O novo e vigente Código Civil, no parágrafo único [2] do seu art. 1.242, introduziu a convalescença do registro imobiliário. À primeira vista, parece algo perfeitamente compreensível, diante da presumida boa-fé do adquirente. Todavia, analisando-se com calma o instituto, e cotejando-o com o sistema jurídico pátrio, o chamado “usucapião tabular” parece contrariar o sistema de nulidades estabelecido no mesmo Código Civil, bem como o instituto do usucapião tradicional que, sabemos, é modo de aquisição originária – enquanto o modo tabular corresponderia a “convalescimento do registro cancelado” e, portanto, em espécie de aquisição derivada.
O fenômeno merece ser analisado com atenção, pois, em tese, bastaria que ocorresse o cancelamento do registro[3] imobiliário por qualquer motivo, para que o interessado pudesse postular a sua convalescença.
Não podemos nos esquecer de que o nosso sistema difere [4] do alemão. O nosso registro imobiliário é causal [5] (inválido o título de origem, o registro que dele decorra também será nulo, retirando a aparência de propriedade transferida).
Importante relembrar lição do mestre Pontes de Miranda, que dizia [6]:
“Tão-pouco há pensar-se em correção da vontade, ou corretido do princípio da vontade [...] ou em teoria da aparência do direito, com a noção de substituição da “realidade” à aparência, porque tal conclusão exigiria que se tivesse o ato jurídico, que se ocultou, como existente, contra tudo que se passa segundo os princípios” (nossos os grifos).
E, ainda, em Pontes de Miranda [7]:
“a respeito de conter, ou não, o Código Civil, regras jurídicas de direito administrativo (portanto heterotópicas), e de poder alguma regra de direito civil ser invocada como subsidiária do direito público, especialmente administrativo, tem havido graves confusões, provenientes de leitura apressadas de livros estrangeiros. No art. 1º, diz-se que o Código Civil regula “os direitos e obrigações de ordem privada”, de modo que é o fundo comum para o direito civil e o comercial; porém não para o direito público: para esse, a regra jurídica de direito privado somente pode ser invocada se é elemento do suporte factico de alguma regra jurídica publicística o fato jurídico privatístico, ou se – o que é causa das maiores confusões dos inexpertos – a regra jurídica privatística revela, no plano do direito privado, a existência de princípio ger,al de direito que também se há de revelar no direito público”[8] [...] Acrescenta que ”As terras devolutas (bens públicos dominicais, como se infere dos termos do Código Civil) não se resumem nem se submetem às medidas do Código Civil; atendem à lei especial; a sentença proferida no procedimento judicial da ação discriminatória, de caráter declaratório e demarcatório, vale como título para fins de registro imobiliário; em se tratando de procedimento administrativo”[9](nossos os grifos)
O cancelamento do registro pode decorrer de vício material ou questão de menor importância entre o adquirente a título oneroso e o transmitente, ou ter relação com nulo ou juridicamente inexistente, apenas com aparência[10] de correção no título causal, onde somente a fraude é real - embora esteja ocultada sob véu ilusório – e relacionada
“à montagem do teatro que pode nos apresentar o registro cancelando ou a própria matrícula de imóvel em análise, já que se o imóvel é público (e foi objeto de grilagem, não tendo sido, portanto, corretamente “destacado” do patrimônio público) jamais ingressou no patrimônio particular e não ensejaria assim a aquisição em comento, por contrariar a própria CF (art. 183) e todo o sistema de nulidades... Portanto, para tal instituto é absolutamente necessário que se trate de terra realmente particular, sem vícios que correspondam à grilagem de terra pública (notadamente devoluta, indígena ou de fronteira).”[11]
A grilagem [12] ainda prolifera em nosso país, apesar de a legislação bem tratar dos vícios do negócio jurídico, devidamente categorizando[13] os atos nulos[14] e os anuláveis[15], com previsão da possibilidade de convalescença apenas dessa última categoria.
