4. RELATÓRIO FINAL DO INQUÉRITO E O JUÍZO DE VALOR DO DELEGADO DE POLÍCIA
Após esgotadas as diligências investigativas realizadas pelo delegado de polícia, deverá este elaborar um detalhado relatório conclusivo acerca de tudo que houver sido apurado, nos termos do art. 10, § 1º, do CPP (BRASIL, 1941).
Para Avena (2011), o encerramento do procedimento investigativo, não significa que todas as dúvidas acerca do fato investigado foram sanadas, mas que, a luz da discricionariedade do delegado de polícia na condução dos trabalhos, todas as diligências possíveis foram concluídas.
Lima (2016) entende ser o relatório conclusivo do inquérito, uma peça eminentemente informativa, onde a autoridade policial descreverá as principais diligências realizadas, bem como as que, por questões diversas, não foram concluídas, como por exemplo, a entrega de complexo laudo pericial pela polícia técnica.
O relatório conclusivo nos ensinamentos de Avena (2011), é o momento para que o delegado aponte o dispositivo legal violado pelo investigado, o que consequentemente não possui o condão de vincular o órgão do Ministério Público que poderá denunciar o infrator por tipificação diversa da indicada no inquérito.
É uníssona na doutrina processualista, que a autoridade policial deva pautar-se a descrição dos atos investigatórios realizados durante o inquérito, sem tecer qualquer tipo de juízo valorativo acerca dos fatos investigados, por força do princípio do unidirecionamento, segundo o qual, o inquérito serve unicamente para apurar os fatos e encaminhar os resultados ao Ministério Público para que este, proceda à apreciação do delito (NICOLITT, 2014).
Lima (2016), apesar de comungar do mesmo entendimento exposto acima, adverte que, para os crimes previstos na Lei nº 11.343/2006 (BRASIL, 2006), a autoridade policial, por força do art. 52, I, relatará sumariamente as circunstâncias do fato, justificando as razões que levaram à classificação do delito, indicando a quantidade e natureza da substância ou do produto apreendido, o local e as condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as circunstâncias da prisão, a conduta, a qualificação e os antecedentes do agente.
Com o propósito de demostrar a mitigação ao princípio do unidirecionamento, relativo a possibilidade de formação de um juízo valorativo por parte do delegado de polícia, acerca das diligencias realizadas, passa-se adiante à análise desta hipótese.
4.1 O Juízo de Valor do Delegado no Inquérito Policial
Os juízos são compreensões que emitimos sobre coisas, fatos ou pessoas. Mister se faz observar a distinção feita por Chauí (2000, p. 431), entre juízo de fato e juízo de valor:
Se dissermos: “Está chovendo”, estaremos enunciando um acontecimento constatado por nós e o juízo proferido é um juízo de fato. Se, porém, falarmos: “A chuva é boa para as plantas” ou “A chuva é bela”, estaremos interpretando e avaliando o acontecimento. Nesse caso, proferimos um juízo de valor. Juízos de fato são aqueles que dizem o que as coisas são, como são e por que são. Em nossa vida cotidiana, mas também na metafísica e nas ciências, os juízos de fato estão presentes. Diferentemente deles, os juízos de valor - avaliações sobre coisas, pessoas e situações - são proferidos na moral, nas artes, na política, na religião. Juízos de valor avaliam coisas, pessoas, ações, experiências, acontecimentos, sentimentos, estados de espírito, intenções e decisões como bons ou maus, desejáveis ou indesejáveis. Os juízos éticos de valor são também normativos, isto é, enunciam normas que determinam o dever ser de nossos sentimentos, nossos atos, nossos comportamentos. São juízos que enunciam obrigações e avaliam intenções e ações segundo o critério do correto e do incorreto.
