A propósito da Súmula 145 do STF: breves apontamentos da incidência no art. 33 da Lei 11.346/06 e sua repercussão processual

19/11/2017 às 12:18
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Trata este artigo sobre a hipótese de flagrante preparado no crime de tráfico de drogas. De forma sucinta, busca-se apresentar as principais repercussões no âmbito processual penal, bem como quanto a legalidade da prisão realizada .

Resumo: Trata este artigo sobre a hipótese de flagrante preparado no crime de tráfico de drogas. De forma sucinta, busca-se apresentar as principais repercussões no âmbito processual penal, bem como quanto a legalidade da prisão realizada e consequentemente a licitude da prova obtida, devido a pluralidade de condutas descritas no referido tipo penal.

Para tanto, se recorre a príncipiologia constitucional e processual penal, para que dessa forma, se apresente o impacto jurídico causado em decorrência do referido flagrante.

Palavras-chave: flagrante preparado; tráfico de drogas; processo penal, princípios constitucionais;

Sumário: 1. Introdução; 2. Flagrante preparado: conceito, ilegalidade do flagrante nos delitos permanentes do crime de tráfico de drogas; 3. Principais problematizações processuais e constitucionais frente a licitude da prova colhida; 4. Conclusão; 5. Referências bibliográficas.

 

1.    Introdução

Este artigo busca, de forma sucinta, apresentar ao leitor uma reflexão a respeito da temática frequentemente enfrentada pelos Tribunais brasileiros. Trata-se de hipótese de flagrante preparado, realizado por agente policial, infiltrado ou disfarçado, no crime de tráfico de drogas (artigo 33 da Lei 11.343/06), que repercute na licitude ou ilicitude da prova colhida.

Inicialmente, cumpre classificar o flagrante preparado, discorrendo sobre os principais entendimentos jurisprudenciais acerca da ilegalidade ou legalidade dos flagrantes nos crimes de tráfico de entorpecentes.

Diante do fato do tipo penal em estudo, possuir várias condutas, o flagrante preparado vem sendo admitido nas condutas classificadas como crime permanente, porém, diante de nossa visão, a questão exige reflexão mais aprofundada.

Abordar-se-ão assuntos como a teoria da proporcionalidade, relembrando as diferenças entre os sistemas inquisitório e acusatório do processo penal, destacando, principalmente, as divergências existentes acerca do tema.

2.  Flagrante preparado: conceito e a ilegalidade do flagrante nos delitos permanentes do crime de tráfico de drogas

De acordo com a súmula 145 do Supremo Tribunal Federal, “não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”, ou seja, não há crime quando o fato é preparado mediante provocação ou induzimento, direto ou por concurso, de autoridade, que o faz para fim de aprontar ou arranjar o flagrante.

A súmula, portanto, incide no momento em que a autoridade policial, provoca a execução do delito, surpreendendo o indivíduo em flagrante, interferindo, consequentemente na sua consumação, resultando, como entendimento de nossa corte suprema, o crime impossível e o flagrante nulo.

Portanto, tratando-se de verdadeiro crime de ensaio, configura-se forma irregular de prisão, não tendo valor como peça coercitiva da liberdade.{C}[1]{C} Ou seja, o flagrante preparado é ilegal e se denomina como crime impossível, baseado na espécie de crime impossível por obra do agente provocador, onde verificamos o comportamento instigador da polícia, evitando desta forma a consumação do crime, excluindo por consequente sua tipicidade.

Há, pois, provocação sempre que a polícia intervier, direta ou indiretamente, no próprio iter criminis, uma ação que leve o suspeito a cometer um determinado crime que não cometeria se não fosse a atuação policial.

          Por hora, cumpre ressaltar, que, com a intervenção policial, estes, agem para que o resultado seja evitado. Estamos diante do fato de que, o meio utilizado para configuração do crime, seja absolutamente ineficaz à consumação impedindo o resultado advindo da conduta.

