Introdução:
Em tempos em que histórias de abusos sexuais a mulheres nos meios de transportes públicos preenchem o noticiário, apresenta-se como nebulosa a maneira que a mídia trata do tema, muitas vezes divulgando ao telespectador uma tipificação penal errônea do “ataque”. Daí, surge a premente necessidade de se discorrer sobre o assunto e esclarecer sobre as distinções entre as infrações penais que mais ocorrem, afetas a tal problemática, mesmo para que não tenhamos a percepção equivocada, propiciada pela imprensa, de que o entendimento do aplicador do Direito, seja do Delegado de Polícia ou do Juiz de Direito, em um caso específico, tenha sido inadequado, inclusive, muito brando. Neste momento, estão em trâmite projetos de lei dos Senadores Humberto Costa (PLS 740/2015) e Marta Suplicy (PLS 312/2017), prevendo a criação dos crimes, respectivamente, de constrangimento ofensivo ao pudor em transportes públicos, com pena de reclusão de dois a quatro anos, e de molestamento sexual, com pena de reclusão de três a seis anos. Entretanto, enquanto tais projetos não se concretizam, cabível é a análise jurídica da temática conforme a legislação penal vigente.
Estupro:
O estupro, com a redação alterada pela Lei nº 12.015/2009, é delito inserido no Título dos Crimes contra a Dignidade Sexual.
“Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2o Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.
Conjunção carnal significa introdução do pênis na vagina. Já o ato libidinoso, nos dizeres de Guilherme de Souza Nucci, “é o ato voluptuoso, lascivo, que tem por finalidade satisfazer o prazer sexual, tais como o sexo oral ou anal, o toque em partes íntimas, a masturbação, o beijo lascivo, a introdução na vagina de dedos ou de outros objetos, dentre outros” (Código Penal Comentado, 13 ed. Rev. Atual e ampl. - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2013, pág. 969).
Para a concretização do estupro, o constrangimento deve se dar mediante violência ou grave ameaça, o que não ocorre com as infrações penais, na sequência, tratadas. Como a pena cominada ao caput é de reclusão de seis a dez anos, seu julgamento exclui-se da competência do Juizado Especial Criminal. Não se exige que seja praticado em local público, aberto, exposto ou acessível ao público. No mais, previsto como crime hediondo (art. 1º, V, da Lei nº 8.072/90), é inafiançável, insuscetível de graça, anistia ou indulto, o condenado por tal crime deve iniciar o cumprimento da pena em regime fechado, cumprir dois terços da pena para a obtenção do livramento condicional, caso não seja reincidente específico (hipótese em que não poderá obter este benefício) e cumprir dois quintos para a progressão de regime, se primário, e três quintos, se reincidente. Ainda, dada a pena mínima cominada, não há que se falar na viabilidade de aplicação do instituto da suspensão condicional do processo (art. 89, da Lei nº 9.099/95).
Ato obsceno e Importunação ofensiva ao pudor:
O ato obsceno, assim como o estupro, está no contexto dos crimes contra a dignidade sexual.
“Art. 233 - Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa”.
“A conceituação de ato obsceno envolve, nitidamente, uma valoração cultural, demonstrando tratar-se de elemento normativo do tipo penal. Obsceno é o que fere o pudor ou a vergonha (sentimento de humilhação gerado pela conduta indecorosa), tendo sentido sexual. Trata-se de conceito mutável com o passar do tempo e deveras variável, conforme a localidade.” (Código Penal Comentado / Guilherme de Souza Nucci. - 13. ed. rev. atual e ampl. - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2013, pág. 1027).
A importunação ofensiva ao pudor consiste em contravenção penal prevista no art. 61 do Decreto-Lei nº 3.688/41.
“Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor:
Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis”.
De acordo com Nelson Hungria, pudor é o sentimento de timidez ou vergonha que possui a pessoa normal diante de certos fatos ou atos que ferem a decência.
O crime e a contravenção são de competência do Juizado Especial Criminal (arts. 60 e 61, da Lei nº 9.099/95). Admitem transação penal (art. 76, da Lei nº 9.099/95), a confecção de termo circunstanciado (art. 69 da Lei nº 9.099/95) e a fiança.
O ato vulgarmente conhecido como “encoxamento” ou a ação de passar a mão nos seios ou nádegas da vítima, no ônibus ou em um vagão de metrô, sem a utilização de violência ou grave ameaça, proferir cantadas com baixo palavreado e efetuar convites indecorosos para práticas sexuais são maneiras de se cometer a contravenção penal, sendo que nela o agente não quer e nem assume o risco de ser flagrado.
Por seu turno, no delito de ato obsceno, o sujeito ativo quer ser visto ou assume tal risco, exibindo suas partes pudendas ou praticando ato sexual que pode ser visto por quem passe no local público (p. ex. uma praça ou parque público), aberto ao público (p. ex. cinema, teatro) ou exposto ao público (p. ex. o interior de um veículo estacionado na rua ou o terraço de um apartamento). Manter relação sexual, masturbar-se ou caminhar nu nos lugares supracitados são formas de se consumar o delito em análise. Ademais, enquanto na contravenção a conduta do agente, via de regra, é voltada contra uma determinada vítima, assim não se faz necessário no crime do art. 233, do Código Penal.
Conclusão:
Haja vista que a maioria dos abusos de cunho sexual em ônibus, vagões de trem ou metrô ocorrem sem o emprego de violência ou grave ameaça, o enquadramento jurídico se restringe ao ato obsceno ou à importunação ofensiva ao pudor, sendo esta mais recorrente. Contudo, é inequívoco que à sociedade é transmitida a sensação de uma ineficiente resposta estatal ao problema, em muito decorrente das penas brandas cominadas a tais infrações; à contravenção, por exemplo, é prevista tão somente pena pecuniária. Se aprovados os projetos de lei citados no tópico inicial, parece-me que haverá a correção da desproporcionalidade das sanções que por ora temos.