Capa da publicação A Justiça Restaurativa nas ações de improbidade administrativa: mais uma ferramenta contra a corrupção?
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A Justiça Restaurativa nas ações de improbidade administrativa

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Será que é possível aplicar-se a Justiça Restaurativa às ações de improbidade, como forma de prevenir a corrupção no Estado Democrático de Direito?

1 INTRODUÇÃO

A corrupção é um fenômeno presente em todas as fases da história do Brasil, e, em especial, na atualidade. Trata-se de um carcinoma social que aumenta as desigualdades sociais e econômicas, centraliza os recursos para poucos, afrontando juridicamente o direito à igualdade e enfraquecendo os laços sociais, porquanto priva os segmentos mais carentes de serviços essenciais, gerando enormes prejuízos à economia. Por exemplo, recente estudo do Fundo Monetário Internacional revela que o déficit causado pela corrupção no Brasil é de R$ 7 trilhões no Brasil (FMI, 2016).

Neste contexto, ao longo dos anos foram tomadas medidas com vistas a prevenir e a reprimir a corrupção, destacando-se, como tal, a edição da Lei n° 8.429 de 1992, que versa sobre os atos de improbidade e suas respectivas sanções, os próprios tipos incriminadores do Código Penal e, mais recentemente, a Leis 12.529/11 e 12.850/13.

Diante do momento jurídico que busca a solução consensual das controvérsias, e da aplicação do princípio da consensualidade na Administração Pública, faz se necessária, a reflexão da utilização da justiça restaurativa nas ações de improbidade com o objetivo de prevenir a corrupção no Estado Democrático de Direito. Para tanto, é preciso analisar o Estado Democrático de Direito como paradigma de Estado, a corrupção, em especial a administrativa, a justiça restaurativa, e por fim, as ações de improbidade administrativa.


2 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

 Com o advento da Constituição de 1988, consagrou-se o Estado Democrático de Direito, conforme disposto no artigo 1° da Lei Maior.

O Estado Democrático de Direito tem como fundamento um direito participativo, pluralista e aberto, razão pela qual, a comunidade assume um papel de relevância fundamental na produção e na consecução do direito (FILHO, 2005, p. 235); ou seja, o referido paradigma de estado compreende o princípio da democracia participativa, uma vez que apregoa a participação dos indivíduos na construção das decisões e das normas que os alcançam.

Como lembra Cruz e Habermas, a finalidade do princípio democrático “participativo” (CRUZ, 2004, p. 219), é “fixar um procedimento de produção legítima de normas jurídicas”. (HABERMAS, 2005, p. 177, tradução nossa). Esse princípio, prossegue Habermas,

(...) explica o sentido realizativo da prática da autodeterminação dos membros de uma comunidade jurídica que se reconhecem uns aos outros como membros livres e iguais de uma associação que hão entrado voluntariamente. (HABERMAS, 2005, p. 175, tradução nossa)

Pelo exposto, cumpre notar que o Estado Democrático de Direito reflete a teoria do discurso, segundo à qual, por meio de uma participação igualitária, os sujeitos integram um processo argumentativo livre de coesões (CITTADINO, 2004, p. 107-118).


3 A CORRUPÇÃO

A corrupção, em sentido lato sensu, pode ser conceituada como uma conduta comissiva ou omissiva, ilícita, ilegal ou antiética de um indivíduo, visando à obtenção de vantagens para si ou para outrem.

Analisando o histórico brasileiro, percebe-se que a corrupção esteve presente em todas as épocas, como algo corriqueiro, tanto na vida dos cidadãos, quanto nas sociedades empresárias e nos poderes da Administração Pública. Como observou Faoro (2001, p. 17-41), consiste em fenômeno complexo que se confunde com a própria fundação do Estado brasileiro. Durante anos, ela promove a criação de privilégios por meio do aparato estatal numa ampla e complexa rede de corretagem entre partidos políticos, permitindo a nomeação de chefes e serviços.

