"Se o passado não tem nada para dizer ao presente, a história pode permanecer adormecida, sem incomodar, nos guarda-roupas onde o sistema guarda seus velhos disfarces. O sistema esvazia nossa memória, ou enche a nossa memória de lixo, e assim nos ensina a repetir a história em vez de fazê-la. As tragédias se repetem como farsas, anunciava a célebre profecia. Mas, entre nós, é pior: as tragédias se repetem como tragédias." Eduardo Galeano[2].
- Introdução:
O ‘Homem sábio’, homo sapiens, colonizou o Planeta Terra e hoje, busca formas de viver em outros planetas. Muitos estudiosos tentam explicar o fato do ser humano viver em comunidade. Os filósofos, ‘amantes da sabedoria’, especialmente os da antiguidade passavam a vida estudando e discutindo sobre uma diversidade de coisas, um dos temas preferidos era o Homem.
Para Platão a sociabilidade é uma consequência da corporeidade, e dura apenas enquanto as almas estiverem ligadas ao corpo físico.
Aristóteles pensava diferente, que o Homem é um "animal político", sendo necessário criar vínculos sociais para satisfazer suas próprias necessidades e vontades. É a natureza do homem que o impulsiona a querer associar-se e interagir com os demais. Concorda com essa ideia São Tomás de Aquino[3].
Segundo Marx o homem é por natureza um animal social, pois ele não pode ser privado de estar em sociedade.
Há uma gama de teorias contratualistas que buscam explicações para o impulso associativo do homem, corifeus: Spinoza, Hobbes, Locke, Leibnitz, e Rousseau. Há, no entanto, um ponto em comum entre eles: negam o impulso associativo natural, concluindo que somente a vontade humana justifica a existência em sociedade. A sociedade, portanto, é uma criação humana e se tem sua base firmada em um contrato, que pode ser alterado ou desfeito.
Analisando este cenário ensina Paulo Queiroz[4]:
A vida em sociedade, precisamente porque assim o é, está sujeita a uma multiplicidade de regras de convivência, que surgem naturalmente das múltiplas interações sociais que nela se processam. Com efeito já por ocasião do nascimento, ou mesmo antes disso, durante a gestão, sofremos, indefesos, e de forma inevitavelmente autoritária, os efeitos da socialização, que decorre do convívio familiar, mais tarde, e simultaneamente a essa socialização primária, seremos submetidos à socialização escolar, do trabalho, do esporte, da religião, da moral, da imprensa, da convenção social etc.
O historiador Sérgio Buarque de Holanda publicou em 1.936 um dos mais consagrados livros que retratam a cultura, e o processo de formação da sociedade brasileira, Raízes do Brasil. Sérgio Buarque[5] desenvolve o conceito do homem cordial, característica do brasileiro de hospitaleiro, generoso, alegre e festeiro. Mas que traduz na confusão entre espaços públicos e privados:
Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial”, do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos.
Alberto Carlos Almeida[6]analisando o brasileiro relaciona Sérgio Buarque de Holanda e DaMatta:
Pode ser o jeitinho, pode ser o ‘você sabe com quem está falando?’, a vítima é sempre o tratamento geral e impessoal. As vítimas são a lei e a norma. Não por acaso, DaMatta compara o Brasil com os Estados Unidos. É possível ter uma sociedade liberal em que os homens se concebem como desiguais? As leis, o sistema judiciário e a ética anglo-saxã importada consagram o império da lei. A forma pela qual os brasileiros são socializados consagra a desigualdade e as técnicas para burlar a lei. E esse, segundo DaMatta, é um dos grandes dilemas do país.
Dom Fernando José de Portugal, ministro-assistente do gabinete do príncipe regente Dom João, criou em 01 de abril de 1.808 órgão da Justiça Militar no Brasil, o Conselho Supremo Militar e de Justiça[7]:
Tinha por função julgar crimes de natureza civil e militar, mantendo, além disso, um caráter consultivo, posto que a Coroa portuguesa submetia a seu julgamento diferentes questões administrativas, como o reconhecimento de serviço de guerra, a outorga de condecorações e até mesmo o aumento de soldo de praças e de oficiais.
A primeira Constituição do Brasil não mencionou a Justiça Militar, mas a segunda, primeira da República cria o Supremo Tribunal Militar em seu Artigo 77[8]:
Art. 77 - Os militares de terra e mar terão foro especial nos delitos militares.
§ 1º - Este foro compor-se-á de um Supremo Tribunal Militar, cujos membros serão vitalícios, e dos conselhos necessários para a formação da culpa e julgamento dos crimes.
§ 2º - A organização e atribuições do Supremo Tribunal Militar serão reguladas por lei.
Foi oMarechal, e Presidente da República Floriano Vieira Peixotoquem regulamentou o Supremo Tribunal Militar em 1.893[9]:
Mas somente através do Decreto nº 149, de 18 de julho de 1893, assinado por Floriano Peixoto, foi organizado o Supremo Tribunal Militar, incumbido de “julgar em segunda e última instância todos os crimes militares, como tais capitulados na lei em vigor”, assim como de “estabelecer a forma processual militar enquanto a matéria não for regulada por lei” (art. 5º).
A Justiça Militar esteve presentenas demais Constituições que o Brasil promulgou, em 1.946 recebeu o nome de Superior Tribunal Militar. No período ditatorial, com o movimento político-militar ocorreu especial ampliação do poder jurisdicional militar[10]:
A partir do movimento político-militar de abril de 1964, e especificamente do Ato Institucional nº 2 (AI-2), de 27 de outubro de 1965, ampliou-se o poder jurisdicional da Justiça Militar. O artigo referente à competência do STM para processar e julgar civis, nos casos determinados pela lei, em crimes contra as instituições militares, tradicionalmente repetido nas constituições republicanas, sofreu uma significativa modificação, pois o tribunal não mais cuidaria do julgamento de crimes contra a “segurança externa”, e de crimes contra a “segurança nacional”, noção mais genérica que englobava a idéia de ameaça interna. Ao STM foi atribuída a competência para o julgamento dos governadores de estado e de seus secretários nesses mesmos crimes, jurisdição que cabia anteriormente aos tribunais de justiça dos estados. O AI-2 dispôs ainda sobre a composição do STM, que passou a ser constituído de 15 membros vitalícios, nomeados pelo presidente da República depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal. Do total de juízes, três deveriam ser escolhidos entre os oficiais generais da ativa da Marinha, quatro entre os oficiais generais da ativa do Exército, três entre os oficiais generais da ativa da Aeronáutica e cinco entre civis. Pela primeira vez, tornava-se obrigatória a presença da Aeronáutica na composição da corte.
(...) No tocante à questão dos processos e julgamentos de civis, dos governadores de estado e de seus secretários, a Carta de 1967 admitia recurso ordinário ao STF, o que atenuava o caráter discricionário da antiga redação no AI-2.
Apesar do endurecimento do regime, traduzido de forma clara na edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968 – que promoveu radical transformação da ordem jurídica, suprimindo o habeas-corpus, introduzindo a possibilidade de se manter em prisão cidadãos sem acusação formal ou processo judicial, e retirando os atos do governo militar de apreciação judicial –, o STM não sofreu modificações na sua estrutura, competência ou organização. Entretanto, o artigo da Carta de 1967 que permitia recurso ordinário ao STF no julgamento de civis foi suprimido pela Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, e as decisões do STM, no tocante ao julgamento de civis, voltaram a ter caráter definitivo.
Durante o Estado Novo, Getúlio Dornelles Vargas referenda a Constituição de 1.937,escrita por Francisco Luis da Silva Campos,conhecida por Polaca,por ter inspiração na Constituição fascista da Polônia.
Fundado neste diploma Constitucional foi editado o Decreto-Lei N° 6.227/1944[11], Código Penal Militar.
O Código Penal Militar de 1.944 foi revogado pelo Decreto-Lei Nº 1.001/1969,Código Penal Militar[12], com base no Ato Institucional N° 5/1968[13], o mais duro golpe da ditadura militar contra a democracia, e a Constituição de 1.969[14].
Hoje depois de vinte nove anos da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988, conhecida por “Constituição Cidadã”[15] a Lei 13.491/2017 altera o Código Penal Militar, objeto deste estudo.
- A Mudança Legislativa:
O Projeto de Lei 5768/2016para alterar o Código Penal Militar foi proposto em 06 de julho de 2.016.Justifica o autor[16]na necessidade de garantir ao militar das Forças Armadas que seja processado e julgado perante a Justiça Militar da União, quando cometer crime atuando para Garantir a Lei e a Ordem.Acrescentando que estamos vendo o acirramento da utilização das Forças Armadas em greves das polícias militares e na ocupação de áreas urbanas dominadas por grupos criminosos.