Apesar da doutrina processualista sustentar que a autoridade policial deve abster-se de manifestar qualquer juízo de valor durante a conclusão do inquérito, limitando-se a indicação do tipo penal em seu aspecto formal, Hora (2016), sustenta que o delegado deve ser compreendido como um “juiz do fato”, a ele cabe a produção de “juris-dictio” administrativa, enquanto o magistrado, “juiz do direito”, produzirá “juris-dictio” judicial. Explica ainda, que a autoridade policial exerce suas funções com isenção, pois possui o condão de investigar o fato criminoso, independentemente se ao final da investigação o resultado favoreça acusação ou defesa.
Assim, a isenção do delegado com a condução do inquérito se correlaciona com a imparcialidade do magistrado durante o julgamento.
Na fase extrajudicial, o “julgamento” (do fato) é todo do Delegado. Delegado não acusa, Delegado não é parte, Delegado não tem interesse processual (acusatório) no deslinde do caso, não sendo, portanto, similar ao órgão do Ministério Público. MP é parte. Por igual, Delegado não defende, não tem interesse (absolutório) como o advogado ou Defensor Público. A atividade do Delegado é isenta e, embora não sendo parte, nem julgador (judicial) isso não retira suas características, também de excelência, para a atividade jurídica (HORA, on line, 2016).
Caparroz (2014), advoga que não se deve impedir que a autoridade policial se manifeste acerca das diligências realizadas, pois dentre os protagonistas da persecução penal, quais sejam, juízes, promotores, defensores e o delegado, este é a autoridade estatal que mais próximo esteve do fato, na busca de informações que esclarecessem o crime quanto a materialidade e autoria. Além do mais complementa que:
Ao Delegado de Polícia cabe, no exercício de suas funções, sob pena de alegação de nulidade dos atos administrativos que pratica, fundamentar suas decisões e expor os motivos que o levaram a decidir desta ou daquela maneira, sendo inúmeros os atos decisórios que pratica durante o trâmite do inquérito policial, tais como: prisão em flagrante, indiciamento, tipificação penal, arbitramento de fiança, etc. (CAPARROZ, on line, 2014).
Não se encontra na legislação processual penal qualquer dispositivo que impeça a autoridade policial de manifestar-se acerca das diligências realizadas durante o inquérito. A contrario sensu, existe previsão expressa no sentido de que, o delegado de polícia deve justificar suas conclusões através de um juízo de valor. É o que ocorre com o disposto no art. 52, I, da Lei nº 11.343/2006 (BRASIL, 2006), dispondo que a autoridade policial deverá relatar sumariamente as circunstâncias do fato, justificando as razões que a levaram à classificação do delito, indicando a quantidade e natureza da substância ou do produto apreendido, o local e as condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as circunstâncias da prisão, a conduta, a qualificação e os antecedentes do agente.
Morais (2012), ao tratar sobre a atuação do delegado de polícia nos crimes previstos na Lei de Drogas, demonstra que, nos casos de flagrante delito, o auto de prisão, que é de responsabilidade do delegado de polícia, irá verificar preliminarmente se o fato apresentado ao seu conhecimento subsumi a previsão legal de porte de entorpecente para consumo (art. 28), ou se enquadra como tráfico de entorpecentes (art. 33), complementando:
O Delegado de Polícia, assim como o Juiz de Direito, é um agente público cuja atuação se impõe o regime de legalidade estrita. Desta forma, numa interpretação analógica, o Delegado de Polícia deverá se valer do disposto no § 2º, do inciso III, do art. 28 da Lei n. 11.343/06, para proceder à verificação do caso concreto e lavrar o auto de prisão em flagrante de acordo com o seu entendimento, em que pese a apreciação posterior do Juiz de Direito. Tal interpretação se mostra bastante oportuna se considerarmos a proximidade física e temporal do Delegado de Polícia em relação à prática delitiva (MORAIS, on line, 2012).
