Os sofismas que dão movimento aos atuais discursos do Sistema Penal, notadamente do seu sistema prisional, têm suas fronteiras postas pelo próprio diagnóstico apresentado à sociedade, notadamente na conclusão de que o sistema prisional não é capaz de promover a segurança, com a almejada redução da criminalidade.
Outrossim, como entende Auri Lopes Junior[1], os discursos que apresentam como meta a (re)inserção, a (re)integração, a (re)socialização, i.e., o discurso “re”, somente conseguem, por meio do atual sistema, efetivar a reincidência e a rejeição social. Nesse sentido, os próprios dados oficiais do DEPEN indicam uma não reabilitação do presidiário, onde se verifica um índice de reincidência de mais de 70%[2]. E a sociedade trata de expungir do seu meio aqueles “etiquetados” pelo sistema em face de algum dia terem estado em um estabelecimento prisional, pouco importando o porquê estiveram lá.
Nesse pé, indubitável é a constatação de que o Sistema Penal, alicerçado e arraigado em um modelo estático, está em crise. Primeiro por não cumprir qualquer função social de prevenir e reprimir o crime. Por segundo, por não cumprir sua finalidade individual na busca da (re)construção da cidadania daquele preso, oportunizando-o um futuro distante da criminalidade, mas sim, ao contrário, servindo como potencializador da capacidade criminosa do indivíduo[3].
A CRISE NA PENA DE PRISÃO
“Nós temos depósitos humanos, escolas de crime, fábrica de rebeliões”.(Capez)[4]
A base punitiva do Estado, em sua forma mais repressiva e aparentemente eficaz, é a pena de prisão. O Sistema, mesmo reduzindo os cárceres a depósitos de pessoas, servindo apenas como meio de afastá-las da sociedade, i.e., tirar de circulação aqueles cuja periculosidade resta evidenciada ao convívio social, tornou-se uma panaceia, sendo considerado o único meio de conter a criminalidade.
Assim, o Estado, na ânsia de punir, transformou o Sistema em uma fábrica de prender, não tendo, contudo, mecanismos suficientes para aplicar corretamente a justa pena para cada criminoso. Desse modo, o que se tem visto é um simulacro de execução das penas, onde o Estado não tem cumprido a sua parte sequer no que diz respeito à segregação do preso, quanto mais em manter e restituir sua dignidade humana[5].
Ao mesmo passo, a sociedade viu aumentar a população carcerária, rebeliões, pessoas morrendo, contraindo doenças, lágrimas de familiares, e aqueles seres, revestidos por aquilo que a psicologia chama de máscaras prisionais[6], demonstram o ápice de um Sistema que ao invés de reconstruir a cidadania perdida, somente conseguiu despertar maior ódio do preso pela sociedade[7].
Nesse passo, cumpre evocar as palavras do conspícuo mestre Luigi Ferrajoli[8]:
“A história das penas é, sem dúvida, mais horrenda e infamante para a humanidade que a própria história dos delitos: porque mais cruéis e talvez mais numerosas do que as violências produzidas pelos delitos têm sido as produzidas pelas penas e porque, enquanto o delito costuma ser uma violência ocasional e às vezes impulsiva e necessária, a violência imposta por meio da pena é sempre programada, consciente, organizada por muitos contra um.”
A pena de prisão, ao desprezar o ser humano que a recebe, restringindo-se a mera retribuição ao mal causado, não prepara o preso para que, ao voltar à sociedade, esteja em harmonia com o corpo social, ou seja, funcionalizado, mas sim, distintamente, desperta o sentimento, também, de retribuição por parte do preso que, ao ver roubada sua dignidade física e moral, não hesitará em “dar o troco”.
Ocorre que o Estado, ao punir, utiliza-se da violência institucionalizada, ou seja, multiplicando aquilo que deveria diminuir. Desse modo, resta evidenciado que a reação mais violenta do Estado implica diretamente em uma resposta quantitativa da criminalidade[9].
Nesse ínterim, a crise da pena de prisão significou, em conseqüência, uma crise dos fins do Direito Penal, tradicionalmente vinculados à instituição penitenciária como forma nuclear da resposta punitiva (Carlos G. Zorrilla)[10].