Corrói a normatividade constitucional, estabelece um sistema hierarquizado de favorecimento, mandos e desmandos, por meio de expedientes dos mais variados, como a supressão de concurso público e fraudes a certames, apropriação do dinheiro público, lavagem de dinheiro, promoção da lógica do favorecimento e da “privatização” de vários setores governamentais (O’DONNELL, 2000, p. 337-373), com a violação do direito à igualdade e da meritocracia. Trata-se, pois, de prática tão comum quanto a indisposição do poder estatal em reprimi-la, apesar do Brasil ser signatário da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção desde 1966.

No que tange à corrupção política e à administrativa, tem-se como exemplo operações investigativas como a “lava jato”. Esta teve início em março 2014, fazendo alusões a esquema de corrupção que envolveu empreiteiras, funcionários de estatais como a Petrobrás, operadores financeiros e agentes políticos.

Neste contexto, o Ministério Público Federal, elaborou o projeto denominado “10 Medidas Contra a Corrupção”. Este contém propostas legislativas que visam entre outros objetivos, a responsabilização dos partidos políticos, a reforma na prescrição penal, a criminalização do enriquecimento ilícito dos agentes públicos, o aumento das penas dos crimes de corrupção, a transformação da corrupção de alto valor em crime hediondo, e a celeridade nas ações de improbidade.

Não obstante o discurso de que os projetos de lei tenham como objetivo o combate a crimes de corrupção, faz-se necessário questionar a legitimidade das referidas medidas, tendo em vista que tocam em direitos fundamentais. Além disso, observa-se não foram criadas por meio de um processo argumentativo livre de coesão, e, nem teve a participação de todos os sujeitos que poderiam ser alvos das referidas medidas, caso os projetos sejam convertidos em lei.

Cumpre notar, entre as propostas do Mistério Público Federal, não há nenhuma que vise à solução consensual dos conflitos oriundos dos atos de corrupção, apesar de ser esse órgão também resolutivo[1]. Em outras palavras, além da apresentação de medidas punitivas, indaga-se sobre a viabilidade de medidas restaurativas, como por exemplo, a aplicação da Justiça Restaurativa, tendo em vista os valores deste instrumento.


5 A JUSTIÇA RESTAURATIVA

 A Justiça Restaurativa se iniciou nas décadas de 70 e 80, nos Estados Unidos e Europa, tendo como inspiração as tradições pautadas em diálogos pacificadores e construtores de consenso, os quais, foram oriundos de culturas africanas e das primeiras nações do Canadá e Nova Zelândia. O referido modelo de resolução de conflitos, foi adotado inclusive pela Organização das Nações Unidas.

No Brasil, a Justiça Restaurativa foi estabelecida pela resolução n° 225 do CNJ em 31 de maio de 2016, dispondo sobre os seus sujeitos e sua aplicação no âmbito criminal.

O aludido modelo de justiça restauradora é permeado pelo respeito, pela honestidade, pela humildade, pelos cuidados mútuos, pela responsabilidade e pela verdade, sendo estes os elementos essenciais de seus valores, que são equitativos e justos. Ressalta-se que a observância dos valores em questão permite uma flexibilização das práticas de resolução de conflitos (MARSHALL; BOYACK; BOWEN, 2005, p. 270).

Nesse sentido, a Justiça Restaurativa é composta por vários processos, cada um embasado por um método único, sendo que todos têm como elemento primordial, qual seja, o diálogo fundado no respeito mútuo. Dentre os meios operacionalizadores da Justiça Restaurativa, há, por exemplo, a mediação penal, as conferências familiares e os círculos de construção de consenso, que são os mais recorrentes.

De forma sintética, a mediação penal consiste em solução consensual de conflito heterogênea, na qual, participa do processo um terceiro, sendo este, imparcial. Em regra, consiste em uma junta de pessoas com formações multidisciplinares. As Conferências intencionam o suporte que os familiares, amigos e outros membros possam oferecer ao infrator. Por fim, os Círculos de Construção de Consenso, envolve vítimas, ofensores, suas famílias, a comunidade e os operadores do direito, e, tem como objetivo construção consensual da sentença para o delito.

Entrementes, a Justiça restaurativa ter sido implantada no Brasil com a finalidade de ser um meio alternativo de soluções de conflitos no âmbito criminal, em razão da sua essência, valores, princípios e dos resultados por ela alcançados, pertinente estudar a possibilidade de utilizá-la em outras esferas do Ordenamento Jurídico, em especial nas ações de improbidade administrativa.


