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O novo Código Florestal rearma a velha grilagem de terras.

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30/09/2020 às 09:00
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O cadastro ambiental rural (CAR) deveria servir para o planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento e não para, desvirtuado, servir à velha grilagem de terras, tal qual o registro paroquial da lei de terras de 1850.

O Código Florestal (Lei Federal n. 12.651, de 25 de maio de 2012[2]) mereceu elogios e críticas[3], que fogem ao propósito deste ensaio, que focará apenas na figura do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e na sua importância e aplicação, com a ressalva de que deve servir exatamente aos fins previstos pelo legislador.

Notemos que o CAR não deve ter o seu uso desvirtuado, para servir como meio de prova de domínio - como, aliás, já se pretendeu fazer[4] com o registro paroquial[5], introduzido pela Lei de Terras de 1850 - pois, do contrário, poderá servir como meio de prova para validar situações duvidosas[6], servir à grilagem[7] e ajudar a consolidar incontáveis situações já existentes[8].

Este cadastro é tratado nos artigos 29 e 30 da lei que o instituiu e merece ser criteriosamente categorizado[9] e, para tal propósito, é importante que seja percebido dentro do objetivo do Código Florestal que o instituiu: o “desenvolvimento sustentável”[10].

De fato, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) não objetiva fazer prova da qualidade da posse ou da propriedade, mas servir como instrumento de “controle, monitoramento e combate ao desmatamento[11]. Detalhe relevante é a previsão de que no futuro só se concederá crédito agrícola[12] para os proprietários cujos imóveis estejam inscritos no CAR[13].

Ademais, com o cruzamento de dados, o seu emprego pode auxiliar no combate à antijurídica apropriação de terra pública, pois é crível que não se deva pensar que terra grilada possa ter função social[14] ou servir ao desenvolvimento sustentável[15].

 Nossa preocupação não é isolada, pois já se disse que ...”o CAR deixa em aberto um debate entre os especialistas consultados pela reportagem: não será ele mais um instrumento para a velha grilagem de terras?”[16]...


CADASTRO AMBIENTAL RURAL E REGISTRO PAROQUIAL        

O Cadastro Ambiental Rural não serve para legitimar posse ou propriedade e, por isso, em alguma medida se assemelha ao Registro Paroquial, introduzido pela Lei de Terras de 1850[17], que foi regulamentada pelo Decreto 1.318, de 30.1.1854[18], pois este tinha fins meramente estatísticos e não conferia direito aos declarantes[19].

No entanto, fica a advertência de que o registro paroquial - de que trata a ainda vigente legislação de terras do ano de 1850 - também não serviria para a aquisição de domínio[20]`[21], embora até hoje gere controvérsias e ocupe os tribunais, pois é sabido que já foi usado para tentativas de apropriação do patrimônio público.[22]

Aliás - semelhança curiosa - os registros paroquiais também decorriam de “autodeclarações”[23] - que tinham que ser aceitas, mesmo que houvesse desconfiança por parte do pároco.

Com tal lembrança, passemos à análise do Cadastro Ambiental Rural (CAR), que surge nos artigos 29 e 30, que compõem o Capítulo VI, da norma em comento. O artigo 29 trata da criação e introdução desse instrumento no ordenamento jurídico nacional, definindo-o como um “registro público eletrônico de âmbito nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para o controle, monitoramento e planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento[24] (n.g.). No Parágrafo Primeiro, do artigo 29, o legislador fala que a inscrição do imóvel no novo cadastro será feita com o cumprimento de alguns requisitos, dentre os quais a “comprovação da propriedade ou posse”, com identificação do imóvel por meio de planta e memorial descritivo, etc.

Portanto, é crível que o CAR não foi pensado e criado com o intuito de se constituir em elemento de regularização fundiária, mas apenas de proteção ambiental, o que está dentro do comentado objetivo da norma que o instituiu (o desenvolvimento sustentável).

Noutro foco, é fato que a grilagem faz parte da nossa história, por certa não rigidez na aplicação de determinados comandos fiscalizadores ou até mesmo na tolerância com “declarações inexatas[25], como consta na Lei de Terras de 1850, no regramento do chamado Registro Paroquial, que as prevê[26].

Detalhe importante é que o CAR já aponta desvirtuado uso por alguns, inclusive com sobreposição de áreas cadastradas[27].

Isso nos faz lembrar de Gilberto Freyre[28], quando registrou: “quando é que as leis de proibição portuguesas e brasileiras foram escritas para ser cumpridas à risca?


REGULAMENTAÇÃO – QUEM É O “RESPONSÁVEL DIRETO PELA POSSE DO IMÓVEL”? 

O Decreto n. 7.830/2012 regulamentou a norma em apreço e introduziu a figura do “responsável direto pelo imóvel rural[29], tratado no artigo 5º.