Em momento nenhum fala acerca da Justiça Militar dos Estados nem da ampliação no elenco de crimes militares.
O projeto de lei seguiu em regime de urgência, e o relator, na mesma data da proposição, mencionando como sua razão principal, e a celeridade, os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, manifesta concordância, acrescentando cláusula de vigência até 31 de dezembro de 2.016[17].Aprovada a Redação Final do Relator, Deputado Júlio Lopes (PP-RJ)[18].
Importante trazer alguns debates de plenário[19], o Deputado Alberto Fraga declarou:
Quanto à situação de eventualidade das Forças Armadas, já que é dentro de certo período de tempo, nós poderemos até aceitar as condicionantes que estão sendo colocadas nesse projeto de lei. Mas, se isso fosse permanente, evidentemente eu discordaria. (grifo nosso).
O Deputado Federal Simão Sessim esclarece:
Nós votamos “sim” a essa urgência, por se tratar, também e principalmente, de matéria que vai refletir nas Olimpíadas, cuja abertura será daqui a 1 mês, no Rio de Janeiro.
O Deputado Federal OnyxLorenzone afirmou:
É importante essa salvaguarda, porque as Forças Armadas estão convocadas para atuar em áreas urbanas, onde não são preparadas para atuar. Por essa razão, tem que haver uma proteção para quem, especializado e preparado para agir em conflitos de alta gravidade, vai ser deslocado para tentar cobrir aquilo que as polícias não conseguem fazer nas nossas cidades. (grifo nosso).
O Deputado Federal Gonzaga manifesta:
Fomos surpreendidos por esse novo texto. Inicialmente fomos contra. Mas a construção feita com o autor, com o Governo e com a Oposição prevê a transitoriedade dessa lei, que valerá até 31 de dezembro.
Nesse sentido, o PDT vota “sim”, com o acordo de que o PL 2.014/03 continuará tramitando, inclusive com a discussão do regime de urgência para sua tramitação. (grifo nosso).
O Deputado Federal Aliel Machado afirma:
Respeitando a quase unanimidade do acordo, registramos que essa é uma votação importante, sim, que traz uma regra que valerá até o final do ano. E, conduzindo–se bem a discussão, é possível entender a importância da votação dessa apreciação de urgência. (grifo nosso).
Após a votação do pedido de urgência o Deputado Júlio Lopes usando a palavra se manifestou:
Essa é uma situação transitória, em função da realização, no Rio de Janeiro, das Olimpíadas e dos Jogos Paralímpicos e do maior deslocamento militar já feito no Brasil. Deslocar–se–ão para o Rio de Janeiro, Deputado Miro Teixeira, 23 mil homens das forças militares brasileiras. Essa excepcionalidade se dará até o dia 31 de dezembro de 2016, para que os militares possam exercer suas funções, dentre suas prerrogativas, na garantia da Justiça Militar. Assim foi acordado e acertado entre as Lideranças da Câmara e as lideranças militares, a pedido de S.Exa. o Presidente da República, a fim de se proteger não só o povo do Rio de Janeiro e aqueles que nos visitam, mas também as Olimpíadas, o patrimônio que foi construído, que ficará como legado do nosso País. (grifo nosso).
O Deputado Ivan Valente afirma:
Nós tínhamos um acordo, e o acordo era sensato, porque esta proposta vem em cima da seguinte situação: há as Olimpíadas; há a situação de calamidade pública no Rio; e, agora, como disse o DeputadoChico Alencar, há uma legislação de calamidade. Nós estamos correndo atrás do prejuízo.
O projeto apareceu ontem. E votaremos a urgência, votaremos o projeto para quê? Este é apenas umaspecto: retirar da Justiça Comum a competência de analisar o crime doloso contra a vida praticado em açãomilitar – hoje, ele é analisado pelo Tribunal do Júri – e passar para o Tribunal Militar.
Na verdade, o que se está fazendo aqui é uma exceção. Está se concedendo uma espécie de licença paramatar. Vejam: o agente público em ação está no estrito cumprimento do dever legal dele. Se ele tiver que fazerum enfrentamento e alguém morrer, ele vai dizer: “Estou no meu estrito dever”. Agora, se o ato for doloso,continua sendo assassinato. Então, por que ele vai ser julgado pela corporação?
A segunda questão é: as Forças Armadas já foram utilizadas várias vezes. Vejam como foi a ocupação dasfavelas na Rio 92, e depois, na Eco 92!
As Forças Armadas estão indo para a rua direto. Por que só agora se levantou essa questão? Não há por quê.
Portanto, a colocação que o Partido Socialismo e Liberdade quer fazer é a seguinte: este é um projeto deexceção, e não vale a pena. (grifo nosso).
O Deputado Marcos Reategui concorda:
É uma lei temporáriapara atender a um período excepcional, e, como tal, esta Casa tem que contribuir.(grifo nosso).
O Deputado Chico Alencar:
Vejam: esse projeto veio à luz às 18 horas de hoje para garantir segurança para inglês ver. O Rio de Janeironão quer segurança só para os Jogos Olímpicos. Isso é hipocrisia e maldade com a população. O legado será oda insegurança, que já existe hoje, com as pessoas morrendo e a Polícia Militar ficando inclusive desprestigiada,o que esse projeto corrobora.
Além de o militar considerar–se, como diz inclusive a justificativa, sem condições de atuar na rua; ele nãoestá acostumado com isso. Por isso, se cometer crime doloso contra a vida, tem que haver um Tribunal Militar?
Ora, se ele não está preparado para isso, vamos jogá–lo lá?
(...)
O nosso “não” é à pressa, inclusive, para se votar um projeto de tamanha repercussão em cima da perna.
Esta Câmara deveria ter, pelo menos, respeito para consigo mesma e deixar um tempo para análise.
“Não”, de jeito nenhum! Isso é engodo, mentira e desprestígio, inclusive para com os servidores da segurançapública. (grifo nosso).
O projeto foi aprovado no dia que foi apresentado e no dia seguinte, 07 de julho, para o Senado Federal[20].
Algumas constatações merecem destaque, a primeira é de que a Câmara dos Deputados aprovou o projeto a ‘toque de caixa’, no mesmo dia que foi apresentado, com pouquíssimo debate quanto ao tema de levar a Justiça Militar Federal os homicídios dolosos praticados por integrantes das forças armadas;verifica-se, também, que não ocorreu nenhuma discussão acerca da Justiça Militar dos Estados, nem da ampliação no elenco de crimes militares. Finalmente é notávela natureza excepcional, transitório dado ao projeto de lei que altera o Código Penal Militar. Nesse sentido a Nota Sobre a Lei N° 13.491/2017 da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Judiciária[21]:
Da ementa já se depreende que a matéria tratada tem relação com o foro para julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis, nada dispondo sobre ampliação do rol de crime militares.
No Senado Federal o projeto recebeu o N° 44, foi apresentado parecer pelo Presidente Fernando Collor e o Relator Pedro Chaves[22]. Em analise perfunctória o Artigo 125, §4° é citado como ressalvaa competência do Júri apenas nos casos de homicídio doloso praticado por militares dos Estados. A Lei 9.299/96 acrescentou o parágrafo único ao Artigo 9° do CPPM repetindo a regra constitucional e a Lei 12.432/2011 que acrescentou uma exceção, a regra geral, no caso de destruição de aeronave sem autorização para sobrevoar o espaço aéreo brasileiro e considerado hostil, afirmando:
Verifica-se, portanto, que atualmente o próprio CPM jáexcepciona a regra de competência do júri em relação aos militares da União,uma vez que eventual destruição de aeronave será feita por militaresintegrantes da Aeronáutica. O projeto em análise, por sua vez, acrescentaoutras hipóteses em que a competência da Justiça Militar da União deveráprevalecer.
Manifestando, entretanto, contra a cláusula de vigência, especialmente porque já ultrapassada quando do relatório, no dia 16 de agosto de 2.017. Relatório aprovado em 14 de setembro de 2.017 pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional[23].
A Emenda 01 de Plenário da Senadora Vanessa Grazziontin que trazia prazo para a vigência da Lei, como proposto na Câmara dos Deputados, foi rejeitada pelo parecer 77 de 27 de setembro de 2.017[24]. RodrigoFoureaux[25]:
Verifica-se que o parecer pela rejeição não mencionou o fato da proposta enviada ao Senado pela Câmara dos Deputados já conter previsão que a tornava lei temporária, mas com efeitos até o dia 31 de dezembro de 2016.
O projeto foi aprovado em 10 de outubro de 2.017[26], sendo encaminhado para sanção no dia seguinte[27].