LOPES JR. esclarece que referido flagrante não passa de uma cilada, uma encenação teatral, tendo em vista que o agente é induzido à prática de um delito por um agente provocador, geralmente um policial ou alguém a seu serviço.{C}[2]

           No crime impossível por obra de agente provocador, embora o objeto jurídico exista, não há criação de risco, não havendo imputação objetiva da conduta. O risco deve ser objetivo e real, não devendo se ater as POSSÍVEIS chances de consumação.

2.2 (I)legalidade do flagrante nos delitos permanentes do crime de tráfico de drogas

 A aplicação da súmula 145 do STF exige o concurso simultâneo de dois requisitos, que são a provocação de flagrante pela polícia e a impossibilidade absoluta de consumação do crime.

          Diante disso, a principal problematização se refere quanto a impossibilidade de consumação do delito, onde, a nulidade do flagrante provocado limita-se àqueles fatos objeto da provocação, pois, relativamente a outros que independam da provocação, há, sim, crime punível, não incidindo a súmula.

           Destarte, diante de precedentes do Supremo Tribunal Federal{C}[3] entendendo que, no caso de tráfico de droga, embora o agente não possa ser licitamente preso por venda da droga em virtude da provocação (crime impossível), tal não impediria que pudesse responder pela guarda ilícita da droga posteriormente encontrada em depósito, uma vez que constituiriam ações distintas e autônomas: vender e guardar em depósito, igualmente proibidas por lei. E antes da provocação policial já havia um crime consumado de tráfico na modalidade guardar (crime permanente).

          Ocorre, que razão não assiste a este entendimento, embora o crime de tráfico seja de múltipla ação, ou seja, plurinuclear, constitui crime único, motivo pelo qual o agente, caso pratique várias ações, responderá, em princípio, por uma só infração penal e  exatamente por isso, é um tanto equivocada a interpretação no sentido de considerar impossível o delito quanto a uma ação (vender) e possível quanto a outra (guardar em depósito), como se não houvesse crime de múltipla ação, mas múltiplos crimes em concurso material.

        Não se pode olvidar que a substância tóxica só foi apresentada, com a finalidade de venda, em decorrência da provocação engendrada pelo policial disfarçado, tratando-se, portanto, de uma vontade viciada. Há, assim, indução a erro, sendo certo que o agente provocado somente revelou sua situação por estar atuando sob o engano do provocador.{C}[4]

       Cumpre salientar, que constatada a ilicitude da prova obtida, imperioso seria o relaxamento da prisão em flagrante.

3.  Principais problematizações processuais e constitucionais frente a (I)licitude da prova colhida

Na atual sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, conforme destaca Brito, “o processo penal não pode ser olvidado como um dos instrumentos que é de garantia do Estado Democrático de Direito.”  (BRITO Alexis Couto de. Agente infiltrado: dogmática penal e repercussão processual. In: Ana Flavia Messa; José Reinaldo Guimarães Carneiro. (Org.). Crime Organizado. 1ed. São Paulo: Saraiva, 2011, v. 1, p. 261.)

Precisamos compreender, que a constituição de 1988 define um processo penal acusatório, fundado no contraditório, na ampla defesa, na imparcialidade do juiz e nas demais regras do devido processo penal.{C}[5]

Voltando à corrente que considera legal o flagrante preparado no crime de tráfico de drogas, argumenta-se, ainda, que o agente provocador, ao induzir o agente provocado a praticar determinada ação (no caso, apresentar a substância entorpecente), visa descobrir a real autoria e materialidade de um crime, anterior ou em estado de permanência,{C}[6] como ter em depósito, por exemplo. Tal colocação mais se aproxima do sistema inquisitório, perseguidor da verdade a qualquer custo, inclusive mediante violação de direitos e interesses individuais, do que do sistema acusatório, de conteúdo ético, que se associa a tais observações. Além disso, a Constituição Federal assegura a inadmissibilidade processual da prova ilícita, impondo limites a essa busca pela verdade, que não deve – muito menos pode – representar um fim a ser atingido a qualquer custo.

