Normalmente, os processos judiciais sobre as transfusões de sangue envolvem principalmente os filhos menores de idade, que, embora muitos sejam considerados menores amadurecidos por terem convicção de suas crenças religiosas e saber fundamentá-las, não respondem ainda juridicamente por seus atos.
No que se refere às crianças e adolescentes, Álvaro Villaça de Azevedo (2010) assevera que a escolha do tipo de tratamento médico que o filho ou a filha receberá é um direito legítimo e integrante das características do direito familiar. Embora os filhos sejam o foco principal de atenção e proteção, o poder familiar deve ser exercido nos interesses da família, o que inclui pais e filhos.
Argumenta ainda que as crianças e os adolescentes têm direito de receber tratamento médico e que os pais devem garantir o acesso do filho à saúde, estando atrelado a este dever o direito de escolher os procedimentos médicos que serão realizados em seus filhos. O exercício deste direito faz parte do desenvolvimento da personalidade dos pais, é uma manifestação da dignidade da pessoa humana, merecendo ser resguardada.
Nesse aspecto, em 1979, o Supremo Tribunal dos EUA declarou que o conceito legal de família repousa sobre a suposição de que os pais possuem o que um filho menor carece, em maturidade, experiência e capacidade de julgamento exigidos para fazer as decisões difíceis da vida. E não é simplesmente porque a decisão de um genitor [sobre um assunto de saúde] envolve riscos, que o poder de fazer tal decisão será automaticamente transferido dos pais para alguma agência ou autoridade do Estado.
No caso dos pais Testemunhas de Jeová, não há que se falar em configuração de abandono e omissão, tendo em vista que, segundo Azevedo, trata-se apenas de exercício da escolha do tratamento médico e não de recusa de tratamento médico para os filhos, não se enquadrando no artigo 98, inciso II, do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, pois decidir por um tratamento médico que evita a exposição aos riscos transfusionais, por óbvio, não implica colocar a criança em situação de risco. Até porque, como se analisará em artigo próprio, as alternativas às transfusões sanguíneas são hoje consideradas cientificamente possíveis, eficazes e mais seguras.
Neste caso, não há, conforme Álvaro Villaça argumenta, caso de colisão entre o direito fundamental à liberdade de crença do pai e direito à vida do filho, visto que os tratamentos que dispensam a utilização de hemocomponentes tem aval científico, portanto, trata-se de uma escolha razoável.
Importante frisar que os menores de idade, assim como os maiores, são detentores de direitos fundamentais, tais como autonomia e dignidade, pelo simples fato de serem pessoas e, portanto, sua manifestação de vontade deve ser levada em conta.
Hodiernamente, observa-se que as crianças, em certos aspectos, estão progressivamente mais maduras e independentes. Diante dessa nova realidade, surgiu a doutrina do menor amadurecido, a qual privilegia a autonomia do menor, independentemente de sua idade. Conforme Villaça explica, tal teoria desponta como uma exceção à presunção de que os menores de idade não são capazes de exercer de forma pessoal os direitos relacionados com a personalidade. (2010, p.44)
Há de se perquirir o conceito mundialmente pensado do menor amadurecido. A teoria do menor maduro (mature minor) tem sua origem em 1985 no Reino Unido, no caso que ficou conhecido como Gilligk vs. West Norfolk and Wisbech Area thority and another, no qual se chegou à decisão de que uma adolescente de 16 anos podia consentir na prescrição de contraceptivos, exames e tratamentos, já que a mesma tinha entendimento e inteligência suficientes para saber o que esses envolviam. (MORAIS, 2011)
Depreende-se dessa teoria que, ao se analisar aspectos cognitivos individuais de uma criança ou de um adolescente, pode-se entender que este poderá fazer uso de sua autonomia e capacidade intelectiva, aceitando ou não um tratamento médico independente da permissão de seus pais ou responsáveis. Lembrando que não se trata de uma generalização com base única e exclusiva na idade cronológica, mas em outros aspectos, com base em uma avaliação feita pelo médico ou outro profissional da área da saúde. (MORAIS, 2011)
Os critérios utilizados para se considerar um adolescente ou uma criança uma pessoa madura, ou seja, ponderada e desenvolvida para tomar uma decisão como se adulta fosse são, sobretudo, de cunho subjetivo, já que a idade cronológica não pode ser um único quesito analisado. Analisa-se a capacidade e maturidade moral destes, com o fim de se averiguar se os mesmos entendem as consequências do tratamento médico a ser ministrado, seus riscos e benefícios. Ademais, avalia-se o grau de convicção para saber se estes estão conscientes de sua decisão. Diante dessas premissas, alguns chegam a eleger a idade de 12 anos como referência de julgamento. (MORAIS, 2011)
Assim, no que se refere aos cuidados com a saúde, o menor amadurecido é aquele que tem discernimento para tomar decisões próprias, entendendo a natureza e as implicações do tratamento médico proposto e, assim, é possível levar em consideração sua capacidade de escolha para o exercício do consentimento informado.
Desse modo, alguns países tem permitido que estes argumentem e tomem suas decisões relativas a tratamentos de saúde como expressão de sua dignidade e exercício dos seus direitos da personalidade.
Conforme nos assegura o artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente, as crianças e os adolescentes são detentores de todos os direitos fundamentais ligados à pessoa humana, o que também inclui o exercício da autonomia como manifestação de sua dignidade. Nesse sentido, a doutrina do menor amadurecido tem privilegiado a autonomia da criança e do adolescente.
Como exemplo, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (20 de novembro de 1990), em seu artigo 12, prevê que:
Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e da maturidade.