Não ocorreram discussões no Senado Federal acerca da ampliação da competência da Justiça Militar dos Estados nem do rol de crimes militares, além de manter a natureza transitória da alteração legislativa.
O Ministério Público Federal manifestou contra a aprovação da Lei, como afirma Amanda da Mata[28]:
O Ministério Público Federal se posicionou contra o texto. Para o órgão, a medida seria “inconstitucional” por extrapolar a competência estabelecida na Constituição Federal, além de contrariar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e posições firmadas pela Comissão de Direitos Humanos da Nações Unidas, que fixam a atribuição da Justiça Militar apenas para processar e julgar casos que envolvam ofensa às instituições propriamente militares.
A Lei foi sancionada em 16 de outubro de 2.017 com o veto presidencial ao Artigo 2°[29] com a seguinte mensagem[30]:
“As hipóteses que justificam a competência da Justiça Militar da União, incluídas as estabelecidas pelo projeto sob sanção, não devem ser de caráter transitório, sob pena de comprometer a segurança jurídica. Ademais, o emprego recorrente das Forças Armadas como último recurso estatal em ações de segurança pública justifica a existência de uma norma permanente a regular a questão. Por fim, não se configura adequado estabelecer-se competência de tribunal com limitação temporal, sob pena de se poder interpretar a medida como o estabelecimento de um tribunal de exceção, vedado pelo artigo 5o, inciso XXXVII da Constituição”.
Ao analisar a Lei 13.491/2017 afirma Rodrigo Foureaux[31]:
Na justificativa do mencionado projeto de lei, em nenhum momento, menciona a ampliação da competência, tendo como foco, exclusivamente, o julgamento dos militares das Forças Armadas nos crimes dolosos contra a vida de civil, em situações específicas, que serão detalhadas a seguir.
Nota-se, portanto, que em nenhum momento houve menção à ampliação da competência da justiça militar, nem houve debates no Congresso Nacional.
Nas diversas notícias publicadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em seus sites, constam somente informações e discussões dos parlamentares acerca da transferência do julgamento de militares das Forças Armadas, em determinadas situações, para a Justiça Militar da União.
Logo, é possível concluir que houve falha na técnica legislativa.
Isso porque durante os debates discutiram somente a questão do julgamento dos militares das Forças Armadas nos crimes dolosos contra a vida de civis pela Justiça Militar da União, sendo que a alteração que ocorreu é profundamente significativa e, historicamente, a tendência sempre foi excepcionar e limitar a competência da Justiça Militar.
(...)
A nova alteração legislativa visou na verdade, somente, transferir a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida de civil cometidos por militares das Forças Armadas, nas hipóteses delineadas no § 2º do art. 9º do Código Penal Militar, como nas operações de garantia da lei e da ordem; cumprimento de atribuições que forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa, bem como nas missões militares.
- “A Dor e a Delícia de ser o que é”[32]: Justiça Militar
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988estabelece no Artigo 37 os Princípios que regem a Administração Pública, direta ou indireta, de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, e dos Municípios, dentre os quais o da Eficiência.
O professor Matheus Carvalho[33]ao tratar deste Princípio Constitucional ensina:
Este princípio se tornou expresso com o advento da EC 19/98, não obstante o dever de atuar buscando a obtenção de resultados positivos seja anterior à alteração constitucional. Eficiência é produzir bem, com qualidade e com menos gastos. Uma atuação eficiente da atividade administrativa é aquela realizada com presteza e, acima de tudo, um bom desempenho funcional. Buscam-se sempre melhores resultados práticos e menos desperdício, nas atividades estatais, já que quem ganha com isso é toda a coletividade. Mesmo antes da alteração imposta ao texto da Constituição Federal, o Art. 6°, §1° da Lei 8.987/95 já definia que a eficiência era considerada principio básico para que a prestação de serviços públicos fosse considera adequada. Dessa forma, a prestação dos serviços públicos, seja feita mediante execução direta do Estado ou por delegação a particulares, mediante a celebração de contratos de concessão ou permissão de serviços, deve respeitar a busca pela eficiência, como forma de satisfazer as necessidades da sociedade que usufrui destas atividades.
Inicialmente, quando da alteração constitucional, a doutrina tratava desse princípio como sendo muito fluido, configurando um verdadeiro desabafo do constituinte derivado. Contudo, o entendimento mais moderno é o de que a própria CF concretiza esse princípio, sendo ele uma norma de aplicabilidade imediata. com efeito, toda a atuação estatal deve-se pautar na busca pela obtenção de resultados positivos. Nesse sentido, Maria Sylvia Zanella De Pietro define que “O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público”.
(...)
Por fim, uma prestação de serviços eficiente deve garantir uma célere solução de controvérsias, razão pela qual, a eficiência está diretamente ligada ao princípio da celeridade nos processos administrativos, inserido na Constituição da República, em seu Art. 5°, LXXVIII que dispõe que “ a todos no âmbito judicial e administrativo são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Dessa forma, pode considerar-se que a rápida solução das controvérsias enseja uma eficiência na execução das atividades estatais, contribuindo para a satisfação dos interesses da sociedade.
Celso Antônio Bandeira de Mello[34] ensina que pelo respeito ao Princípio da Impessoalidade:
No princípio da impessoalidade se traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia.
O Conselho Nacional de Justiça apresentou Diagnóstico da Justiça no Brasil. No tocante a Justiça Militar Federal e Estadual presente nos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, informam[35]:
A competência dos órgãos judiciais militares é restrita, excepcional e funcional, e que, portanto, deve estar limitada às infrações cometidas dentro do âmbito estritamente castrense pelo pessoal militar;
Necessidade de se proceder à especialização da Justiça Comum Estadual para a instrução e julgamento de processos de competência militar, fato este que, por si só, reduzirá substancialmente o custo por processo, o que poderá importar na extinção dos Tribunais de Justiça Militar Estaduais, com a consequente criação de Câmaras Especializadas, mas não necessariamente exclusivas dentro da estrutura dos Tribunais de Justiça dos Estados;
Relativamente a produtividade dos magistrados[36] brasileiros é impressionante a distorção existente entre os juízes da Justiça Comum e da Justiça Militar:
A Justiça Militar Estadual foi responsável por 105 casos, a Auditoria Militar da União por 40, A Justiça estadual por 1.804 e os tribunais superiores por 7.703.
Tratou das despesas com a Justiça Militar Estadual e a Justiça Militar da União, o CNJ apresenta a seguinte informação respectivamente:
Despesa Total: R$ 141.309.519 (Recursos Humanos R$ 132.339.046 - 93,7% - Outras Despesas R$ 8.970.474 - 6,3%). Apenas 41 magistrados.
Despesa Total: R$ 509.604.256 (Recursos Humanos R$ 436.397.208 - 85,6% - Outras Despesas R$ 73.207.048 - 14,4%). Apenas 15 ministros e 39 magistrados.
A Justiça Militar de Minas Gerais é a mais cara do Brasil[37]:
Cada magistrado da corte mineira custa, em média, R$59,6 mil por mês. Ao mesmo tempo, a Justiça Militar é a que julga menos processos proporcionalmente a outros tribunais do país: 17 vezes menos do que um juiz federal.
Uma reportagem divulgada em 2.012 afirma que o Tribunal de Justiça Militar estadual em Minas Gerais consome R$ 35 milhões por ano tem sua existência questionada pelo Conselho Nacional de Justiça por ser cara e ter baixa produtividade[38].
Segundo dados da instituição, em 2011 os magistrados receberam apenas 445 novos processos. Chega à mesa de cada um dos 13 juízes um ou, no máximo, cinco processos por dia. Levando-se em conta o orçamento anual e a demanda, cada processo custaria em média R$68 mil.
Comparando-se à Justiça comum, Minas recebeu, só em 2011 quase 4 mil processos.
No mês passado, 114 processos foram distribuídos no TJ Militar para as duas instâncias. Dividindo esse número pelos 20 dias úteis é como se chegassem às mãos dos 13 juízes 4,5 casos por dia.
No Rio Grande do Sul o promotor de justiça João Barcellos denunciou a Justiça Militar Estadual por nepotismo, baixa eficiência e alto custo[39]:
Barcellos também denunciou que o Tribunal de Justiça Militar tem baixo volume de serviço e um orçamento superior às necessidades. Em 2003, por exemplo, o orçamento era de R$ 16 milhões, e o valor vem aumentando, tanto é que a previsão para o ano que vem é de R$ 24 milhões.
O promotor destacou que enquanto cada juiz militar — são quatro coronéis e três civis atuando no órgão — aprecia até três processos por mês, no Tribunal de Justiça do Estado cada magistrado aprecia até 300 processos. O promotor disse que, devido a essa situação, muitos crimes acabam prescrevendo.