É bom relembrar que no vigente Código Civil consta que “o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce com o decurso do tempo” (art. 169), de sorte que o legislador
“seguiu a doutrina tradicional que tem sustentado que, além de insanável, a nulidade é imprescritível, o que daria em que, por maior que fosse o tempo decorrido, sempre seria possível atacar o negócio jurídico “quod nullum et nullo lapsu temporis convalescere potest”[16].
Assim, a análise sistêmica dessa novel figura deve nos conduzir à conclusão de que não se prestaria ao convalescimento de todo e qualquer cancelamento de registro imobiliário[17], já que muitos apenas “na aparência” são de imóveis rurais particulares – sendo, em verdade, terras públicas.[18]`[19]`[20]
A propósito, as terras públicas não podem ser usucapidas (como consta na CF/88)[21] e são regidas pelo Direito Administrativo e tratadas em legislação própria (como exemplificam a Lei de Terras de 1850 e a Lei Federal n. 6739/79[22])... Caberia o usucapião tabular quando o cancelamento do registro envolvesse área pública grilada[23]? Essa é a indagação a ser feita, já que consta precedente nesse sentido[24].
Como já dissemos:
“Na verdade, pode-se defender o pensamento de que quem comprou mal[25] (pela sua inocência ou iludido por outrem que tivesse o chamado dolus malus[26] e adquiriu imóvel rural com registro decorrente de título de origem com nulidade insanável ou ato tido por juridicamente inexistente[27]) e se deparasse com nulidade não poderia pretender se tornar dono pela usucapião tabular, pois só teria direito à indenização e não à coisa em si, como estabelece o nosso Código Civil, art. 182 (“Anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente”), servindo a sua inocência apenas em relação aos frutos e não à coisa em si, como nos ensina Serpa Lopes[28], explicando que a nulidade (e ainda mais a inexistência jurídica) produz efeitos destruidores, retroativos e de responsabilidade, sendo os primeiros os de que “nada deve restar do contrato, nenhum efeito, pelo menos futuro, dele pode surgir” exatamente pela ordem jurídica que alvitra proteger, os segundos para que uma vez anulado o ato (diríamos declarado nulo) restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se encontravam e, caso impossível, indenizar-se-ão com o equivalente (CC/1916, art. 158, correspondendo ao art. 178, do CC/2002[29]), o que por vezes deve ser mitigado, diante da ausência de dolo ou culpa do terceiro de boa-fé[30], para o qual o festejado autor usa argumento importante, dizendo que “os que estiverem de boa-fé deverão fruir as vantagens inerentes ao possuidor com tal qualidade, como no caso dos frutos percebidos, das benfeitorias que fizer[31].”[32]
Quanto aos imóveis rurais deve ser destacado o fato de que, em muitos casos, essa “grilagem” só se revelará se o comprador, ou o aplicador da lei, exigir “toda a cadeia sucessória do imóvel” para que se possa aferir com total segurança a cadeia sucessória[33] e os desmembramentos ou remembramentos que ensejaram o último ato levado a registro na matrícula, daí partindo em alguns casos até para matrículas e atos anteriores, fazendo com que “do nada” surgisse o registro “original” de uma grande área.
Como este não é um trabalho sobre o Usucapião e sim, apenas um estudo sobre a figura da “convalescença registral”, tratada como parágrafo de uma das modalidades de usucapião no novo Código Civil, com um “comando aberto” que pode, na prática, virar “sanatória para todos os males”.
Nossa legislação civil tanto defende as pessoas de bem e os atos e negócios jurídicos bons, válidos e eficazes que, como já dito, prevê que “o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce com o decurso do tempo” (Código Civil/2002, art. 169) e que apenas os atos anuláveis são passíveis de sanatória (CC, artigo 172: “O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiro.”). Desse modo se expressa o Código Alemão, que fortemente inspirou o Código Civil de 1916, que por sua vez se renovou no Código Civil de 2002[34] (e não nos esqueçamos de que as terras públicas são regidas pelo Direito Administrativo[35] e por legislação própria, como a Lei de Terras de 1850, a Lei 6739/79, a Lei 6383/76...).