6 AS AÇÕES DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Para se falar em Ação de Improbidade Administrativa é preciso falar dos atos de improbidade, tendo em vista que são estes que ensejam a aludida ação.

Os atos de improbidade estão previstos na Lei n° 8.429 de 1992, que apresenta diversas condutas que se configuram em atos de improbidade. As práticas previstas no artigo 9° da referida lei, tipificam o enriquecimento ilícito; já aquelas postas no artigo 10, acarretam em prejuízo ao erário; por fim, o artigo 11 apresenta as violações aos princípios da Administração Pública.

Ademais, a Lei Complementar n° 157 incluiu, na Lei de Improbidade, o artigo 10-A, que prevê, como ato de improbidade administrativa, qualquer ação ou omissão para conceder, aplicar ou manter benefício financeiro ou tributário, contrário ao que dispõem o caput e o § 1º do art. 8º-A[2] da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003.

Cumpre notar que a prática dos atos supracitados caracterizam a corrupção administrativa, e tendo em vista, que esta como regra atinge o patrimônio público gerando danos a este, a coletividade acaba sendo a vítima.

O referido diploma legal, ao dispor sobre quem poderia ser sujeito ativo do ato ímprobo, adotou um conceito extremamente amplo de agente público, além disso, também considerou como sujeito, o terceiro que induzir ou concorrer para a prática do ato de improbidade, ou que, dele obtenha benefícios de forma direta ou indireta.

No que diz respeito a Ação de Improbidade, Carvalho Filho, assevera

(...) é aquela em que se pretende o reconhecimento judicial de condutas de improbidade na Administração, perpetradas por administradores públicos e terceiros, e a consequente aplicação das sanções legais, com o objetivo de preservar o princípio da moralidade administrativa. (FILHO, 2015, p. 1111-1112)

A Lei de Improbidade, apesar de, apresentar características específicas desse procedimento especial, não dispôs sobre o rito procedimental, razão pela qual, as ações de improbidade seguem o rito da Ação Civil Pública previsto na Lei n° 7.347/85, de forma subsidiária, em função do microssistema do processo coletivo brasileiro, inclusive no que tange os legitimados para proporem a ação, nos termos do artigo 5° da lei mencionada.

Diante do exposto, e considerando o interesse público tutelado pelas ações de improbidade, questiona-se se é possível à aplicação da Justiça Restaurativa nas referidas ações.


7 AS AÇÕES DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E A JUSTIÇA RESTAURATIVA

 O artigo 12 da Lei n° 8.429/92 prevê as sanções aplicáveis ao autor do ato de improbidade, quais sejam, o ressarcimento ao erário, a proibição de contratação com a Administração Pública, a suspensão dos direitos políticos, as multas, e no caso do agente público também pode ser determinada a sua demissão.

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O diploma legal acima mencionado, no § 1° do artigo 17, dispõe sobre a vedação da transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade. Contudo, não se trata de vedação absoluta, podendo ser mitigada sob o fundamento de que o interesse público em situações específicas enseja a busca por uma solução consensual, a exemplo do que se pratica com o termo de ajustamento de conduta.

Neste contexto, a interpretação do princípio da supremacia do interesse público que apregoa a predominância do interesse público em detrimento dos interesses particulares, é questionável sob a ótica do Estado Democrático de Direito que é caracterizado pelo consensualismo na determinação e na efetivação das finalidades pública, ou seja, o modelo liberal radical do Poder Público é superado por mecanismos consensuais de satisfação do interesse público (OLIVEIRA, 2015, p. 65-66). Há, pois, a substituição da primazia do interesse público a priori, pela razoabilidade, vedação do excesso e proporcionalidade.

Cumpre notar que na atualidade, diante do déficit do poder judiciário e da falta de efetividade de suas decisões, a comunidade global, e também o Brasil, tem buscado utilizar os meios alternativos de solução de conflitos, sendo um destes o processo restaurativo.