Em Minas Gerais duas tentativas foram feitas para acabar com o Tribunal de Justiça Militar sendo a última tentativa através de uma Proposta de Emenda Constitucional que foi rejeitada pela Comissão de Constituição e Justiça sob a alegação que apenas o Tribunal de Justiça de Minas Gerais poderia propor seu fim[40].
No Rio Grande do Sul foram cinco propostas, sendo que uma PEC tramita desde 2.015.
O CNJ apresenta informações sobre a Justiça Militar Estadual[41]:
Os Índices de Produtividade dos Magistrados (IPM) e dos Servidores da Área Judiciária (IPS-Jud) estão diminuindo desde 2012. Em 2015, o IPM foi de 105 processos, o que significa que cada magistrado baixou, em média, 105 processos no ano, conforme Gráfico 8.16. O maior IPM no período foi de 177 processos baixados por magistrado e ocorreu no ano de 2012.
A carga de trabalho, índice que mede o número de procedimentos pendentes ou resolvidos no ano (processos, recursos internos e incidentes) por magistrado e servidor, reduziu a 43,8%, desde 2011.
A carga de trabalho líquida e a taxa de congestionamento líquida são apresentadas de forma inédita neste relatório. A diferença para os índices totais é que estão excluídos do acervo, os processos suspensos, os sobrestados ou em arquivo provisório.
Os resultados das duas maneiras de cálculo da carga de trabalho resultaram em valores próximos, devido a pequena quantidade de processos suspensos, sobrestados ou em arquivo provisório. A carga de trabalho líquida apresentou um quantitativo de 185 processos por magistrado e de 35 processos por servidor.
Verifica-se que os índices de produtividade dos servidores da área judiciária por tribunal é de 19 a 21 processos baixados por servidor, conforme demonstra o Gráfico 8.19.
A produtividade dos magistrados é de: 147 processos baixados no TJMSP, 108 no TJMMG e 59 no TJMRS, conforme Gráfico 8.17.
As matérias mais demandadas na Justiça Militar Estadualsão:
Direito Processual Civil/Trabalho: atos processuais, intimação e notificação: 46%;
Direito Processual Penal: execução penal/pena privativa de liberdade: 3%;
Outros: 51%.
Em 2.013 o Conselho Nacional de Justiça iniciou estudo acerca da necessidade da existência da Justiça Militar. O site Consultor Jurídico[42] apresentou artigo sobre o tema:
Uma correição extraordinária da Corregedoria-Geral do TJM-MG revelou que 274 de um total de 330 processos criminais em trâmite na 2ª auditoria da Justiça Militar do estado prescreveram. Somente em 2012 os gastos do governo mineiro com o tribunal militar local foram de R$ 43,4 milhões. Segundo o conselheiro Bruno Dantas, neste mesmo ano cada processo do TJM-MG custava em torno de R$ 68 mil.
(...)
Embora o debate tratasse da Justiça Militar estadual, a eficiência e a relevância da Justiça Militar como um todo acabou também sendo questionada. O conselheiro Bruno Dantas, responsável por apresentar a proposta para se discutir as atividades da Justiça Militar estadual em novembro, novamente mencionou os custos de manutenção do Superior Tribunal Militar, em torno de R$ 300 milhões anuais, e o baixo número de processos julgados se comparados com os demais tribunais superiores. Joaquim Barbosa classificou como “escandalosos” os números e os comparou com a produção do próprio Supremo Tribunal Federal. “É um indicativo de um verdadeiro descalabro financeiro”, disse. O STM julgou apenas 54 casos em 2011.
A Justiça Militar dos estados está presente em todo território nacional, mas apenas três unidades federativas possuem Tribunais Militares: Minas Gerais São Paulo e Rio Grande do Sul. Os três tribunais, que juntos têm 42 juízes, tiveram um total de 7.812 processos baixados em 2011.
O alto índice de prescrição no Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais resultou em censura a dois Juízes[43].
Ruchester Marreiros Barbosa[44] ao tratar da competência da Justiça Federal afirma:
Todo este arcabouço de interpretações sobre a aplicação do art. 109, IV da CR denota claramente que a interpretação que se realiza da competência da justiça federal é restritiva, não se permitindo a ampliação, sequer por via reflexa ou indireta, que amplie a sua competência, como deixou claro o Min. Marco Aurélio em voto recentíssimo no bojo do HC 105461/SP 1ª Turma, j. 29.3.2016.
A Constituição da República Federativa do Brasil trata da Justiça Militar nos Artigos 122 a 124[45], sempre em caráter subsidiário, restrito. A Constituição italiana[46] segue a mesma lógica prevendo a aplicação da Justiça Militar apenas para militares das forças armadas.
Tratamento idêntico é dado pelo Supremo Tribunal Federal a Justiça Militar, à competência da Justiça Militar[47]:
● Interpretação restritiva da competência da Justiça Militar
"Consoante o enunciado n. 298 da Súmula do STF 'o legislador ordinário só pode sujeitar civis à Justiça Militar, em tempo de paz, nos crimes contra a segurança externa do país ou as instituições militares'. Certo é que a legislação infraconstitucional que fixa a competência da Justiça Militar deve ser interpretada conforme a Constituição, de modo a dar concretude aos direitos e garantias fundamentais, especialmente o direito ao juízo natural e a vedação do julgamento de exceção. Com efeito, o julgamento pela Justiça Militar traz ao acusado maior carga restritiva de direitos, acarretando um ônus mais gravoso do que o constrangimento de ser processado pela Justiça Comum Federal. Em razão disso, a norma do artigo 9º, III, 'a', do Código Penal Militar deve ser interpretada restritivamente. Assim, em tempos de paz, o civil será processado e julgado perante a Justiça Militar quando cometer um crime que ofenda diretamente a segurança nacional". (RHC 118030, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgamento em 19.8.2014, DJe de 12.9.2014)
Analisando a produção normativa e as decisões da Corte Constitucional brasileira Rodrigo Foureaux[48] afirma:
O legislador e o Supremo Tribunal Federal sempre trataram a competência da Justiça Militar como restritiva.
No mesmo sentido considerando a competência restritiva da justiça militar o professor Afrânio Silva Jardim[49]:
Note-se que a melhor interpretação da citada norma constitucional deve ser restritiva, pois a justiça militar tem um sentido de competência especial, sendo exceção em nosso sistema constitucional.
- Democracia e a Polícia Militarizada:
Túlio Lima Vianna[50] professor da Universidade Federal de Minas Gerais ao tratar da militarização policial, ensina:
“O que a gente quer dizer com a desmilitarização da policia?”, questionou Vianna ao abrir sua participação, explicando que, mais do que mudanças de procedimento e organização, o que está em jogo na bandeira da desmilitarização é a transformação da lógica de como a sociedade transfere responsabilidades à polícia: “O problema é da estrutura do militarismo. A lógica é treinar soldados pra guerra, temos um inimigo a ser combatido. Um cidadão não pode ser visto como um inimigo. O Estado deveria, antes de tudo, preservar direitos”.
O professor lembrou que, a partir dessa lógica militarista, a formação policial se dá de forma completamente brutal e violenta, desrespeitando inclusive os próprios policiais e tendo impactos diretos sobre o cotidiano violento de nossas cidades. “O treinamento da policia militar é feito para ser violento. Com os rituais próprios do militarismo, uma das grandes estratégias é humilhar aquele individuo que está entrando. Ele aprende desde cedo que tem um valor que tem que ser respeitado: a hierarquia. Ele é treinado para cumprir ordens, não para garantir direitos”, explicou, complementando apontando que “a sociedade opta que se cumpram ordens sem refletir sobre elas. Nós pagamos a policia pra ser isso. Como eu vou exigir que esse sujeito não seja violento com um suspeito? Esse individuo tem todos seus direitos desrespeitados, ele pode ser humilhado pelo superior hierárquico dele a qualquer momento”.
Este tipo de preparação leva a que o policial encare os cidadãos, que deveria proteger, como inimigos. “Eu que sou um cidadão de bem, eu que sou autoridade, se nem meu chefe tem que me respeitar, por que eu vou respeitar um ‘vagabundo’? Quem está abaixo do soldado na hierarquia militar? Nós, os civis. Abaixo dos civis, somente os ‘bandidos’, ‘marginais’”, prosseguiu Vianna. “Tudo que ele aprendeu lá ele vai jogar no preso. Me respeite que eu sou autoridade. A estrutura do militarismo é planejada pra isso. Quando a gente pensa nas forças armadas, isso faz mais sentido. Guerra é um estado de permanente tensão, você pode estar em minoria, sendo atacado, etc. A policia não é um estado de guerra permanente, não deveria ser. Não estamos lidando com inimigos, estamos lidando com cidadãos”. (...)