Todavia, calha à fiveleta evocar o significado da palavra “crise” no idioma chinês, “wei-ji”, que soma dois termos: o primeiro significando “perigo”, e o segundo, “oportunidade”, e, portanto, se a realidade denota-nos uma situação aporética, corolário a ela, existe uma oportunidade de mudança, que indiscutivelmente será norteada pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
DA SITUAÇÃO APORÉTICA DO SISTEMA PRISIONAL
DAS RAÍZES FUNDANTES DO PROBLEMA
Aprioristicamente cumpre evocar fato relevante no Brasil e em alguns outros países como os Estados Unidos da América. Neste, houve um aumento gigantesco da população carcerária[11], porém, a maioria dos presos cumpre penas por crimes não violentos[12]. No mesmo caminho, o Brasil, notadamente o estado de São Paulo, onde se concentra a maior população prisional do país, revela fato parecido, que se segue há anos:
“Os números da criminalidade no segundo trimestre deste ano – divulgada hoje pela Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo –, mostra queda no índice de crimes considerados violentos: homicídios dolosos, latrocínios, roubos, estupros e extorsão mediante seqüestro. Na média, em todo o Estado, a queda foi de 4% para os crimes violentos, em comparação ao mesmo período do ano passado. O homicídio doloso foi o crime que registrou maior queda: 23%. Os seqüestros também registraram queda de 15% em relação ao segundo trimestre do ano passado. Os roubos diminuíram 5% em relação ao mesmo período(...)”[13].
A secretaria do Estado de São Paulo apresenta outra estatística interessante: isso ainda em 2007, que aponta para a ocorrência de 38.073 de crimes violentos, dentre eles, homicídio doloso, roubo, latrocínio, et alii, de um número total Estupro e EMS)de delitos 147.488, no mesmo lapso.
O não aumento dessa criminalidade violenta, conjugada com o aumento de presos, decorre do alargamento da aplicação da pena de prisão aos crimes cometidos por pequenos delinqüentes (ou pequenos crimes), não violentos. Estes criminosos, pouco, ou, senão, nada violentos, estão distantes do perfil do predador sanguinário, perigoso ao convívio social.
Veja-se que o efeito nocivo do que se expõe no presente trabalho resta comprovado pelos seus efeitos: hoje, no Brasil, segundo o Atlas da Violência (IPEA) de 2016 10% dos homicídios ocorrem no solo pátrio[14]. A metodologia do enfretamento da criminalidade, no Brasil, portanto, comprovadamente está equivocada. E, no que toca ao sistema prisional, o equívoco alastra aquilo que pretende conter.
Além da desnecessidade (desproporcionalidade) na aplicação de penas privativas em casos de extrema pequenez, a aplicação em estrito cumprimento à lei, nestes casos, denota um duplo prejuízo: o alto custo de manutenção diária deste criminoso supera, em muito, o prejuízo real cometido pelo delinqüente, quando, v.g., se furta uma lata de extrato de tomate, ou de manteiga[15]; em segundo, o tempo que ficará confinado, em pouco ou em nada contribuirá à construção de uma conduta ilibada ditada pelos valores de uma cidadania solidária. A lógica do Sistema Prisional apresentará outros rumos à conduta do apenado, e este, sairá, como se sabe, assaz violento, com animus de vingança em face da violência lhe imposta, em última análise, pela sociedade.
Nesse sentido, em face do crescimento geométrico da população carcerária que resta evidenciado, e da não reabilitação do preso pelo Sistema Prisional que ao contrário contribui em grande parcela para tal crescimento, há que se concordar com Foucault[16] ao afirmar que o “delinqüente é produto da instituição”, autor este que, com a mesma agudez, perquire: “mas por que e como teria sido a prisão chamada a funcionar na fabricação de uma delinqüência que seria de seu dever combater?”.