Ora, o Código Civil cuida do proprietário e do possuidor e fala em propriedade e posse. O Código Florestal naturalmente só poderia falar dos mesmos clássicos institutos, até porque não legisla sobre o direito civil.

Além disso, não poderia a atividade regulamentar inovar e falar nesse “responsável direto pelo imóvel rural” – com status ao menos ali equivalente ao do proprietário e do possuidor (todos os três são tratados no artigo 5º) – e, assim, gerar e permitir interpretações dúbias - no sentido de poder um imóvel rural integrar o patrimônio de um “responsável” ou ocupante, sem que esse tivesse a qualidade jurídica de proprietário ou de possuidor.

Então, quem é esse “responsável” pelo imóvel rural, que por Decreto surge no ordenamento, ao lado das expressões “proprietário” e “possuidor” e com status equivalente, ao menos para fins de elaboração do Cadastro Ambiental Rural?

Se fosse apenas o administrador, agiria em nome do proprietário ou do possuidor e não precisaria figurar ao lado destes, no citado art. 5º, pois não seria um tertium genius, como parece que o é.

Ora, é crível que a lei estaria falando em imóvel rural privado (de  modo correto “destacado” do patrimônio público, para formar o patrimônio privado, de pessoa física ou jurídica), sobre o qual a posse também é admitida pelo ordenamento jurídico, pois tecnicamente não há e não possa haver posse sobre bem público[30], que também não é usucapível[31].

Portanto, essa figura do “responsável” - que não é nem proprietário nem possuidor - pode gerar confusão, má interpretação e desvirtuado futuro uso.

Além disso, a inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR) tem natureza “declaratória e permanente[32] e a informação é de responsabilidade do declarante[33] (leia-se, proprietário, possuidor ou “responsável pelo imóvel rural”), de modo mesmo muito semelhante ao que ocorria ao tempo da Lei de Terras de 1850 e do seu regulamento de 1854 - como vimos.

Assim, se nos parece temerária essa natureza declaratória pura, quando não tenha o Poder Público condições e meios de realizar robusta análise da origem, correção e natureza dos documentos dos imóveis rurais sobre os quais haja propriedade, posse ou “responsável” ocupante.

A preocupação não é em vão, pois o fato de o legislador não emprestar valor ao CAR na questão fundiária não impede que os grileiros o façam, a partir da sua geração por simples “declaração”, para depois buscar proteção judicial legitimadora e/ou o utilizar para expulsar da terra quem lá esteja, como já exemplifica o seguinte trecho da matéria intitulada Crime e Grilagem com uso do Cadastro Ambiental Rural[34]:

...”No entanto, avaliações de outras fontes e alguns casos apurados pela reportagem indicam que a situação é bem diferente. Professor do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, Carlos Augusto Ramos afirma que o CAR tem sido utilizado para a grilagem de terras. “Por exemplo, moro em Belém. Vou na internet e faço o meu CAR sobre uma área em outra região. Só que as pessoas que estão morando, sobretudo, em regiões afastadas não têm internet nem conhecimento sobre essa nova ferramenta para gerar o seu próprio CAR. O que acontece? Dependendo do meu grau de hostilidade, posso chegar e dizer: ‘Olha, você mora numa terra que é minha’”, relata.” (fonte citada, trecho destacado).

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Aliás, acima lembramos que os registros paroquiais, da ainda vigente legislação de terras de 1850, também não serviam para aquisição de domínio, mas até hoje geram controvérsias e processos que alimentam os tribunais.


O CADASTRO AMBIENTAL RURAL (CAR) NÃO SERVIRIA COMO TÍTULO DE PROPRIEDADE NEM PODERIA SER USADO PARA FINS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA,  EMBORA HAJA DECRETO ESTADUAL FAZENDO-O [35]

Há notícia de que já se usou o Cadastro Ambiental Rural (CAR) para fins de grilagem:

...“A operação Castanheira, que desbaratou no ano passado uma forte quadrilha que derrubava floresta e grilava terras na região da BR-163, no Pará, demonstrou que hoje o CAR já é utilizado para dar aparência de legalidade a áreas griladas e desmatadas ilegalmente. Em um diálogo gravado pela Polícia Federal, um dos principais acusados fala a um comparsa: “Aquela terra lá do Patrocínio, em que nome foi colocado aquele CAR?”A pergunta desnuda a prática da quadrilha de fazer cadastros em série, em nome de laranjas, para vender terras griladas.”...[36]

Essa notícia não é caso isolado, infelizmente, pois também já se usou o CAR em situação envolvendo mais de um milhão e duzentos mil hectares, como noticia o Governo do Estado do Pará, em seu site, em nota datada de 21.6.2013:

