3 AS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA FRENTE AO QUE DISPÕE A RESOLUÇÃO 2013/2013 DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
A reprodução assistida pode ser conceituada como “o conjunto de técnicas laboratoriais que visa obter uma gestação substituindo ou facilitando uma etapa deficiente no processo reprodutivo” (BADALOTTI). Seguindo esta definição, é importante evidenciar que a inseminação artificial é dividida em duas formas: a homóloga e heteróloga. Dias diferencia ambas afirmando que:
Na inseminação homóloga, o material genético pertence ao par. É utilizada nas situações em que o casal possui fertilidade, mas não é capaz de provocar a fecundação por meio do ato sexual. Na inseminação heteróloga, o esperma é doado por terceira pessoa. É utilizado nos casos de esterilidade do marido. Tendo havido prévia autorização, também se estabelece a presunção pater est (CC 1.597, V), ou seja, como o cônjuge concordou de modo expresso com o uso da inseminação artificial, assume a condição de pai do filho que venha a nascer (DIAS, 2015, p. 295).
A depender da técnica aplicada, a fecundação poderá ocorrer in vivo ou in vitro. Torna-se conveniente, todavia, especificar quanto aos procedimentos, já que a fecundação sempre será natural, é considerado artificial o método para se chegar à fecundação. Tem-se então a fertilização in vitro que “é a fecundação de um óvulo em laboratório, a união dos elementos masculino e feminino de reprodução”. A partir de certo tempo, surge o embrião que será transferido para o útero e assim prosseguir a gestação (MEIRELLES, 2000, p.18 apud SILVA, 2011, p. 13).
A Resolução 2.013, de maio de 2013, do Conselho Federal de Medicina, pontua que são pacientes das técnicas de RA:
1 - Todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja indicação não se afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das técnicas de RA desde que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre a mesma, de acordo com a legislação vigente.
2 - É permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito da objeção de consciência do médico.
O principal objetivo da Resolução 2013/13 do Conselho Federal de Medicina, inicialmente, fora de suprir a lacuna legislativa e estabelecer os parâmetros quanto a reprodução assistida no território pátrio. Apesar de não ter caráter normativo, se fez necessária a alteração de diretrizes a partir do reconhecimento da união estável entre casais homossexuais pelo Supremo Tribunal Federal, conferindo os devidos direitos a esses casais, demonstrando a necessidade de edição e o surgimento de novas diretrizes (CUNHA; DOMINGOS, 2013).
Esta revogou a Resolução 1957/2010, que por sua vez substituiu a Resolução 1358/1992, estas normas tratavam de questões éticas a respeito do tema no que tange a questões práticas com objetivo de orientar os médicos que atuavam nesta área (TARTUCE, 2014).
Com o advento dessa resolução os casais lésbicos podem recorrer às técnicas de reprodução assistida para gerar seus filhos, de forma que ambas tenham participação no processo. Esse é um marco muito importante, pois há pouco tempo essa possibilidade nem era cogitada, tendo em vista o preconceito e a visão conservadora do legislador e da sociedade. Isto também é reflexo de uma quebra de paradigmas em relação a visão tradicional de família, uma vez que como bem pontua Judith Costa (2000):
O Direito desenvolve-se na História e, por isso, um de seus papéis é o de mediar a dialética que por vezes resta estabelecida entre a tradição e a ruptura, entre os processos de continuidade e os de descontinuidade social. Seu papel não é, pois, o de cercear o desenvolvimento científico mas, justamente, o de traçar aquelas exigências mínimas que assegurem a compatibilização entre os avanços biomédicos que importam na ruptura de certos paradigmas e a continuidade do reconhecimento da Humanidade enquanto tal, e como tal portadora de um quadro de valores que devem ser assegurados e respeitados.
De fato a reprodução assistida representou um grande avanço para a ciência, não só para os casais heterosexuais impossibilitados de ter filhos, como pôde tornar realidade o sonho de muitos casais homoafetivos de constituir família, especificamente, aos casais lésbicos abordados neste trabalho. Contudo, é notável que ainda há preconceito em relação à essa organização familiar formada por duas mães. Pontua Dias (2009, p. 45) que “em virtude do preconceito, tenta-se excluir a homossexualidade do mundo do Direito”.
Destaca-se ainda que, a reprodução humana assistida nestes casos “será sempre heteróloga, pois haverá sempre um terceiro estranho à relação, o doador, e em casais femininos há a doação de um óvulo de uma e cessão do útero da outra parceira” (CHENSO; FERRARI, [s/d]).
3.1 O uso da reprodução assistida por casais lésbicos e o desejo de constituírem família
A Constituição Federal elenca como princípios basilares o da dignidade da pessoa humana, expresso no art. 1º, inciso III, bem como os princípios da igualdade e da isonomia que norteiam o sistema jurídico. Por serem dotados de relevância princípios da igualdade e da liberdade estão consagrados no preâmbulo da Carta de 88, maior norma do ordenamento. Assim, esta ao conceder proteção a todos, não estabelece critérios de distinção, uma vez que a ideia é vedar as discriminações existentes, sejam estas por motivo de raça, origem, idade ou sexo (DIAS, 2009).