Como se não bastasse, a hipótese em estudo viola absurdamente o princípio da não auto-incriminação (Nemo Tenetur se Detegere), princípio consagrado no Ordenamento Jurídico vigente no artigo 5º, inciso LXIII da CF/88;

                       STF - HC 96.219-SP, rel. Min. Celso de Mello, que sublinhou:

"A recusa em responder ao interrogatório policial e/ou judicial e a falta de cooperação do indiciado ou do réu com as autoridades que o investigam ou que o processam traduzem comportamentos que são inteiramente legitimados pelo princípio constitucional que protege qualquer pessoa contra a auto-incriminação, especialmente aquela exposta a atos de persecução penal.""O Estado - que não tem o direito de tratar suspeitos, indiciados ou réus como se culpados fossem (RTJ 176/805-806) - também não pode constrangê-los a produzir provas contra si próprios (RTJ 141/512).”

 

Ou seja, parece não restar dúvida de que o policial, disfarçado, ao induzir o agente a apresentar a droga, obtendo prova contra o mesmo, o induz a erro, praticando uma conduta desleal. Aliás, saliente-se que, pelo princípio da não autoincriminação, o acusado está protegido das situações condicionadas por um erro provocado pelo Estado.

O principal fundamento da corrente que defende a suposta legalidade desta colheita de prova, com o fim de justificar a violação de um direito fundamental, pugna-se, pela aplicação da teoria da proporcionalidade ou da ponderação de interesses.

Tal argumentação é no sentido de que os direitos individuais devem ceder frente à supremacia do interesse público.

Lopes Jr. afirma tratar-se de “uma manipulação discursiva que faz um maniqueísmo grosseiro, (senão interesseiro) para legitimar e pretender justificar o abuso de poder”.{C}[7]{C} E, em sede processual penal, acabou-se trazendo a proporcionalidade, transformando-se em verdadeiro meio de relativização de todas as garantias constitucionais do acusado.{C}[8]

Não se aplica ao caso, a supremacia do interesse público sobre os direitos individuais, pois a constituição quis, justamente, proteger os interesses públicos ao vedar a mácula ao direito individual, pois permitindo o desrespeito ao direito fundamental do cidadão, ao final estar-se-ia atingindo e desprotegendo toda coletividade.

Deve-se atentar, principalmente, à ética no processo penal, sendo inadmissíveis a utilização de meios investigativos fraudulentos e inquisitoriais para a obtenção de provas a qualquer custo, como a provocação do agente à prática de um crime, sendo indevida a utilização do princípio da proporcionalidade, pois essa conduta viola diversos direitos e garantias fundamentais, ficando este comportamento distante da correta aplicação da justiça.

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Sobre a proporcionalidade, aliás, lúcido o voto proferido pelo então Ministro Eros Grau, no Supremo Tribunal Federal{C}[9]

4. Conclusão

 Diante de toda problematização exposta ao longo deste artigo, se conclui ser absolutamente inaceitável que um Estado Democrático de Direito cada vez mais distante do sistema inquisitório se coadune com uma postura enganosa. Retornando dessa maneira, a um Estado policialesco, em que “os fins justificam os meios”.

Observando o atual sistema do ordenamento jurídico brasileiro, é de suma importância que a conduta dos agentes estatais, não confrontem direitos e garantias fundamentais.

Ademais, importante ressaltar que o Estado se equivale de inúmeros meios legais para devida obtenção de provas, como por exemplo, a emissão de mandado de busca e apreensão, realização de interceptação telefônica , etc, que realizam eficazmente a persecução penal.

Portanto, conclui-se, que, os princípios e garantias constitucionais, principalmente se tratando de matéria penal, devem prevalecer em detrimento das posturas expostas ao longo deste artigo e, todos os interesses em jogo – principalmente os do réu – superam muito a esfera do ‘privado’, da justificação de violações a garantias constitucionalmente previstas, sendo inadmissível a incriminação decorrida da prova colhida a qualquer custo.

 

5. Bibliografia

QUEIROZ, Paulo. A propósito da súmula 145 do STF. Disponível em: <http://www.pauloqueiroz.net/a-proposito-da-sumula-145-do-stf/> Acesso em: 28 de agosto de 2017;

BRASIL. Código Penal Brasileiro. 46ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.

DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de processo penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

 

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

 

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2012.