Outro aspecto bastante importante ressaltado por Túlio Vianna é a necessidade de existir um controle externo e independente das forças policiais, acabando com a ridícula e absurda situação atual, na qual existem tribunais específicos para a polícia, que na prática julga e investiga seus próprios desvios. “Se for assim eu também vou querer uma justiça universitária se for acusado de algo, imagina que beleza ser julgado por meus pares”, brincou o professor. “Fiscalização interna e nada é a mesma coisa”, resumiu.
“Temos duas policias que às vezes competem entre si. Quando pensamos em policia única, civil, estamos falando de economia de gastos públicos também. O policial teria carreira, perspectiva de trabalho, como é em qualquer país do mundo. Não temos que inventar nada, na verdade o nosso modelo que é inventado”, prosseguiu Vianna, ressaltando: “Inventado pela ditadura militar, diga-se de passagem. Para os militares era muito cômodo colocar a PM e submetê-la às forças armadas, e até hoje ela é subordinada ao Exército”.
Otenente coronel da polícia militar de São Paulo Adilson Paes de Souza[51] acrescenta:
As polícias, em especial a Polícia Militar, tratam atualmente parte da população brasileira como um potencial inimigo, assim como acontecia nos anos em que vigorou a ditadura militar no país (1964-1985). (...) "Eu creio que determinadas pessoas, com determinado histórico de vida, que vivem em determinadas regiões, onde o índice de criminalidade é alto, são tidas como potenciais inimigos da sociedade. Existe a lógica do conflito, do confronto", analisa o policial que criticou a violência policial em seu livro "O Guardião da Cidade".
"Com a dita redemocratização do país, o inimigo passou, não é mais o subversivo, passou a ser determinadas pessoas de determinadas classes sociais que habitam determinadas regiões do país ou determinadas regiões das grandes metrópoles. Houve essa transferência do inimigo interno".
Essas críticas fizeram com que o Conselho de Direitos Humanos das Organizações das Nações Unidas pedisse o fim da polícia militar no Brasil[52]:
O Conselho de Direitos Humanos da ONU pediu nesta quarta-feira (30) ao Brasil maiores esforços para combater a atividade dos "esquadrões da morte" e que trabalhe para suprimir a Polícia Militar, acusada de numerosas execuções extrajudiciais. Esta é uma de 170 recomendações que os membros do Conselho de Direitos Humanos aprovaram como parte do relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho sobre o Exame Periódico Universal (EPU) do Brasil, uma avaliação à qual se submetem todos os países. A recomendação em favor da supressão da PM foi obra da Dinamarca, que pede a abolição do "sistema separado de Polícia Militar, aplicando medidas mais eficazes (...) para reduzir a incidência de execuções extrajudiciais”.
Da mesma maneira a Comissão Nacional da Verdade quando apresentou seu relatório final, apontou 29 recomendações[53], dentre as quais a Desmilitarização das polícias militares; extinção da Justiça Militar dos Estados; Exclusão de civis da jurisdição da Justiça Militar Estadual.
- Conclusão:
Entendemos que a Lei 13.491/2017 é material e formalmente inconstitucional, e que para sua manutenção no ordenamento jurídico há que se fazer uma interpretação conforme a constituição.
Enquanto tramitou, o Projeto de Lei, em nenhum momento foi debatido a alteração no Inciso II, Artigo 9° do Código Penal Militar conforme alertamos no inicio deste estudo, e também Rodrigo Foureaux[54]:
Conforme demonstrado, em nenhum momento houve discussão acerca da ampliação da competência, tendo todos os debates girados em torno da competência da Justiça Militar da União para processar e julgar os militares das Forças Armadas nas situações previstas no § 2º do art. 9º, do Código Penal Militar.
O responsável pela redação atual do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar realizou a alteração em absoluto silêncio, sem provocar o debate.
Amandino Teixeira Nunes Júnior[55] ensinando sobre processo legislativo esclarece:
Conceito de processo legislativo:
A expressão processo legislativo, segundo a doutrina especializada, pode ser compreendida num duplo sentido: jurídico e sociológico. No sentido jurídico, consiste num conjunto de normas que disciplinam os atos e procedimentos a serem obedecidos pelos órgãos legislativos na criação das normas de direito. No sentido sociológico, consiste num conjunto de fatores reais que impulsionam e direcionam as atividades dos legisladores.
Assim, do ponto de vista jurídico, a Constituição Federal estabelece uma sequencia de atos e fases (iniciativa, emenda, discussão, votação, sanção ou veto, promulgação e publicação), visando à criação das espécies normativas previstas no Art. 59, que envolvem emendas constitucionais, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos, e resoluções.
O mestre José Afonso da Silva[56] ao falar sobre Processo Legislativo ensina:
O conjunto de atos (iniciativa, discussão, emenda, votação, sanção e veto) realizado pelos órgão legislativos visando a formação das leis constitucionais, complementares e ordinárias, resoluções e decretos legislativos.
A Constituição da República[57] em seus Artigos 64 e 65 estabelecem como fase obrigatória do processo legislativo a discussão:
Art. 64. A discussão e votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores terão início na Câmara dos Deputados.
Art. 65. O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar.
Rodrigo Foureaux[58]coloca como consequência da ausência de discussão a inconstitucionalidade:
No caso da alteração do inciso II, do art. 9º do Código Penal Militar, conforme exposto, restou claro que a alteração não foi, em nenhum momento, discutida, tendo sido aprovada sem os parlamentares terem conhecimento da alteração, incidindo em vício de vontade, pois a justificativa do projeto é silente e os parlamentares que apresentaram o projeto não provocaram a necessária discussão.
É possível falar que houve dolo negativo em não provocar o debate em tema de tamanha repercussão no país. Trata-se de aplicação de princípio geral de direito, consectário lógico da boa-fé objetiva que rege o dia a dia do operador do direito em todas as áreas.
Não se pode considerar o mau voto do parlamentar ou a desídia no exercício do voto como fundamento para perquirir a inconstitucionalidade de uma lei aprovada pelo Congresso Nacional, mas no caso salta aos olhos a violação ao art. 65 da Constituição Federal, em razão dos parlamentares que aprovaram a lei terem sido induzidos ao erro, em razão do dolo negativo.
O caso apresentado se assemelha à hipótese de contrabando legislativo ou caldas de lei.
O contrabando legislativo consiste na “inserção, por meio de emenda parlamentar, de assunto diferente do que é tratado na medida provisória que tramita no Congresso Nacional”, com o fim de que o assunto inserido através de um artigo seja aprovado sem o prévio conhecimento e debate por parte dos parlamentares. Essa prática é vedada pelo Supremo Tribunal Federal.
Joaquim Leitão Júnior leciona que “Caldas de lei ou contrabando legislativo são expressões equivalentes usadas pelo jurista Michel Temer, na hipótese em que num Projeto de Lei é acrescentado sorrateiramente um assunto que nada tem a ver com o projeto com o fim de não chamar a atenção.”
Gilmar Ferreira Mendes[59] ao escrever sobre o processo legislativo afirma que ele tem início quando “alguém ou algum ente toma a iniciativa de apresentar uma proposta de criação de novo direito”. E após o início, a segunda fase é a discussão:
Depois de apresentado, o projeto é debatido nas comissões e nos plenários das Casas Legislativas. Podem ser formuladas emendas (proposições alternativas) aos projetos. A emenda cabe ao parlamentar e, em alguns casos, sofre restrições.
Ana Paula de Barcellos[60] ao analisar a fase da discussão afirma:
Em várias ocasiões a Constituição prevê que as competências normativas de Casas Legislativas envolvem discutir e votar os temas que lhes são submetidos. A ideia de que deve haver uma discussão, e não apenas uma votação, pressupõe a apresentação de argumentos e contra-argumentos, que idealmente devem envolver razões e informações, acerca das propostas submetidas às Casas Legislativas.