Ocorre que o fenômeno prisão não deve ser compreendido separadamente, mas como elemento do sistema social[17], e, portanto, recebedor e gerador de influências dentro da sociedade. Nesse pé, o contexto direciona a necessidade maior ou menor da utilização da pena de prisão, sendo que, atualmente, criou-se o necessário clima para que esse tipo de pena fosse visto como sendo o único capaz de assegurar e defender os bens jurídicos da sociedade, apresentando-se como um remédio mágico para todos os crimes oriundos do convício social.
Portanto, o clima de insegurança fora oportunizado para que se explorasse o medo do crime violento, por conseguinte, do preso, e desse modo, alargar o “mercado”, trazendo todos os presos, como sendo, no mínimo, potencialmente perigosos ao convício social. Assim, as forças sociais, como, v.g., a mídia, combinaram o clima, ou melhor, as marés desse mar turbulento, para direcionar a massa social à repulsa de todos aqueles que cometeram um crime, exigindo do Estado que os afastem do convívio social, o que explica as pulsões sociais na busca por penas mais duradouras, i.e., que mantenham distantes, pelo maior tempo possível, os criminosos que abalam o quadro social vigente.
Assim o Direito Penal deixou de ser a última instância de controle social para se tornar um instrumentalizador na defesa de grande parte dos bens jurídicos da sociedade. Precisamos perceber que nossa realidade apresenta uma gama incontável de classes e grupos organizados, e cada um destes, com os bens vulneráveis que necessitam da proteção do Estado. O desrespeito para com tais bens juridicamente tutelados, fez com que a sociedade buscasse um espeque protetivo no Direito Penal, como se este, com a pena de prisão, fosse o único meio de se respeitar aqueles bens, quando o problema seria fundamentalmente social, e que com outros meios poder-se-ia obter resultados mais eficazes e menos desumanos do que com a pena de reclusão.
O Sistema Penal, portanto, serve para defender um quadro social[18] de imposição de padrões econômicos, morais e políticos, reprimindo todo aquele que tente abalar seus alicerces.
Nesse ínterim, constata-se que, em regra, o sistema prisional não é voltado a todos de uma forma igual, mas àqueles que estão fora dos padrões impostos pela nossa atual sociedade que, de forma (i)mediata, segue as leis do mercado. É bom se destacar que nas recentes ações envolvendo a operação lava jato podemos ver um fenômeno interessante: se incluiu no espectro da visibilidade nacional, e no conceito de criminalidade, isso no âmbito da execução das penas, aqueles que estavam antes imantados pela impunidade, acerca de condutas que, outrora, jamais pensaríamos receber tamanha represália do sistema criminal.
De um modo geral, entretanto, a regra é o cárcere alcançar uma fatia da sociedade. O caráter improdutivo e, portanto, a inaptidão de determinadas pessoas ao mercado, as conduz aos cárceres, onde são armazenados os refugos do mercado, ou aqueles que nunca conseguiram chegar até ele[19]. Os desnecessários ao mercado formal são levados ao presídio, para que haja um controle do tempo destes excluídos[20]. Deste modo, a gestão penal substitui a gestão social no controle da improdutividade daqueles que estão à margem da sociedade, ameaçando o quadro social vigente.
Frise-se que nem todos os excluídos serão levados aos cárceres, mas que o alargamento das condutas que recebem como resposta punitiva do Estado a pena da prisão, os transformou em potenciais criminosos, e, portanto, merecedores da vigilância constante do Estado. Assim, sobre esta “população que pratica uma ilegalidade de ocasião que é sempre susceptível de se propagar, ou ainda aqueles bandos incertos de vagabundos que recrutam segundo o itinerário ou as circunstâncias, desempregados, mendigos, refratários e que crescem às vezes”, é potencialmente perigosa, e sobre a qual “se pode efetuar uma vigilância constante”[21], i.e., um controle social.[22]
Por fim, sinala-se que a população carcerária nacional possui um retrato comum de homens, jovens, com baixa escolaridade, negros ou mulatos (na proporção de suas populações livres), e com baixo poder econômico[23]. Desse modo, as estatísticas reafirmam que o Sistema Penal é seletivo e estigmatizante, reproduzindo e aprofundando as desigualdades sociais[24].