De fato, os atos nulos são imprestáveis e assim serão declarados, mas os atos anuláveis poderão até ser ratificados do modo tratado no atual código (CC/2002, art. 172), que praticamente repete o que dizia o anterior CC/1916 (art. 148).
É digno de lembrança que Clóvis Beviláqua, autor do anteprojeto do anterior Código Civil, dizia que as nulidades (absolutas, segundo o direito alemão) prescreveriam em 30 (trinta) anos, já que era o maior prazo do anterior CC, o que o grande jurista Pontes de Miranda considerou um “absurdo”, porquanto o ato praticado por louco etc “não prescreve nunca” e dizendo que o que prescreve são as ações e que no caso não há ação propriamente dita, mas mera “alegação e o juiz poderá declarar o ato nulo tão logo o conheça e bem assim os seus efeitos”.[36]
Neste sentido, a doutrina é clara quando aborda vícios como a simulação, mas por conveniência elegeremos a linha de clássica argumentação de Serpa Lopes[37] que nos diz que “o negócio absolutamente simulado nada tem de real; além do ato simulado, nada mais se vê: colorem habet, substanciam vero nullam”, destacando argumento de Butera no sentido de que “é sombra de si mesmo, representa um ato que não existe, ou seja, um ato nulo mais por falta de conteúdo do que por defeito da forma”. Enfim, é crível que “o ato nulo não produzirá “efeito jurídico” (CC, art. 169) e sim apenas temporários reflexos e “conseqüências” (que podem tumultuar o ambiente social) e somente até que a nulidade seja declarada.
A função da nulidade consiste em “tornar sem efeito o ato ou negócio jurídico”, de tal modo que “este desaparece, como se nunca houvesse existido” o que, evidentemente, cresce em clareza quando também o defrontamos com o ato ineficaz, posto que este último possa ser bifronte, ou seja, com validade entre os contratantes mas ineficácia total em face de terceiros, de sorte que “os efeitos da nulidade são diversos dos da ineficácia. Contudo, na nulidade a sua sanção consiste na supressão dos efeitos do negócio jurídico, mesmo inter partes”[38]. Mas casos há em que a nulidade é tão absurdamente grave que o que se tem é um efeito maior, o de inexistência do ato (cujos traços característicos são: independer de ação judicial; poder ser alegado por qualquer pessoa; ser completamente vazio de efeitos; ser impossível de ser confirmado ou ratificado; impossibilidade absoluta de prescrição)[39].
Nos procedimentos da vigente Lei 6.739/79, que prevê possibilidade de declaração de inexistência e nulidade da matrícula e do registro de imóvel rural vinculado a título nulo de pleno direito ou feito em desacordo com artigos 221 e seguintes da lei 6.015/73, nada mais, em tempo algum, a respeito remanescerá[40], de modo que neste caso como imaginar hipotética alegação da “usucapião tabular”? A resposta tem de ser no sentido de se lhe negar a usucapião tabular, já que a terra nunca foi particular como parecera, mas pública (e grilada)...
Com isso, mais uma vez temos que não ensejará usucapião tabular todo e qualquer cancelamento de registro imobiliário que esteja em nome de particular! Aliás, o mesmo se dará com os cancelamentos determinados por decisão judicial (Lei de Registros Públicos, art. 216) que atingir o título causal do registro cancelando.
