido, as prisões tornam os criminosos mais violentos e menos adaptáveis ao convívio social:
“Se, no estabelecimento prisional, as pessoas devem ser passivas e submissas às regras institucionais, no mundo liberto, é importante que haja autonomia. Se, nas penitenciárias, os reclusos resolvem uma situação conflituosa por meio da força e da dominação, nas relações interpessoais do mundo externo, é preciso diplomacia. Se, nas celas, a desconfiança é um sentimento sempre presente, na vida familiar, é indispensável a confiança e o auxílio mútuo. Inúmeros são os aspectos que divergem entre uma cultura e a outra, o que torna o indivíduo estranho ao seu próprio local de origem, como pássaro que, após ser retirado e aprisionado em uma gaiola, não mais consegue retornar ao seu ambiente natural”[49].
Nesse caminho, é preciso buscar outras respostas punitivas, diferentes da segregação, àqueles que não precisam ser afastados do corpo social. O não rompimento dos laços sociais, dos vínculos familiares e laborais, contribuem para que penas não afastem o preso do elementar à construção de uma cidadania, de uma solidariedade.
A pena não deve ter a função de expiação, remetendo à vetusta idéia de dor. Deve, antes, visar à reconstrução da pessoa do preso. E, nesse sentido, assim como afirma François Ost[50], precisamos vencer a lógica da vingança e canalizar sua emoção para a exigência de uma justiça renovada, em que o preso não seja considerado mera res, e nesse sentido, a aplicação da pena deve encontrar a resposta nas palavras de Beccaria: “Consultemos, pois, o coração humano; acharemos nele os princípios fundamentais do direito de punir”.
Há um grande caminho entre o Sistema Prisional e a redução da criminalidade. É assaz evidente o efeito contraproducente das penas, e, portanto, há um árduo trabalho a ser desenvolvido para que a criminalidade tenha seus lindes postos e as penas atendam às suas funções essenciais.
Assim, respostas punitivas que respeitem o humano imanente ao preso, mais que apostar em um novo caminho, é efetivar um princípio constitucional, impedindo que a dignidade não os seja arrancada, mas seja o alicerce de uma transformação. É certo que o caminho é árduo, mas o hoje exige que se insira no cotidiano carcerário o princípio da dignidade da pessoa humana, pois esse é o fundamento de um amanhã, onde o Sistema Prisional não seja lembrado por desumanizar ou por agravar a criminalidade, mas que reconheça que o preso também é humano e que tratá-lo como tal é a base da mais sábia e efetiva resposta punitiva.