O artigo 5º da Carta Constitucional, ao elencar os direitos e garantias fundamentais, deixa claro: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. O mesmo dispositivo elenca, de modo expresso, o direito à liberdade e igualdade. No entanto, sabe-se que aquilo que ocorre na prática é diferente, “enquanto houver segmentos-alvo da exclusão social, tratamento desigualitário entre homens e mulheres, enquanto a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado”, não se vive em um Estado Democrático de Direito (DIAS, 2009, 43).
Segundo Maria Berenice Dias (2015, apud TARTUCE):
Não há restrição alguma nem pode haver qualquer obstáculo legal para impedir o uso de tais práticas. Entende a última doutrinadora que em situações tais deve-se considerar que a criança tem dois pais ou duas mães, pois, caso contrário, haverá preconceito. Tal posicionamento segue a linha de pensamento de que a união homoafetiva constitui uma entidade familiar, o que vem sendo confirmado pelos Tribunais Superiores nacionais (ver Informativo n. 625 do STF sobre a união homoafetiva; e Informativo n. 486 do STJ sobre o casamento homoafetivo).
Neste mesmo sentido, também é interessante citar uma decisão do STJ de 2012, sobre a possibilidade de adoção unilateral quando apenas uma das companheiras homoafetivas faz uso das técnicas de RA heteróloga, acórdão este publicado no Informativo 513 da Corte (TARTUCE, 2015):
Direito civil. Adoção. Concessão de adoção unilateral de menor fruto de inseminação artificial heteróloga à companheira da mãe biológica da adotanda. A adoção unilateral prevista no art. 41, § 1.º, do ECA pode ser concedida à companheira da mãe biológica da adotanda, para que ambas as companheiras passem a ostentar a condição de mães, na hipótese em que a menor tenha sido fruto de inseminação artificial heteróloga, com doador desconhecido, previamente planejada pelo casal no âmbito de união estável homoafetiva, presente, ademais, a anuência da mãe biológica, desde que inexista prejuízo para a adotanda. O STF decidiu ser plena a equiparação das uniões estáveis homoafetivas às uniões estáveis heteroafetivas, o que trouxe, como consequência, a extensão automática das prerrogativas já outorgadas aos companheiros da união estável tradicional àqueles que vivenciem uma união 817/1350 estável homoafetiva. Assim, se a adoção unilateral de menor é possível ao extrato heterossexual da população, também o é à fração homossexual da sociedade. Devese advertir, contudo, que o pedido de adoção se submete à norma-princípio fixada no art. 43 do ECA, segundo a qual ‘a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando’. Nesse contexto, estudos feitos no âmbito da Psicologia afirmam que pesquisas têm demonstrado que os filhos de pais ou mães homossexuais não apresentam comprometimento e problemas em seu desenvolvimento psicossocial quando comparados com filhos de pais e mães heterossexuais. Dessa forma, a referida adoção somente se mostra possível no caso de inexistir prejuízo para a adotanda. Além do mais, a possibilidade jurídica e a conveniência do deferimento do pedido de adoção unilateral devem considerar a evidente necessidade de aumentar, e não de restringir, a base daqueles que desejem adotar, em virtude da existência de milhares de crianças que, longe de quererem discutir a orientação sexual de seus pais, anseiam apenas por um lar” (STJ, REsp 1.281.093/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.12.2012). (Grifo nosso).
O fato é que diante destas garantias constitucionais se torna impositiva a inclusão de todos, sem exceção e discriminação para o manto da tutela jurídica, uma vez que “a constitucionalização da família implica assegurar proteção ao indivíduo em suas estruturas de convívio, independentemente de sua orientação sexual” (DIAS, 2015, p.272).
Nesta perspectiva é coerente que:
Se existem outros meios para procriar, diversos do meio natural, que são eticamente consideráveis e aceitáveis e utilizados por pessoas heterossexuais, não haveria porque negar à um homossexual, que é um cidadão, sujeito de direitos, tal benefício. Tal negação seria como uma punição por causa da sua orientação sexual (SILVA, 2011, p. 35).
Diante disso, os princípios mais importantes que regem as relações familiares são a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade. Sendo assim, o princípio da dignidade da pessoa humana funciona como um estruturante destas relações, tendo em vista que na família patriarcal somente o chefe da família era dotado de direitos e a mulher e os filhos eram submissos a isso. Hoje a situação é diferente, deve-se zelar pelo equilíbrio e pleno desenvolvimento da dignidade de todos os membros da família, sem distinção e isso não é apenas dever do Estado, mas de todos os membros da comunidade familiar (LOBO, 1999).
O princípio da liberdade está relacionado com a autonomia de constituição e o livre poder de escolha, neste sentido, ressalta-se que é de suma importância para a constituição das famílias homoafetivas, especialmente no que tange aos casais lésbicos, uma vez que elas terão liberdade para agir, administrar seu patrimônio e educar seus filhos como qualquer outro casal. Logo, a igualdade formal e material também é importante, pois entre elas também haverá paridade de direitos, entre elas e em relação aos seus filhos. (LOBO, 1999).
Desse modo, diante do princípio da liberdade de constituir uma comunhão de vida familiar, é plenamente possível que os casais lésbicos, que desejam a concretização do sonho de ter filhos, recorrerem às técnicas de reprodução assistida e não deve ocorrer nenhuma restrição de pessoa jurídica de direito público ou privado como bem pontua o artigo 1513 do Código Civil (GONÇALVES, 2013, p.25).