Assim é o sistema, quanto aos vícios do registro:
(a) nulidades de pleno direito do próprio registro, invalidam-no, independentemente de ação direta (LRP, art. 214), podendo o cancelamento ser determinado pelo Juiz Corregedor e administrativamente (ato administrativo nulo[41], em sede de auto-tutela – Súmulas do STF, verbetes 346 e 473);
(b) nulidade tamanha que tenha equivalência de inexistência do registro pode ser reconhecida também pelo Juiz Corregedor, embora haja quem defenda que deva ser feita judicialmente (LRP, art. 216);
c) cancelamento (reconhecimento da inexistência jurídica) da matrícula, o que só ocorre quando a nulidade for da própria matrícula[42] ;
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(d) cancelamento do registro (LRP, art. 253) por decisão judicial (art. 253, I), quando em virtude de alienações parciais o imóvel tenha sido inteiramente transferido para outros (art. 253, II), como nos casos de divisão de herança, de loteamentos etc e pela fusão (art. 253, III), esta nos termos do art. 250 da mesma lei (aliás, este artigo também trata do cancelamento, novamente dispondo sobre decisão judicial: art. 250, I) e falando que por requerimento de todas as partes (art. 250, II) ou do interessado (art. 250, III) e, por fim, por requerimento da Fazenda Pública, em decorrência de conclusão de processo administrativo em se tenha a rescisão do título de domínio ou de concessão de direito real de uso do imóvel rural, expedido para fins de regularização fundiária, com a reversão do bem ao patrimônio público;
e) para os imóveis rurais, são declarados nulos e inexistentes os registros vinculados a títulos nulos de pleno direito ou feitos em desacordo com os arts 221 e seguintes da Lei 6.015/73, por ato do Corregedor Geral da Justiça, nos moldes preconizados na Lei 6.739/79.
Curioso notar que o cancelamento é definitivo, só podendo haver o cancelamento do cancelamento do registro se este foi nulo[43] e por aí bem se vê como os temas são complexos... Ora, imagine-se o cidadão postular a usucapião tabular diante do cancelamento do registro (preenchidos os demais requisitos, claro) e de repente se cancela aquele cancelamento pelo reconhecimento de vício existente! E, além disso, se cancelado o registro apenas e não o título nada impede que o interessado o apresente para novo registro[44], que produzirá efeitos a partir da sua realização (LRP, art. 254) e não “convalescendo” o anterior (a propósito, merece o destaque: nem aí se faz o convalescimento administrativo...)!
Notemos, ainda, que, se o ato é juridicamente inexistente nenhum efeito ou conseqüência poderá produzir no mundo jurídico - e são imprescritíveis, o que deve ser compreendido como sendo também insuscetíveis de convalescimento.
É crível que é a “ordem jurídica” o bem jurídico tutelado quando se expurgam da realidade os atos nulos e os atos inexistentes.
Esta lógica nos chega desde os romanos, com o brocardo Nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet (não se pode transmitir mais direitos do que se possui).
É curioso que o prazo para isso seja tão longo logo na Alemanha, onde o sistema registral é tão seguro, razão pela qual é muito importante atenta leitura do Parágrafo Único do art. 1242, do Código Civil – e, a respeito já dissemos:
...”ele realmente não se encaixa perfeitamente no sistema (o imóvel é adquirido “com base” em título e não em registro) e nos demais artigos que tratam da usucapião, com isso criando o legislador uma figura jurídica que não tinha precedentes no sistema brasileiro anterior, pois dela não cuidou o Código Civil de 1916. E mais: a cogitada possibilidade de convalescença registral foi introduzida sem que o sistema jurídico viesse a ser antes reformulado e de sorte que se dotasse os registros imobiliários com a pureza do sistema alemão - detalhe que nos chama atenção, pois é sabido que naquele país o registro, além de não ser causal como no sistema brasileiro, só comporta a solução tabular no prazo de 30 anos (e não no de 05 anos da nossa lei).”[45]
Dito isso, o que se espera do registro? Em apertada síntese, que seja seguro e eficiente (devendo cega obediência aos princípios constitucionais que o regem, hoje expresso no art. 37 [46] [47], da Constituição Federal) e, claro, como ato administrativo que é, que tenha perfeita compatibilidade com a legislação aplicável.