Esse tema também foi analisado por Ademar Borges de Souza Filho[61]:
“A função primordial da jurisdição constitucional de garantir a higidez do sistema democrático exige uma postura mais ativa do Supremo Tribunal Federal em matérias relacionadas ao respeito ao devido processo legislativo, na medida em que essa questão se apresenta relevante para a definição da própria modelagem institucional no Estado Democrático brasileiro. Antes de decidir sobre o conteúdo das opções políticas manifestadas pelo legislador, cabe ao STF garantir que o processo de formação das leis seja aberto, plural, inclusivo e, na maior medida possível, catalizador do respeito aos direitos fundamentais. Há amplo espaço no Brasil para a implementação de um controle judicial mais estrito e criterioso sobre o respeito pelo Congresso Nacional às normas que disciplinam o processo legislativo. Um meio para fomentar a democracia nos espaços majoritários é a criação de estímulos ao aperfeiçoamento do modelo de deliberação parlamentar. E isso pode ser feito a partir do reforço ao controle jurisdicional do devido procedimento na elaboração normativa, que significa que “todo ato normativo deverá ser acompanhado de uma justificativa pública, e essa justificativa será apresentar, necessariamente, razões e informações sobre três temas específicos: (i) o problema que a iniciativa legislativa pretende enfrentar, (ii) os impactos esperados pela medida proposta e (iii) os custos dessa medida”.
Embora haja diversas concepções de democracia que disputam espaço no debate público, é razoavelmente consensual a visão de que as decisões em uma democracia demandam a apresentação de razões pelos participantes – isto é: a justificação de suas posições –, debate e deliberação acerca dessas razões. A defesa da existência de um direito constitucional difuso a um devido procedimento na elaboração normativa impacta o perfil do controle de constitucionalidade das normas. Isso pela simples razão de que as deficiências na deliberação – notadamente aquelas relacionadas à inexistência de justificativas para elaboração normativa – passam a caracterizar verdadeiras inconstitucionalidades formais, levando à invalidade da norma editada sem o respeito ao devido procedimento na elaboração normativa.
A Corte Constitucional Colombiana[62]decidiu que a principal função do Judiciário, no processo legislativo, é a de garantir as condições mínimas de deliberação sobre as medidas legislativas propostas no Congresso:
Este nivel de exigencia, debe insistir la Sala, no está fundado enunánimo formalista, sino que antes bien, busca preservar el sistema democrático, a través delestrictoacatamiento de lasreglasdelprocedimiento legislativo, em tanto condiciones que garantizanladeliberación que permite el debate vigoroso de laspropuestasenelCongreso, laprotección de losderechos de lasminorías y laidentidad entre lavoluntad de lascámaras legislativas y los textos jurídicos productos de la reforma constitucional. Si, como se há insistido, laactividaddelCongreso como constituyente derivado es, sindudaalguna, lacompetencia de mayor envergadura y seriedad que tiene a su cargo elórgano legislativo, es imperativo sostener que elcumplimiento de lasreglas mencionadas debeverificarse materialmente eneseámbito de producción normativa. Por lo tanto, corresponde a la Corte Constitucional efectuar um análisisrigurosodelcumplimiento de los requisitos de trámite, a fin de determinar si la reforma a la Carta es una expresióngenuina de lavoluntad democrática delCongreso.
A lei aprovada que tenha violado seu procedimento é considerada formalmente inconstitucional, neste sentido Gilmar Mendes[63]:
Os vícios formais afetam o ato normativo singularmente considerado, sem atingir seu conteúdo, referindo-se aos pressupostos e procedimentos relativos à formação da lei.
Os vícios formais traduzem defeito de formação do ato normativo, pela inobservância de princípio de ordem técnica ou procedimental ou pela violação de regras de competência. Nesses casos, viciado é o ato nos seus pressupostos, no seu procedimento de formação, na sua forma final.
Outro vício presente à Lei 13.491/2017 foi o veto ao Artigo 2° que desfigurou a essência da lei. O projeto de lei foi aprovado pelo Poder Legislativo com a natureza de Lei Excepcional ou Temporária,[64]e o chefe do Poder Excetivo ao vetar o Artigo 2°, deu a ela natureza permanente.
Lei excepcional ou temporária (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).
Art. 3º - A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 1984)
Cleber Masson[65] ao falar sobre a lei excepcional, e a lei temporária, afirma:
Lei penal temporária é aquela que tem a sua vigência predeterminada no tempo, isto é, o seu termo final é explicitamente previsto em data certa do calendário. É o caso da Lei 12.663/2012 ,conhecida como ‘Lei Geral da Copa do Mundo de Futebol de 2014”, cujo art. 36 contém a seguinte redação: “Os tipos penais previstos neste Capítulo terão vigência até o dia 31 de dezembro de 2014”.
Lei penal excepcional, por outro lado, é a que se verifica quando a sua duração está relacionada a situações de anormalidade. Exemplo: É editada uma lei que diz ser crime, punido com reclusão de seis meses a dois anos, tomar banho com mais de dez minutos de duração durante o período de racionamento de energia.
Essas leis são autorrevogáveis. Não precisam de outra lei que as revogue. Bata a superveniência do dia nela previsto (lei temporária) ou o fim da situação de anormalidade (lei excepcional) para que deixem, automaticamente, de produzir efeitos jurídicos. Por esse motivo, são classificadas como leis intermitentes.
Se não bastasse, possuem ultratividade, pois se aplicam ao fato praticado durante sua vigência, embora decorrido o período de sua duração (temporária) ou cessadas as circunstancias que a determinaram (excepcional). É o que consta do art. 3° do Código Penal.
O Supremo Tribunal Federal[66] ao analisar as leis excepcionais e temporárias decidiu:
Lei excepcional ou temporária não tem retroatividade. Tem ultratividade, em face da regra do art. 3° do Código Penal.
A Constituição da República Federativa do Brasil fala do veto pelo Presidente da República no Artigo 66[67]:
Art. 66. A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará.
§ 1º - Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto.
§ 2º O veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea.
§ 3º Decorrido o prazo de quinze dias, o silêncio do Presidente da República importará sanção.
§ 4º O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 76, de 2013)
§ 5º Se o veto não for mantido, será o projeto enviado, para promulgação, ao Presidente da República.
§ 6º Esgotado sem deliberação o prazo estabelecido no § 4º, o veto será colocado na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições, até sua votação final. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
Falando sobre o papel desempenhado na formação da lei pela possibilidade de sanção ou veto pelo Chefe do Poder Executivo ensina Gilmar Mendes[68]:
Os projetos de leis aprovados pelo Congresso Nacional, independentemente da iniciativa, serão submetidos ao Presidente da República, para sanção ou veto, total ou parcial, no prazo de quinze dias úteis.
O veto poderá fundamentar-se em contrariedade ao interesse público ou inconstitucionalidade. O veto parcial somente poderá incidir sobre a integralidade de artigo, parágrafo, inciso ou alínea, não podendo incidir sobre expressões ou palavras isoladas. A não manifestação do Presidente no prazo de quinze dias úteis do recebimento do projeto importará sanção - tácita (CP, art. 66).
O professor Marcelo Lessa Bastos[69] ensina:
Todavia, o veto parcial passou a ser utilizado na história política brasileira como instrumento de abuso do Poder Executivo, para, vetando palavras isoladas do texto legal, mudar-lhe completamente o sentido, acabando por desvirtuar o projeto de lei. E pior: para a derrubada do veto, era (como ainda é) exigido um quórum qualificado, o que dava ensejo a uma possibilidade de o Executivo legislar transversamente, através da desfiguração do projeto de lei, bastando que tivesse uma minoria que o apoiasse, impedindo a formação do quórum necessário à derrubada do veto e restauração do verdadeiro alcance do projeto desvirtuado. O veto parcial acabou sendo utilizado para fraudar a vontade do Poder Legislativo, usurpada pelo Presidente da República. O problema foi solucionado restringindo-se o veto parcial a texto integral de artigo, inciso, parágrafo ou alínea, impedindo-se o veto de palavras isoladas no texto legal.
Michel Temer[70] ao analisar o ensinou:
É impossível o veto aditivo ou restabelecedor, isto é, o veto que adicione algo ao projeto de lei ou restabeleça artigos, parágrafos, incisos ou alíneas suprimidas pelo Congresso Nacional.
(...)
Assim, o fundamento doutrinário que alicerça a concepção de que o veto parcial deve ter maior extensão suporta-se na ideia de que, vetando palavras ou conjunto de palavras, o Chefe do Executivo pode desnaturar o projeto de lei, modificando o seu todo lógico, podendo, ainda, com esse instrumento, legislar. Basta – como se disse – vetar advérbio negativo.
Data venia, não é bom esse fundamento, uma vez que: a) o todo lógico da lei pode desfigurar-se também pelo veto, por inteiro, do artigo, do inciso, do item ou da alínea. E até com maiores possibilidades; b) se isto ocorrer – tanto em razão do veto da palavra ou de artigo – o que se verifica é usurpação de competênciapelo Executivo, circunstância vedada pelo art. 2º da CF; c) qual a solução para ambas as hipóteses? O constituinte as previu: aposto o veto, retoma o projeto ao Legislativo e este poderá rejeitá-lo, com o quê se manterá o todo lógico da lei. Objetiva-se, entretanto: a rejeição do veto exige maioria absoluta e, por isso, uma minoria (1/3) poderá editar a lei que, na verdade, não representa a vontade do legislador. Responde-se: se isto suceder, qualquer do povo, incluídos os membros do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário, pode representar aos legitimados constitucionalmente (art. 103, I a IX, da CF) para a promoção da representação de inconstitucionalidade daquela lei em face de usurpação de competência vedada pelo art. 2º da CF.