UMA REALIDADE A SER MUDADA
A palavra presídio origina-se do latim praesidium, que significa proteção, cuidado. Nesse caminho, os cárceres não deviam ser locais de maior violência e opressão, tornando mais severa a exclusão e as conseqüências desta no mundo livre. Assim, existe ontologicamente uma dupla função protetiva dos presídios: proteger a sociedade daqueles que ameaçam o convívio social, que demonstram total separação e desrespeito aos valores e sentimentos sociais; e, proteger o preso, ao passo que ele, demonstrando uma desvinculação à sociedade, aos ditames da solidariedade social, deve não receber maior pressão, pela violência contida nas penas para que assim modifique sua conduta. Ao contrário, a dignidade que lhe resta não deve ser anulada, mas utilizada como chão para a construção de uma cidadania.
Todavia, o preso tornou-se um ser indesejável na comunidade, posto ter violado o contrato social, e, portanto, não sendo merecedor de nenhum amparo como cidadão. Inobstante as normas e direitos proclamados que asseguram o total respeito a sua dignidade, em consideração ao seu caráter de humano, a realidade discrepa apontando um horizonte e uma prática de total desapreço ao humano.
Ocorre que a sociedade não aceita que um preso tenha o mesmo tratamento digno dos cidadãos comuns, e, nesse passo, que o preso participe da comunidade como cidadão de bem. A violação do contrato social bitolou o criminoso como um vilão, um bárbaro em meio à civilização, e portanto:
“(a) o inimigo, ao infringir o contrato social, deixa de ser membro do Estado, está em guerra contra ele; logo, deve morrer como tal (Rousseau); (b) quem abandona o contrato do cidadão perde todos os seus direitos (Fichte); (c) em casos de alta traição contra o Estado, o criminoso não deve ser castigado como súdito, senão como inimigo (Hobbes); (d) quem ameaça constantemente a sociedade e o Estado, quem não aceita o ‘estado comunitário-legal’, deve ser tratado como inimigo (Kant)”.[25]
Assim, o cotidiano do preso no cárcere, ao invés de quitar o passado e oportunizar um futuro distante da criminalidade, visando ressocializar e trazê-lo, a novo, à sociedade, mais o afasta, nesse processo gradual de mortificação do ser, e dos valores e sentimentos que o revestem de humano.
Desse sistema, portanto, resultam as maiores injustiças e quebras de direitos fundamentais[26]. Todavia, o núcleo pétreo constitucional da dignidade da pessoa humana, notadamente os seus desdobramentos na seara penal, como, v.g., em sendo vedada as penas de tortura ou de morte, dentre outras, parecem não ter força vinculativa.
Resta evidenciado que as penitenciárias são instituições fechadas, i.e., concebendo regras e valores, totalmente discrepantes da sociedade livre. Cabe questionar: como um Sistema que afirma buscar a (re)socialização e a (re)inserção social, isola o preso em um mundo totalmente distinto, com regras e valores que margeiam o respeito à dignidade?
Assim, as penas que deveriam preencher o “eu” com um sentimento renovado e de solidariedade social, tratam de incutir sentimentos destrutivos e anti-sociais.
Como sobredito, a dignidade é totalmente desprezada, não há um respeito sequer pela identidade do preso, que sofre uma padronização em suas condutas e na aplicação da pena, inobstante terem, cada preso, cometido um crime diferente. Nesse pé, Mariana Leonesy, no artigo Depois das Grades: um Reflexo da Cultura Prisional em Indivíduos Libertos, torna assaz solar o processo de coisificação do homem, pela perda de sua identidade e personalidade:
“As roupas uniformizadas, assim como os cortes de cabelo e as medidas de tratamento padronizadas para diferentes tipos de sujeito, são reflexos da perda da individualidade. Os indivíduos, sempre possuidores de personalidade e comportamento próprios, são igualados somente por terem cometido algum tipo de crime. Entretanto, o que se encontra nos presídios é uma completa ausência de diferenciação no que diz respeito ao cumprimento da pena, o que contribui de forma absoluta para a massificação dos indivíduos encarcerados. Esse tipo de tratamento contraria a Lei de Execução Penal, que estabelece, em seu art. 5º, a individualização da pena”.