Já que falamos em “tabular”, com forte influência do sistema alemão (embora, frisamos, diferente do nosso), importante que sobre registros e sua função social conheçamos pensamentos do alemão Heinrich Ewald Hörster [48], como citado no Parecer aprovado pelo “Conselho Técnico da Direcção-Geral dos Registos e do Notariado”, em sessão de 01.07.2003[49], tendo sido relator João Guimarães Gomes de Bastos, do qual destacamos aqui breve trecho, para adiante comentar, in verbis:
...”«esta solução compreende-se exactamente em atenção à finalidade do registo: como o registo se destina a dar publicidade aos direitos constituídos, resultantes dos factos jurídicos e inerentes aos objectos a que estes factos dizem respeito, antes do registo os terceiros não precisam conhecer os factos; por isso, estes factos e os respectivos direitos deles resultantes apenas lhes são oponíveis depois do registo». O nosso regime do registo distingue, pois, entre a eficácia inter partes e a oponibilidade dos factos jurídicos a terceiros. É nesta distinção e na aludida fé pública que radica a possibilidade da existência de situações em que uma pessoa «adquire direitos de quem carece de poderes para dispor deles ou, embora podendo, tinha a obrigação de não dispor»...«o regime do registo pode conduzir a um resultado diferente da Estes são apenas dois exemplos de uma enorme mancha de hipóteses que se podem configurar em que o regime do registo – fundado na distinção entre eficácia inter partes e oponibilidade a terceiros”. (n.g.)
Fácil perceber que o sistema registral citado pelo festejado jurista, corroborado pela decisão do citado colegiado, já aqui revela a grande diferença do sistema brasileiro, porquanto lá decorrem do ato do registro a eficácia inter partes do negócio jurídico (compra e venda etc) e também a eficácia erga omnes, enquanto no direito brasileiro a eficácia interna do negócio é decorrente da própria fonte de obrigações (contrato etc) ao passo que é apenas a eficácia erga omnes que decorrerá do ato do registro.
Isso demonstra que são duas realidades inconciliáveis e que não se pode, portanto, extrair de uma um texto e enxertá-lo noutro sem riscos de se causar uma balbúrdia no sistema. O sistema jurídico é como uma teia de aranha, onde cada nó tem relação com outros (tanto maior quanto mais próximos forem) de forma que ao se tocar um dos nós causar-se-á vibração nos demais. Não há como se mexer isoladamente em um instituto, princípio ou preceito legal sem gerar insegurança ou complexas confusões ao atingir outros, já que não haverá um que esteja desconectado dos demais[50], devendo haver, ademais, coerência e unidade entre seus componentes do sistema.[51]
Além disso, ainda tem uma redação que se nos apresenta um “tipo aberto”, porquanto, se aplicada como solução para “todos os casos” parece ter capacidade de enfraquecer a força e eficácia do art. 214, da lei de registros públicos (situação modificada depois, pelo art. 59, da Lei 10.931/2004, que parcialmente alterou a Lei 6.015/73, na redação do seu cogitado art. 214 para, na nova redação atribuída ao seu Parágrafo 5º, dispor novamente sobre a usucapião tabular).[52] Mas penso que aqui o tema está fora do contexto, pois consta “em disposições transitórias” e inserido em lei que não tinha a priori a intenção de mexer no tema, além do que entendo que a nulidade aqui retratada só poderá ser a do registro[53] e não a do título que lhe deu causa, pois caso contrário estará sendo legitimada a violência no campo[54] e a apropriação de terras públicas[55].
A propósito, num sistema sem a mesma segurança do alemão, e falando em títulos e cédulas (letra de câmbio imobiliária e cédula de crédito imobiliário e afins) e no mercado financeiro tratados naquela lei[56], parece-nos que há alguma semelhança dessa lei com os altaneiros propósitos da Lei de Terras de 1.850, que acabou focando num cadastramento geral dos apossamentos com foco fiscal e não a gerar direitos à titulação, como alias a respeito se escreve e já se decidiu em nossos tribunais, inclusive no sentido de que já “em 1847 a venda de posse de terras do valor de 500$00 não podia ser feita por escripto particular.