Ressalta-se, que através dos métodos e dos valores da Justiça Restaurativa, o infrator é capaz de se conscientizar do seu erro e da gravidade deste, e, esta conscientização, em regra acarreta na mudança de postura do sujeito, concernente à vítima, que nos casos de improbidade é a coletividade. Através do processo restaurativo, estimula-se a participação e o esclarecimento da decisão por meio da interferência de indivíduos da sociedade civil nestas ações. Portanto, esta forma de justiça promove a democracia participativa (PINTO, 2005, p. 21).

É preciso ter em mente, por ser um processo consensual, pautado no diálogo, a aplicação da Justiça Restaurativa pressupõe a voluntariedade, ou seja, o infrator precisa aceitá-la. Neste ponto, surge a indagação, e qual seria a vantagem? Apenas a sua restauração? Para responder a tais questionamentos, é necessário recorrer ao instituto da colaboração premiada[3], e analisar alguns de seus aspectos, interligando-os com a ação de improbidade e com a Justiça Restaurativa.

O instituto da colaboração premiada, utilizado pela justiça criminal, é meio pela qual o investigado ou o réu da ação penal que tenha por objeto o desmantelamento de uma organização criminosa, delata de forma voluntária eventuais participes ou coautores do crime, revelando a verdade. Caso o acusado escolha se valer do referido método, e, além disso, se sua declaração atender aos requisitos legais e produzir resultados, ele é beneficiado, podendo ter sua pena reduzida em até dois terços, ou ter a sua pena restritiva de liberdade substituída por medidas restritivas, ou ainda receber o perdão judicial (DIPP, 2015, p. 5-7).

Analisando o aludido instituto de forma comparativa, e almejando demonstrar sua aplicação à Lei de improbidade, é possível identificar que os atos de improbidade consistem em infração e cada ato possui a sua respectiva pena, se assemelhando, neste ponto, à infração penal, nos termos do artigo 12 da Lei n° 8.429/92, in verbis:

Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:[4] (BRASIL, 1992, grifo nosso)

Nessas circunstâncias, cumpre notar que o aludido artigo prevê que o juiz poderá aplicar as penas de forma isolada, dependendo da gravidade do fato. Neste sentido, tem-se, com a chancela da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que o magistrado não é obrigado a aplicar todas as sanções previstas no art. 12 da Lei n. 8.429/92, de forma cumulativa, pois ao julgador é dado o direito de fixa-las em obediência aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade, tendo em vista os fins sociais a que a Lei de Improbidade Administrativa se propõe.[5] E, procedendo assim, poderá celebrar negócio jurídico processual que melhor se adapte ao caso concreto.

Contudo, ressalta-se que, embora não haja a obrigatoriedade da cumulação das sanções, a fixação destas não deve ficar aquém do mínimo legal, consoante o entendimento do referido tribunal, em observância ao princípio da legalidade[6]. Não se descarta, a depender do caso, também de flexibilizar a aplicação da legalidade estrita, quando o caso envolvendo outros bens jurídicos assim exigir.

Observa-se que, neste cenário da aplicação do consensualismo na esfera da Administração Pública, tem-se como exemplo a Resolução n° 01/2017, do Ministério Público do Paraná, que dispõe sobre a celebração de composição nas modalidades compromisso de ajustamento de conduta e acordo de leniência, envolvendo as sanções cominadas aos atos de improbidade administrativa, definidos na Lei 8.429/92, e aos atos praticados contra a Administração Pública, definidos na Lei 12.846/13.

Neste contexto, a concessão de benefícios no âmbito das ações de improbidade pode se dar por meio da utilização da Justiça Restaurativa, tendo em vista os seus instrumentos de operacionalização. 

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Sobre os autores
Gustavo Almeida Paolinelli de Castro

Doutor e mestre em Direito Público (PUC-MINAS). Professor do curso de Direito da Pós-graduação stricto sensu da PUC-MINAS e do Centro Universitário Belo Horizonte - UNIBH. Pesquisador do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas da PUCMINAS e do UNIBH. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Priscila Vieira ; CASTRO, Gustavo Almeida Paolinelli. A Justiça Restaurativa nas ações de improbidade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5265, 30 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62354. Acesso em: 16 abr. 2024.

Mais informações

O artigo foi desenvolvido em um projeto de iniciação científica, este tinha como objetivo estudar formas de repressão e prevenção da corrupção no Estado Democrático de Direito.

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