Compreendendo que o tempo constitui elemento basilar na construção do homem, da-sein[27], e que o presídio é um mundo separado e distinto daquele fora dos seus portões, há que concluir que ele possui além de regras, valores, linguagem, et alii, um tempo próprio, sendo que o tempo social e o tempo no cárcere[28] discrepam em muito.
Assim, a prisão não se limita a tolher o direito de locomoção, mas afeta e arranca o preso do mundo e do tempo social. Não se trata, portanto, de uma mera imobilização, mas de uma verdadeira exclusão[29], onde o sistema, ao contrário de servir de trampolim para a sociedade, possui uma lógica retropropulsora, i.e., ao invés de pensar na progressividade do preso com um olhar para o devir, os prendem, ainda mais, ao passado, como forma de expiarem seus crimes, saldando sua dívida com a sociedade.
DA DIGNIDADE HUMANA DO PRESO
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, insculpido no art. 1º, inciso III, da Lex Mater, é o núcleo pétreo e fundante do Estado Democrático de Direito, inaugurado pela nossa Constituição Cidadã.
Nesse sentido, a palavra princípio, originada do latim principium, refere-se a início, ao alicerce, à base, ou, n’outro falar, ao ponto de partida para todo e qualquer agir jurídico ou social. Portanto, o direito deve ser compreendido e interpretado pela ótica do princípio da dignidade da pessoa humana, atuando este como uma bússola interpretativa[30], e nenhuma legitimidade possui qualquer ato que seja, mesmo que encontrando arrimo em normas, se ferir ou ir de encontro à dignidade da pessoa humana, pois carecerá de conteúdo e de eficácia, por ofender o alicerce pétreo do Estado Brasileiro.
Para Edilson Pereira Nobre Júnior, o referido princípio se desdobra em três pontos básicos: “igualdade entre os homens; impedimento à consideração do ser humano como objeto; e garantia de um patamar existencial mínimo”.[31]
Afora os demais valores e princípios constitucionais, a ultima ratio de cada um deles encontra respaldo no princípio da dignidade da Pessoa Humana, isso porque o homem não está na periferia do Direito, não sendo um meio para se conseguir algum fim, mas sendo o centro, i.e., o destinatário de todas as coisas, ou, no falar de Daniel Sarmento, o ser humano “precede o Direito e o Estado, que apenas se justificam em razão dele”[32]. Portanto, toda pessoa tem tutelada constitucionalmente sua dignidade, que é condição própria do homem, é aquilo que preenche o seu ethos e move o seu corpo.
Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana é voltado a todos, indistintamente, posto ser a dignidade um atributo de toda e qualquer pessoa, uma “prerrogativa de todo ser humano em ser respeitado como pessoa, de não ser prejudicado em sua existência (a vida, o corpo e a saúde) e de fruir de um âmbito existencial próprio”[33]. Sendo uma prerrogativa de toda pessoa, não existe uma classe de indivíduos que não possa ser sua destinatária. Até o “indigno” deve ter respeitada a sua dignidade. A Constituição da República Italiana, de 27 de dezembro de 1947, nesse sentido, em seu art. 3º, demonstrou que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.
Todavia, como suso referido, as pulsões sociais demonstram total aversão ao criminoso, sofrendo ele uma capitis deminutio, tendo perdido o status de cidadão, e, portanto, os direitos a ele inerentes. Todavia, a dignidade da pessoa está no humano que se reveste de tal dignidade como pressuposto existencial.
A NÃO VINCULAÇÃO E A AUSÊNCIA DE EFICÁCIA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO COTIDIANO CARCERÁRIO
O princípio supralegal da Dignidade da Pessoa, norteador de todo o Sistema Jurídico irradia sua força em todas as searas do Direito, vinculando qualquer interpretação ao respeito à dignidade humana. Nesse sentido, o Princípio na esfera penal se desdobra em outros para que tenha facilitada a sua aplicação concreta.
Entretanto, o desrespeito contínuo ao humano no Sistema Prisional nos denota uma plena carência de eficácia do princípio-mor de nosso ordenamento.