O registro do vigário não é titulo de domínio”[57] e o Registro Paroquial tinha efeitos meramente estatísticos, como dizia o Decreto 1.318, em seus artigos 93 e 94[58], devendo ser enaltecido o fato de que o Vigário não podia recusar as declarações do interessado, mesmo que as estranhasse.[59] Observemos que já se ensinou que “nem mesmo a posse era hábil tal registro a demonstrar” (Altir de Souza Maia[60]). Em resumo, até hoje há divergências e problemas de interpretação, o que em parte parece que o futuro talvez reserve à usucapião tabular e ao que a citada Lei 10.931/2004 acabou focando.
Consideremos que talvez fosse solução justa para reais circunstâncias relacionadas ao adquirente de pequeno lote urbano (com até 250m2, como fez a Lei 12.424/2011)[61] ou de pequena área rural (suponhamos, até o tamanho da menor gleba rural da região), mas não se aplicaria às grandes extensões - fazendas com milhares de hectares.
Aliás, só para registrar, já se admitiu o cancelamento administrativo do registro (feito com base na Lei 6.739/79) pela anterior não demonstração, em sede administrativa, da regularidade da cadeia dominial das várias glebas que, somadas, chegam a cerca de 120.000 (cento e vinte mil) hectares, embora registradas por décadas[62].
Além disso, merece especial atenção que, no Relatório Final da CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a ocupação de terras públicas na Região Amazônica[63], criada em 2000, conste, in verbis: ... “cancelamento, de mais de trinta e sete milhões de hectares de terras, correspondentes a imóveis indevidamente matriculados e centenas de glebas desmembradas através do registro das correspondentes matrículas” (fls. 45 – destacamos e grifamos)... Também importante e fundamental a decisão do CNJ – Conselho Nacional de Justiça que, nos autos do Pedido de Providências - PP n. 0001943-67.2009.2.0.0000, determinou o cancelamento de 5,5 mil títulos irregulares no Estado do Pará (grilados).[64]
Outro exemplo extremo e útil para nossas reflexões é o caso do cancelamento dos títulos e registros das áreas demarcadas em 1938 e que foram declarados nulos por integrar área de reserva indígena, conforme decisão do STF – Supremo Tribunal Federal, nos autos do julgamento do processo que cuidou da demarcação da Reserva Indígena “Caramuru-Catarina-Paraguaçu”, no sul da Bahia.[65]`[66]
São incontáveis os exemplos de registros imobiliários com defeitos próprios ou principalmente do título que lhes deu origem, de sorte que muito se deve refletir sobre a aplicação e a redação do tão citado Parágrafo Único, do art. 1.242, do CC.
Curioso que a hipótese nos faça recordar o princípio de que “ninguém pode vender o que não tem” (como bem reconheceu o STJ[67] sob a Relatoria do Min. Luis Fux, constando no Acórdão que “a alienação pelo Estado da Federação de terras de fronteira pertencentes à União é considerada transferência a non domino, por isso que nula”) e o adágio popular que diz que “quem paga mal paga duas vezes” (a jurisprudência acolhe a idéia quando o devedor busca se desobrigar dizendo que pagou a alguém mas não ao próprio credor)[68].
Ousaria até considerar que a questão não pode ser avaliada isoladamente, como se o usucapião tabular fosse um problema “apenas de ordem registral” - e daí o nome “tabular” [69] – e desprezando a realidade fática e a jurídico-política da construção do patrimônio público e privado no Brasil etc, servindo como alerta decisão proferida no Estado de Mato Grosso do Sul, concedendo o usucapião tabular em processo de longa tramitação e envolvendo terra pública[70], não usucapível[71].
Assim, a elástica disposição do Parágrafo Único, do Art. 1.242, do Código Civil/2002 pode permitir que também latifundiários dele busquem se utilizar sempre que seus registros vierem a ser cancelados, exatamente por não ter limites de área ou balizamento objetivo o preceito em comento (diferentemente do que fez depois o legislador, na Lei 12.424/2011).