No mesmo sentido, notando que o professor Temer entende inconstitucional o que o Presidente Temer fez, RodrigoFoureaux: [71]:
Nota-se, portanto, que o próprio Presidente da República entende ser inconstitucional vetar artigo de lei, por completo, de forma que o projeto de lei venha a se desconfigurar, conforme ocorreu com a Lei 13.491/2017.
É inconstitucional materialmente porque viola as normas constitucionais referentes à eficiência quando amplia a competência da Justiça Militar Federal e Estadual sabendo que é a mais cara[72] e a que menos produz no Brasil.
Afronta o princípio da isonomia, e da igualdade porque dá tratamento diferenciado a um grupo de pessoas levando em consideração apenas e tão-somente como discrímen a sua profissão, deixando de fora parcela considerável da segurança pública. Especialmente considerando que a atividade policial ostensivo-preventivo é considerada civil como destaca Eduardo Luiz Santos Cabette[73]:
Uma questão que pode, talvez, manter a competência da Justiça Comum nestes casos, é o fato de que a atividade de policiamento ostensivo – preventivo não é considerada “militar”, mas civil. Isso porque a atividade policial não tem natureza originalmente militar. Ela é integrante das atividades civis. Mir é enfático ao afirmar que “o policial está inserido em contexto diametralmente oposto ao do militar”. Dessa forma, considerando que o Policial Militar no exercício de policiamento ostensivo – preventivo não estaria em atividade de natureza militar, realmente a competência permaneceria na Justiça Comum.
Destacando a natureza civil da atividade exercida pelos policiais militares e os bombeiros militares a Nota sobre a Lei N° 13.491/2017 da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Judiciária[74]:
Salienta-se que os policiais militares e os bombeiros militares exercem atividade de natureza estritamente civil, na área de segurança pública, sem qualquer relação com atividade de natureza militar.
Celso Antônio Bandeira de Mello[75] alerta para a necessidade de encontrar justificativa no discrímen:
Em verdade, o que se tem de indagar para concluir se uma norma desatende a igualdade ou se convive bem com ela é o seguinte: se o tratamento diverso outorgado a uns for ‘justificável’, por existir uma ‘correlação lógica’ entre o ‘fator de discrímen’ tomado em conta e o regramento que se lhe deu, a norma ou a conduta são compatíveis com o princípio da igualdade, se, pelo contrário, inexistir esta relação de congruência lógica ou – o que ainda seria mais flagrante – se nem ao menos houvesse um fator de discrímen identificável, a norma ou a conduta serão incompatíveis com o princípio da igualdade.
Fábio Konder Comparato[76] nos apresenta magnifica lição acerca do princípio da isonomia:
Para se entender o verdadeiro sentido da lei, no enunciado do princípio da isonomia, é preciso recolocá-lo no quadro intelectual e político do século XVIII europeu, onde foi declarado, não se podendo, todavia, esquecer as suas matrizes históricas, situadas na experiência democrática ateniense.
Para Rousseau, o fundamento legitimador da sociedade política é o pacto de submissão de todos às deliberações que sejam do interesse comum, ou seja, a supremacia da vontade geral sobre as vontades particulares.
A vontade geral manifesta-se por meio de leis e só pode exprimir-se dessa maneira. A lei não é, pois, uma deliberação coletiva qualquer, mas somente aquela que ‘parte de todos para se aplicar a todos’.
Bem se vê, portanto, que o caráter geral da lei supõe uma igualdade absoluta dos cidadãos, tanto em sua votação, quanto em sua destinação.
Revela-se inconstitucional porque a depender de uma interpretação literal, ampliaria desproporcionalmente o elenco de crimes militares violando as regras e princípios constitucionais que excepcionam o militarismo e a justiça militar, Artigos 4°, II, VI, VII, e 124 da CRFB[77]:
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, contudo, atenta às peculiaridades de cada processo, tem adotado interpretação bem mais restritiva e excepcional para definir a competência da Justiça Militar para o julgamento de civis em tempo de paz. Interpretação que tem identificado a competência castrense apenas naqueles delitos que atentem contra as instituições militares. Veja-se a Súmula 298/STF: (...)".(HC 116780, Relatora Ministra Rosa Weber, Primeira Turma, julgamento em 22.10.2013, DJe de 18.12.2013).
No sentido de que o Constituinte originário não autorizou de forma ilimitada ao legislador ordinário ampliar o conceito de crime militar, ensina o professor Afrânio Silva Jardim[78]:
Desde logo estabelecemos uma premissa: quando o artigo 124 da Constituição Federal dispõe caber à Justiça Militar "processar e julgar os crimes militares definidos em lei", não está outorgando ao legislador ordinário “carta branca” para dispor arbitrariamente sobre o que seja crime militar. Aliás, o legislador ordinário sempre encontrará limites nas regras e princípios constitucionais.
Perscrutando o Estado Democrático de Direito e a existência da Justiça Militar Rômulo de Andrade Moreira[79] afirma:
Reafirmo o meu entendimento segundo o qual em um Estado Democrático de Direito não se admite uma Justiça Militar, ao menos em tempo de paz e para julgar crimes cuja tipificação já se encontra na legislação penal ordinária. Admito a Justiça Castrense, apenas e excepcionalmente, para julgar crimes militares próprios (ou propriamente militares), ou seja, aqueles tipificados exclusivamente na legislação especial militar e, obviamente, cometidos em tempo de guerra. Eis o meu posicionamento.
Aury Lopes Júnior[80] relaciona o desproposito da existência de tribunais militares em tempos de paz:
Noutra dimensão, os tribunais militares tampouco se justificam em tempo de paz, devendo ter sua atuação realmente limitada aos crimes militares, quando praticados por militares e diante de um real e peculiar interesse militar. Do contrário, é violação do juiz natural.
Defendemos, entretanto, que a alteração legislativa não ampliou o rol de crimes militares, lembrando a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello[81], e Hospers[82]:
As palavras são meros rótulos que sobrepomos às coisas,nenhum jurista pode reivindicar para si o direito de formular uma noção que seja a “verdadeira”, excludente de quaisquer outras, pois isto equivaleria a irrogar-se a qualidade de legislador, ou seja, a inculcar-se o poder (auto-atribuído) de delimitar o âmbito de abrangência de uma expressão que a lei não circunscreveu de modo unívoco.
Qualquer rótulo é conveniente na medida em que nos ponhamos de acordo com ele e o usemos de maneira conseqüente. A garrafa conterá exatamente a mesma substância, ainda que coloquemos nela rótulo distinto, assim como a coisa seria a mesma ainda que usássemos uma palavra diferente para designá-la.
Neste mesmo sentido, defendendo a aplicação da interpretação conforme a Constituição o professor Afrânio Silva Jardim[83]:
Desta forma, tendo em vista o nosso sistema constitucional, que torna expresso o chamado Estado de Direito Democrático, está ínsito no conceito de crime militar a tutela direta ou indireta de bens jurídicos que tenham relação com tudo o que se refere aos princípios peculiares às nossas Forças Armadas e, com algumas reservas, às Polícias Militares e Corpo de Bombeiros, que a Constituição insiste em dizer que são militares (sic), como forças de reserva.
Por tudo isso, a nova redação do inciso II do artigo 9º do Código Penal Militar, dada pela lei n.13.491/17, deve ser submetida à chamada interpretação “conforme a constituição”. Vale dizer, o nosso sistema constitucional deve condicionar e restringir a extração do sentido desta nova norma, de maneira a compatibilizá-la com o sistema jurídico e princípios da Lei Maior.
No caso, a interpretação literal do citado dispositivo legal poderia levar a conflitá-lo com os princípios constitucionais, inclusive com o princípio da “razoabilidade”. Nenhuma interpretação é boa quando nos leva a resultados desarrazoados, resultados incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, que não pode tolerar um conceito amplo e arbitrário de crime militar.
Sempre se entendeu que o conceito de crime militar exigia dois requisitos: a) tipicidade expressa no Código Penal Militar; b) que a conduta tenha sido praticada em uma das muitas circunstâncias previstas no seu artigo 9º. Assim, havendo tipicidade na lei comum e também no Código Penal Militar, tendo sido a conduta praticada em uma daquelas circunstâncias, predomina o especial sobre o geral: o crime é militar. Um dos pressupostos é que a conduta seja descrita também no Código Penal Militar.