O professor Calmon de Passos enfatiza que o uso contínuo e maçante de certos termos, como o princípio da dignidade da pessoa humana, retira paulatinamente sua força, diminuindo o potencial de seu efetivo conteúdo.[34] Ou, como afirma o brocardo latino, colorem habent, substantiam vero nullam, a dignidade do preso, enunciada em nosso ordenamento, como, v.g., na Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84) em vários preceitos, tem aparência, mas não possui substância.
Ocorre que, a ineficácia transformou o princípio em letra morta, e a Lex Mater, que nele tem seu maior espeque, em uma simples folha de papel[35]. Ainda, evocando Lassale, a Constituição é formada pelos fatores reais de poder, ou seja, em Sistema Jurídico Alopoiético (comum aos países periféricos) onde existem códigos paralelos, como os do poder e da economia, que interferem na concretização imediata do Direito, e, in casu, do princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Nesse Caminho, é importante ressaltar que o referido princípio não é um conceito jurídico indeterminado, onde o seu conteúdo está velado, na penumbra, necessitando ser preenchido no caso concreto. Não há como conceber que o princípio da Dignidade da Pessoa Humana necessite de um preenchimento por carecer de determinação, necessitando que o Judiciário dê vida a ele. Isso porque, em primeiro, ele está voltado a todos, indistintamente, não necessitando de um caso concreto que adentre, necessariamente, às portas do judiciário, e tenha sido resumido em autos, para que ele se efetive, posto que sua concretização, a priori, deve se dar no cotidiano, in casu, o carcerário. Em segundo, porque o princípio, distintamente daqueles intrínsecos ao Direito, tem um cunho totalmente social, e é preenchido por toda e qualquer pessoa, sua determinação não precisa de longos tratados jurídicos, por que ele, de per si, demonstra seu conteúdo. Tampouco o princípio abre à discricionariedade do Poder Público para que o mesmo escolha se aplica o princípio ou não, e nesse sentido a Lei Fundamental de Bonn, de 23 de maio de 1949, no seu art. 1.1., torna assaz solar que: “A dignidade do homem é intangível. Os poderes públicos estão obrigados a respeitá-la e protegê-la”. Todavia, o Estado parece não se sentir vinculado ao princípio-mor de nosso ordenamento, quando se trata do Sistema Prisional. E, aquele que deveria preencher, dar conteúdo e vida ao pétreo princípio, é aquele que o despreza no cotidiano carcerário.
Por fim, cumpre salientar que é necessário consertar o caminho do princípio, fazendo que ele saia do horizonte dos discursos e das normas e se volte à realidade que, com urgência, necessita da interferência imediata do princípio na aplicação das penas criminais, antes que o atual colapso torne mais que difícil, impossível um convívio social.
A Lei de Execuções Penais, que entrou em vigor em 1984, tratou de assegurar, em todo o seu bojo, o respeito ao ser humano, bem como os direitos não atingidos pela pena na sua aplicação, questão já ancorada no art. 38 do Código Penal. A Constituição Cidadã de 1988 elevou aquele princípio ao patamar de constitucional, visando dar maior eficácia e respeito a ele. Todavia, como a realidade demonstrou, o respeito ao preso como ser humano, mais que um desafio, era um óbice à aplicação da pena no modelo meramente retributivo, que tacitamente foi aceito, em que pese o Sistema não possua mecanismos e orçamento que alcancem à gigantesca população carcerária, uma aplicação de pena, ao menos humana.
Nesse sentido, caminhou-se novamente, no desespero de se dar efetividade ao princípio, pela construção de novas normas, como é o caso da Resolução 19/94 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) fixando “Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil”. Todavia, tecer mais normas e conceitos mais complexos ao princípio, o afasta, ainda mais, de sua real e simples função, qual seja respeitar o ser humano em sua dignidade. N’outro falar, enquanto os discursos tentam pelo aprofundamento teórico[36] dar vida a ele, afastam-no de sua quintessência, que se cinge só em considerar o preso como ser humano e, deste modo, respeitá-lo em sua dignidade física e espiritual.