CADASTROS AMBIENTAIS RURAIS DE SUSPEITO DE GRILAGEM NO PARÁ  SÃO CANCELADOS

Três Cadastros Ambientais Rurais (CAR) [...] foram cancelados nesta quinta-feira, 20, pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema) do Pará, por suspeita de fraude, que apontam grilagem de terras e tentativa de atribuir posse a algumas áreas localizadas em Unidades de Conservação federais, estaduais, municipais e também Terras Indígenas, sendo que estas não podem ter proprietários. A soma das extensões territoriais apontadas nos pedidos dos três CARs chegou a um patamar estratosférico ao alcançar o total de 1.222.817,5433ha (um milhão, duzentos e vinte e dois mil, oitocentos e dezessete hectares, cinquenta e quatro ares e trinta e três centiares).”...[37]

  Também se identificou outro uso desvirtuado, como consta na notícia:

“O Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento de regularização ambiental que virou política federal pelo Código Florestal em 2012, tem sido útil a criminosos justamente no que deveria ser uma de suas maiores vantagens: o controle, monitoramento e combate ao desmatamento. A Operação Rios Voadores, por exemplo, realizada em junho, revela o uso ilegal do novo CAR. Conduzida pela Polícia Federal (PF), Ministério Público Federal, Receita Federal e Ibama, a operação prendeu uma quadrilha que desmatava e grilava terras públicas no Pará. Os criminosos financiavam invasões de florestas públicas com empresas de fachada e auxílio de intermediários. O dinheiro pagava trabalhadores, alguns em condições análogas à de escravidão, que desmatavam as áreas para a venda de madeiras nobres. Em seguida, a área do desmate era queimada para fazer pasto para o gado; em alguns casos, plantavam-se soja e arroz. [...] Segundo os procuradores, entre 2012 e 2015 essa organização movimentou R$ 1,9 bilhão e desmatou cerca de 300 km² de florestas, área equivalente à de capitais como Belo Horizonte e Fortaleza.” [38]...(nossos os negritos) 

Detalhe importante sobre essas regulamentações - e as conseqüências que podem gerar para o ordenamento - nos chega pelo teor do Decreto 739[39], de 29 de maio de 2013, do Governo do Estado do Pará, onde - ao contrário do que diz a lei federal e como vemos no seu inciso IV, do artigo 2º - o processo especial de regularização fundiária tem dentre os seus objetivos utilizar o CAR-PA “como instrumento de apoio ao processo de regularização fundiária”.

Ora, como um Estado dá a um cadastro federal um objetivo negado pela própria norma (federal) que o criou? Isso fere a lógica, o sistema e a simetria e, salvo melhor juízo, poderá servir para que terceiros o utilizaem para propósitos não jurídicos.

Em verdade, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) não pode ser interpretado como a purgação de eventuais vícios ou segura indicação de boa origem documental da terra, até pelo fato de que o mesmo não tem natureza de Registro Torrens.

Para que fique claro, o Torrens serve para a proteção do patrimônio (privado ou público), na medida em que “os títulos de domínio que recaem sobre o imóvel, que se deseja matricular, são previamente submetidos a um processo expurgativo, mediante rigoroso exame e prática de uma série de formalidades e providências, que visam acautelar também os direitos de terceiros[40]. Com o registro, os títulos de propriedade imobiliária são substituídos por um só, qual seja, o certificado da matrícula. Observemos que o domínio é depurado, com o afastamento de defeitos ou vícios na constituição do imóvel (quando do destaque do patrimônio público), nas suas dimensões[41] e com presunção absoluta[42] (jure et de jure), mais seguro e vantajoso do que o sistema de registro comum, tradicional, cuja presunção é relativa (juris tantum). Com ele não se tem de indagar da validade ou não dos títulos anteriores, pois isso passa a ser irrelevante na medida em que a cadeia sucessória do imóvel já fora antes submetida à séria análise. A propósito, a “segurança jurídica”[43] é fundamental para o sistema.

Essa breve consideração sobre o Registro Torrens bem indica que o instituto nada tem de semelhante com o Cadastro Ambiental Rural, que serve a específicos fins do Código Florestal que o introduziu, não dispondo sobre sistemas de registro imobiliário.

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Sobre o autor
Rogério Reis Devisate

Advogado. Defensor Público junto ao TJ-RJ. Associado ao Ibap. Autor dos livros "Grilagem das Terras e da Soberania" (2017) e "Grilos e Gafanhotos - Grilagem e Poder" (2016).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DEVISATE, Rogério Reis. O novo Código Florestal rearma a velha grilagem de terras.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6300, 30 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61755. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Este artigo é desdobramento e complementação dos estudos contidos no livro que publiquei, intitulado GRILAGEM DAS TERRAS E DA SOBERANIA, lançado em 14.9.2017, com 412 folhas (https://www.rogeriodevisate.com.br/grilagemdeterrasedasoberania )

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