Ademais, admitir que possa prevalecer a “função social” [72] quando meramente “aparente” a propriedade privada diante da usurpação da terra pública é fazer erodir o sistema, ao invés de preservá-lo. Só para argumentar, o Supremo Tribunal Federal - STF, ao reconhecer a Reserva Raposa Terra do Sol, não só determinou a desocupação dos antigos moradores (que produziam e moravam lá há décadas) como a “perda da safra” de arroz[73] e aqui diante de fato novo superveniente (demarcação da reserva indígena[74]).
Detalhe relevante também se revela se pensarmos que, quanto aos imóveis rurais, só se poderia falar em função social da propriedade (“privada”) se esta realmente for uma “propriedade privada”, ou seja, se esta regularmente ingressou no patrimônio particular, tendo sido corretamente “destacada” do patrimônio público. Assim, havendo grilagem, não cumpriria a terra uma função social! Pensemos a respeito analisando ocorrência no Estado de Goiás, onde enorme área pública (com cerca de 32.250 hectares ou 6.663 alqueires)[75] estava registrada em nome de particular até que fosse judicialmente cancelado[76] o seu registro (via Ação Discriminatória[77], transitada em julgado), constando que, em seguida, foi vendida a 48 (quarenta e oito) famílias (que lá originalmente já há décadas residiam e que haviam sofrido esbulho na sua posse por parte de pessoas que se diziam proprietárias)[78], de sorte a cumprir sua função social![79]
Noutro foco, sabemos que a Lei de Terras de 1850 já previa que só se adquiririam por compra as terras devolutas[80] e que a convalescença do registro é uma “aquisição derivada” já que baseada no próprio registro cancelado em nome do que se dizia proprietário e não é usucapião propriamente dito, pois este é uma aquisição originária.
Focamos até aqui mais na questão do cancelamento do registro e lembramos que o Superior Tribunal de Jusitça - STJ já decidiu que negócio fraudulento não é “justo título”[81]´[82]`[83].
O legislador exigiu, ao introduzir este instituto sem paralelos em nosso sistema, o seguinte:
aquisição a título oneroso (o que já afasta as questões sucessórias etc) e “com base” no registro constante do respectivo cartório, cancelado posteriormente à aquisição – embora ninguém adquira imóvel com base em registro e sim com base em título (“causal”, como já reconheceu o Supremo Tribunal Federal)[84];
-
cancelamento do registro após cinco anos de vigência (pensamos: cancelamento “do registro” por vício do próprio e não por vício do titulo que lhe deu origem[85]);
que o interessado tenha feito do imóvel moradia ou realizado investimentos de interesse social ou econômico (notemos que nem se exige que a moradia ou os investimentos tenham vigido isoladamente pelos cinco anos), mas sem defini-los, ficando a dúvida se bastariam cercas e plantações ou se teria de haver galpões, silos, estradas ou casas, o que levou à crítica feita por Caio Mario da Silva Pereira.
Por fim, talvez haja um conflito também deste instituto com a evicção – clássica figura da tradição do direito civil e tratado em dez artigos do novel Código Civil (artigos 447 a 457) - pois poderia o interessado optar pela usucapião tabular no lugar de demandar a evicção? Isso importaria numa hipotética futura praxe que esvaziaria o instituto da evicção?
Assim, é crível que a redação do Código Civil, quando trata da usucapião tabular (CC, art. 1.242, Parágrafo Único), não significa uma “borracha” passada em nossa história para que doravante os que já ocupam terras públicas (que estão submetidas ao Direito Administrativo[86]) - e que tenham os seus registros cancelados - possam vir nelas se manter perpetuamente...
Desse modo, o usucapião tabular deveria ser aplicado para o cancelamento decorrente apenas de vicio do próprio registro e nunca do título que lhe deu origem (assim se afastam os grilos, não se contradiz o teor da Lei 6739/79 e o art. 214, da Lei 6.015/73 – lei de registros públicos – e não se sufoca e neutraliza o histórico trabalho de combate à grilagem de terras públicas.