 

BRITO, Alexis Couto de. Agente infiltrado: dogmática penal e repercussão processual. In: Ana Flavia Messa; José Reinaldo Guimarães Carneiro. (Org.). Crime Organizado. 1ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

 

LOPES JR, Aury .Direito Processual Penal. 13ed. São Paulo : Saraiva, 2016.

 

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 8 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

 


[1] DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de processo penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 185-186.

[2] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 815-816

[3] (TRF 3.ª Região – Apelação n. 35261 – Processo n. 2007.60.00.008944-2 – Relator Desembargador Cotrim Guimarães – 2ª Turma – Data do Julgamento: 20/10/2009): “PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. ART. 33, CAPUT, E ART. 35 DA LEI N. 11.343/06. AGENTE INFILTRADO. FLAGRANTE PREPARADO. INOCORRÊNCIA. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. TRANSNACIONALIDADE. DOSIMETRIA DA PENA. CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES. RÉ MENOR DE 21 ANOS À ÉPOCA DOS FATOS. CONFISSÃO. REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA CORPORAL. IMPOSSIBILIDADE DE SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR PENA RESTRITIVA DE DIREITOS. RESTITUIÇÃO DO BEM. NEGADA. 1. Na espécie, não se verifica a ocorrência de flagrante preparado e tampouco de ilicitude da prova. 2. A figura do agente infiltrado é prevista em lei, sendo que mais precisamente no tocante ao crime de tráfico de entorpecentes, a Lei n. 11.343, de 23.08.2006, a prevê no inciso I do seu artigo 53, para fins de investigação do delito 3. O dolo de praticar o tráfico de drogas não foi provocado nos agentes pelo investigador, inexistindo qualquer indício, nos autos, que infirme esta conclusão. 4. O artigo 33, caput, da Lei n. 11.343/06, trata de crime de ação múltipla, para cuja configuração basta a realização de qualquer um dos núcleos verbais. Na hipótese, pode-se vislumbrar, ao menos, a realização dos verbos “expor a droga a venda”, “importar”, “transportar” e “trazer consigo”, situação que afasta a aplicação da Súmula n. 145 do STF [...]”.

[4] BRITO, Alexis Couto de. Agente infiltrado: dogmática penal e repercussão processual. In: Ana Flavia Messa; José Reinaldo Guimarães Carneiro. (Org.). Crime Organizado. 1ed. São Paulo: Saraiva, 2011, v. 1, p. 265.

[5] LOPES JR, Aury .Direito Processual Penal. 13ed. São Paulo : Saraiva, 2016, p. 43

[6] 4 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 8 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 596.

[7] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 63.

[8] BBADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2012. p. 43

{C}[9]{C} -27SSTF, HC n. 95.009-4/SP, Pleno, Rel. Min. Eros Grau, j. 06/11/2008, m.v., itens 34 e 35 do voto. Ressalta-se o seguinte trecho, cuja citação deve ser objeto de reflexão: “[...] esse falso princípio [da proporcionalidade] estaria sendo vertido na máxima segundo a qual ‘não há direitos absolutos’. E, tal como tem sido em nosso tempo pronunciada, dessa máxima se faz gazua apta a arrombar toda e qualquer garantia constitucional(...) E assim se dá o esvaziamento do quanto construímos ao longo dos séculos para fazer, de súditos, cidadãos. [...] Primeiro essa gazua, em seguida despencando sobre todos, a pretexto da ‘necessária atividade persecutória do Estado’, a ‘supremacia do interesse público sobre o individual’. [...] Esta Corte ensina (HC 80.263, relator Ministro ILMAR GALVÃO) que a interpretação sistemática da Constituição ‘leva à conclusão de que a Lei Maior impõe a prevalência do direito à liberdade em detrimento do direito de acusar’. Essa é a proporcionalidade que se impõe em sede processual penal: em caso de conflito de preceitos, prevalece o garantidor da liberdade sobre o que fundamenta sua supressão. A nos afastarmos disso retornaremos à barbárie” (grifou)

 

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Sobre a autora
Gabriela R. Vasconcellos

Academica de Direito pela univerisdade José do Rosário Vellano; Estagiária pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais; Estagiária da Defensoria Publica do Estado de Minas Gerais - Comarca de Alfenas;

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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