A Convenção de Direitos Humanos e Biomedicina (Convenção de Oviedo – 04 de abril de 1997), em seu artigo 6º, nº2, diz:
Deve-se levar em conta a opinião do menor como um fator cada vez mais determinante, em conformidade com a sua idade ou grau de maturidade.
Diante desse entendimento, tribunais estrangeiros tem reconhecido uma autonomia progressiva dos menores, como exemplo o Tribunal de Recursos de New Brunswick, Canadá, decidiu que um jovem de 15 anos podia recusar procedimento médico que envolvia transfusão de sangue:
Existe aqui evidência esmagadora de que [J] é suficientemente amadurecido e que, nas circunstâncias do caso, o tratamento proposto atende a seus melhores interesses e à preservação de sua saúde e seu bem-estar.....Em tais circunstâncias, os desejos do menor amadurecido, de rejeitar as transfusões de sangue, têm de ser respeitados.
A Suprema Corte de Illinois, EUA, também se manifestou favoravelmente diante da recusa à transfusão de sangue de um menor:
Se a evidência for clara e convincente de que a menor é suficientemente amadurecida para avaliar as consequências de suas ações, e que a menor é suficientemente amadurecida para exercer o poder de julgamento de um adulto, então a doutrina do menor amadurecido lhe concede o direito, garantido pelo Direito Comum, de dar seu consentimento ou de recusar um tratamento médico.
Na Espanha, o Tribunal Constitucional, ao analisar um caso que envolvia um adolescente de 13 anos diagnosticado com síndrome de pancitopenia grave em razão de uma aplasia medular, argumentou que além do paciente ser titular de direitos fundamentais este era maduro o suficiente para assumir uma decisão vital:
(...) o menor expressou claramente, no exercício de seu direito a liberdade religiosa e de crença, o desejo, coincidente com o de seus pais, a exclusão de determinado tratamento médico. (...) ao se opor à ingerência alheia sobre seu próprio corpo, o menor estava exercendo um direito de autodeterminação cujo objetivo é o próprio substrato corporal – como diferente do direito a saúde ou a vida – e que se traduz no marco constitucional como um direito fundamental a integridade física (art. 15 CE). (...) o menor falecido, (...) de treze anos de idade, teve a madureza de juízo necessária para assumir uma decisão vital (...) (http://www.tribunalconstitucional.es/jurisprudência/STC2002-154.html)
No Brasil, não há muitos julgados nem construção doutrinária acerca do assunto, mas se percebe que alguns dispositivos já reconhecem a importância de se respeitar a autonomia da criança e do adolescente. Como exemplos de dispositivos em que se reconhece a autonomia do adolescente, temos: o Código Civil, em seu artigo 1621, que prestigia a necessidade de consentimento do maior de 12 anos na hipótese de adoção; o ECA que também reforça a necessidade do consentimento do maior de 12 anos para a adoção, em seu artigo 28, parágrafo 1º; e o Código de Ética Médica, em seu artigo 101, também exige o consentimento do menor para submissão em pesquisa envolvendo seres humanos. (AZEVEDO, 2010)
Em parecer versando sobre paciente adolescente que recusou submeter-se à cirurgia mutiladora, o Conselho Regional de Medicina do Ceará assim decidiu:
EMENTA – Adolescente em gozo de suas faculdades mentais tem livre direito de recusa de tratamento cirúrgico mutilador, mesmo contrariando o consentimento dos genitores. (...) É do parecer deste conselho Regional de Medicina que uma paciente de 17 anos, portadora de osteoporose de fêmur, tem autonomia para decidir se aceita ou não procedimentos médicos que porventura lhe sejam propostos; mesmo adolescente, tem ela a capacidade de escolher, pois lhe assiste o discernimento para entender os fatos. (Parecer CREMEC n.º 16/2005 – grifos acrescentados) (http://www.portalmedico.org.br/pareceres/CRMCE/pareceres/2005/16-2005.htm)
Corrobora com tal entendimento o pensamento de Azevedo (2010) que disse:
As determinações quanto a receber tratamento médico sem transfusão de sangue por parte de pacientes Testemunhas de Jeová menores de idade que possuem capacidade para decidir e compreender as consequências de seus atos devem ser respeitadas por toda a equipe médica. Além disso, não há idade fixa do menor, a ser determinada, para que preste consentimento para tratamento médico, pois não se trata de capacidade civil, mas de capacidade natural. O número de anos não define essa capacidade de discernimento. É preciso, entretanto, que o menor esteja plenamente informado quanto à incerteza do resultado desse tratamento, dos riscos da atuação médica e dos eventuais benefícios que podem advir.
Portanto, em razão dos argumentos apresentados, entende-se que quando se respeita o direito de escolha da criança e do adolescente se materializa a dignidade da pessoa humana, elevando-a à excelência do seu exercício. Assim, os que manifestam capacidade de discernimento tem legitimidade para prestar seu consentimento informado. Quanto aos menores que ainda não possuem tal capacidade de externar conscientemente sua vontade, cabe aos pais, enquanto legítimos representantes legais de seus filhos, a responsabilidade de decidir.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Parecer Jurídico Autonomia do paciente e Direito de Escolha de Tratamento médico sem transfusão de sangue mediante o novo código de ética médica- resolução CFM 1931/09. São Paulo 8 de Fevereiro de 2010.
MORAIS, Reinaldo Santos de. A teoria do “menor maduro” e seu exercício nas questões referentes à vida e à saúde: uma apreciação da situação brasileira. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufba.br/tde_arquivos/17/TDE-2011-11-01T155221Z-2271/Publico/RMoraes%20seg.pdf> Acesso em 04 de dez. de 2012.