(...)
Entretanto, para que haja uma compatibilização da nova regra com o nosso sistema constitucional, não basta que esta conduta tenha sido praticada nas “circunstâncias” do referido artigo 9º. É imperioso também que ela agrida, direta ou indiretamente, um bem jurídico próprio e peculiar da atividade e organização militar.
O Código Penal Militar não faz menção a militares estaduais, e do Distrito Federal, nem à Justiça Militar Estadual. Como bem lembroua Nota Sobre a Lei N° 13.491/2017 da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Judiciária[84], o Código de Processo Penal Militar em vigor disciplina o procedimento a ser seguido nos crimes previstos no Código Penal Militar, sem estender a legislação extravagante, em respeito à taxatividade, a excepcionalidade que a Bíblia Política[85] conferiu a justiça militar:
A norma que dispõe sobre a competência da Justiça Militar Estadual encontrasse prevista no art. 6º do Código de Processo Penal Militar, assim redigido:
Art. 6º Obedecerão às normas processuais previstas neste Código, no que forem aplicáveis, salvo quanto à organização de Justiça, aos recursos e à execução de sentença, os processos da Justiça Militar Estadual, nos crimes previstos na Lei Penal Militar a que responderem os oficiais e praças das Polícias e dos Corpos de Bombeiros, Militares.
A hermenêutica consentânea com o Estado Democrático de Direito, o princípio da razoabilidade, a exceção, e restrição da justiça militar é de que quando o crime não está previsto no Código Penal Militar, este não se aplica à justiça militar dos Estados. Em respeito à igualdade, as investigações ficam por conta das Polícias Civis e Federais e o processo e julgado pela Justiça Comum, Estadual ou Federal.
A diferença de tratamento é prevista na própria legislação militar, o Código de Processo Penal Militar citado, Artigo 6°, faz a ressalva que “no que forem aplicáveis” os processos da Justiça Militar Estadual, oficiais, e praças das Polícias e dos Corpos de Bombeiros Militares. Bem como a diferença de tratamento no tocante aos homicídios dolosos praticados por integrantes das forças armadas e os praticados por policiais militares e bombeiros militares, Artigo 9°, §§ 1° e 2°. No sentido do texto a Nota Sobre a Lei N° 13.491/2017 da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Judiciária[86]:
A primeira, é que as regras processuais aplicáveis aos militares das Forças Armadas não são necessariamente as mesmas aplicáveis aos militares dos Estados e do Distrito Federal, haja vista que a expressão “no que forem aplicáveis” deixa evidente que as normas processuais do CPPM somente se aplicam quando compatíveis com a natureza das atividades desenvolvidas pelos militares estaduais.
Por óbvio, crimes praticados por militares estaduais fora do serviço são crimes comuns, bem como os homicídios dolosos por eles praticados, e, portanto, compete a Justiça Comum processar e julgar e a Polícia Civil ou Federal investigar. No sentido do texto a Nota Sobre a Lei N° 13.491/2017 da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Judiciária:[87]
Por exemplo, um policial militar que agredir a esposa irá responder por lesão corporal no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, de competência Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Justiça Comum).
Em outro sentido, e demonstrando as contradições, e desproporções que essa inflação legislativa resulta, “tirinho de menor potencial no pé”, Eduardo Luiz Santos Cabette[88]:
Assim sendo, casos como os de Abuso de Autoridade, cuja pena máxima não ultrapassa 6 meses (Vide artigos 3º. e 4º. da Lei 4898/65) e lesão corporal culposa simples no trânsito (artigo 303, “caput” da Lei 9.503/07), dentre outras situações, não permitirão a aplicação aos militares dos benefícios da Lei 9099/95, o que não ocorreria na Justiça Comum, pois todo o trâmite se daria nos chamados “Juizados Especiais Criminais”.
Em análise de Convencionalidade[89] é possível afirmar que há violação ao Pacto de São José da Costa Rica que também estabelece como exceção, de forma restrita, a jurisdição militar. Ao analisar a investigação de homicídio pela polícia militar Ruchester Marreiros Barbosa[90] afirma:
A corte estabeleceu que a intervenção do foro militar na investigação desses fatos violou os parâmetros de excepcionalidade e restrição que devem caracterizar a competência desta jurisdição (a militar), tendo sido um dos fatores que culminou na impunidade do caso.
Por essa razão, a Corte interamericana concluiu que o Estado violou os direitos às garantias de liberdade (artigo 7.5), garantias judiciais (artigo 8.1) e à proteção judicial (artigo 25.1), todos do Pacto de San Jose da Costa Rica.
Entendeu que a intervenção militar em investigações de civis é medida excepcional, tendo o país violado as próprias leis internas quando permitiram que a investigação fosse militar, ao revés de uma investigação civil, conforme se depreende de trecho da sentença, ipsis literis:
Outrossim, insta salientar que esta Corte já estabelecera que, em razão do bem jurídico tutelado, a jurisdição militar não é o foro competente para investigar e, no caso concreto, processar e julgar os autores de violações de direitos humanos, e que a justiça militar somente pode julgar crimes militares ativos por seus órgãos se os delitos praticados tenham atingido bens jurídicos típicamente militares. Seguindo precedentes, a Corte conclui que tanto as atividades realizadas por militares durante a investigação e o processo do caso perante a justiça militar, incluindo-se os tribunais, representam um claro descumprimento da norma contida no artigo 2 da Convenção Americana, combinado com os artigos 8 e 25 do mesmo diploma. (tradução livre).
A Anistia Internacional e a Conectas Direitos Humanos[91]denunciaram o retrocesso que a Lei 13.491/2017 representa para os Direitos Humanos.
Rômulo de Andrade Moreira analisando a alteração legislativa de forma crítica e sensível aos princípios do Estado Democrático de direito afirma:[92]
Para concluir, reafirmo a minha discordância da alteração legislativa, pois entendo que quanto mais se restringir a competência da Justiça Militar (seja a da União, seja a dos Estados), melhor será para continuarmos lutando por um Estado Democrático de Direito. E quão dura e penosa tem sido esta luta!
Afrânio Silva Jardim estabelece balizas restritas para nortear o legislador nesta matéria[93]:
Por derradeiro, quero ressaltar, mais uma vez, que sou favorável a que futura legislação restrinja substancialmente o conceito de crime militar, sempre vinculado à tutela de bens jurídicos específicos da vida castrense e tipificados no respectivo código.
Destarte, o projeto que alterou o Artigo 9° do Código Penal Militar violou o procedimento de alteração das leis, portanto, incorreu em inconstitucionalidade formal, ao silenciar quanto parte essencial de sua alteração; e porque com o veto ao Artigo 2° o Poder Executivo, desfigurou completamente a vontade do Poder Legislativo, violou normas constitucionais, como eficiência, isonomia, igualdade, razoabilidade, caráter restritivo da jurisdição militar. Há violação ao Pacto de São José da Costa Rica que propugna uma jurisdição militar restritiva, além das diversos questionamentos internacionais acerca da existência da polícia militar.
Lembrando com Nilo Batista[94] que cita Tobias Barreto para lembrar-nos que há sempre interesses escondidos atrás do que se convencionou chamar de direito:
Uma passagem de Tobias Barreto, escrita há mais de um século, auxiliará nessa compreensão ‘não existe um direito natural, mas há uma lei natural do direito’. Acrescentava Tobias Barreto que, da mesma forma, que não existem linguagem, indústria ou arte naturais, embora exista aquilo que chama de lei natural da linguagem, da indústria, da arte: o homem não fala “língua alguma, não exerce indústria nem cultiva arte de qualquer espécie que a natureza lhe houvesse ensinado; tudo é produto dele mesmo, do seu trabalho, da sua atividade”. Ao conceber o direito como algo não revelado ao homem (a exemplo de uma noção religiosa), nem descoberto por sua razão (a exemplo de uma lógica formal), mas sim produzido pelo grupamento humano e pelas condições concretas em que esse grupamento se estrutura e se reproduz; ao ridicularizar a concepção do direito como “uma lei suprema, preexistente à humanidade e ao planeta que ela habita”, Tobias Barreto, se antecipava extraordinariamente às concepções jurídicas correntes no Brasil de sua época.
O direito penal vem ao mundo (ou seja, é legislado) para cumprir funções concretas dentro de e para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada maneira.
O estudo aprofundado das funções que o direito cumpre dentro de uma sociedade pertence à sociologia jurídica, mas o jurista iniciante deve ser advertido da importância de tal estudo para a compreensão do próprio direito.