A Lei nº 12.830/2013 (BRASIL, 2013), que versa sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia, trouxe como dever desta autoridade no que concerne ao indiciamento, a necessidade de fundamentação do ato, mediante análise técnico-jurídico, indicando a autoria, materialidade e as circunstâncias em que se deram o fato (art. 2º, § 6º). Toledo Neto (2003), ressalta que a autoridade policial possui os mesmos conhecimentos jurídicos dos demais operadores do direito, apenas diferenciando quanto as atribuições de cada um, devendo este conhecimento ser levado em consideração, no intuito de tornar célere a persecução penal na busca da efetivação da justiça.
Por fim, a Constituição do Estado de São Paulo, com a alteração dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 3 de abril de 2012, inseriu em seu art.140, o § 2º, conferindo ao delegado de polícia judiciária, independência funcional pela livre convicção nos atos por ele praticados. Não obstante a alteração dada pela emenda, o Tribunal Paulista já reconhecia a possibilidade de formação de juízo valorativo por parte do delegado de polícia.
Concluído que se cuida de “fato típico”, incumbe ao Delegado de Polícia, por via da formulação de um juízo de valor, decidir se se trata de prisão em flagrante, em quase-flagrante (flagrante próprio e impróprio), flagrante preparado, ou, se, efetivamente, não houve flagrante. A formulação desse juízo de valor não tem regra matemática a ser seguida. Cuida-se de uma avaliação subjetiva, realizada com os supedâneos do conhecimento jurídico e da experiência, amealhada ao longo da carreira policial. É conhecimento personalíssimo e ao abrigo de qualquer influência externa (PROCESSO 253/2002, COMARCA DE RIO CLARO/SP, JUIZ DE DIREITO JULIO OSMANY BARBIN. DATA: 14/01/2003).
5. CONCLUSÃO
Em um Estado Democrático de Direito ao qual a liberdade do indivíduo é posto como garantia fundamental e a privação desta liberdade a ultima ratio, a autoridade policial passa ter um importantíssimo papel na sociedade, qual seja, o de primeiro garantidor dos direitos do cidadão.
De todo o exposto, indubitavelmente a autoridade policial utiliza-se sim, do juízo valorativo não apenas no momento da confecção do relatório conclusivo, mas também durante o conhecimento da infração penal praticada.
Ao apresentar o infrator à autoridade policial, esta, utilizando-se de sua formação jurídica, semelhante a formação do juiz, do Promotor e do Defensor, verificará no caso concreto, se o fato demostrado à sua presença, se subsumi a norma penal em abstrato. Neste caso, tem-se o primeiro juízo de valor feito pelo delegado de polícia sobre o cabimento ou não da prisão em flagrante e consequentemente a instauração do inquérito policial, além da possibilidade de arbitramento de fiança nas hipóteses previstas em lei.
Ademais, não se pode exigir que o delegado de polícia, agente estatal que mais próximo esteve do fato criminoso, fique adstrito a relatar apenas diligências realizadas, sem qualquer formação de um juízo que leva a verdade real dos fatos e posteriormente, em sede de ação penal, a efetiva aplicação da lei.
Conforme demonstrado alhures, diversas normas do ordenamento jurídico, prevê a necessidade de formação de um juízo valorativo por parte da autoridade de polícia, durante os trabalhos investigativos, como é o caso do art. 52, I, da Lei nº 11.343/2006, indicando que o delegado deverá justificar as razões que levaram à classificação do delito em consumo de entorpecentes ou tráfico. Do mesmo modo, é o disposto no art.2º, § 6º, da Lei nº 12.830/2013, ao indicar que deverá o delegado fundamentar o ato de indiciamento, utilizando-se para isso, de critérios técnico-jurídico. Outrossim, o disposto no art. 304 e parágrafos, do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941), também demostra hipóteses de juízo valorativo no que concerne a hipótese de prisão em flagrante, já que caberá à autoridade decidir se é caso de recolhimento a prisão, ou livrar-se solto mediante ou não, o pagamento de fiança.
É irrefutável a mitigação do princípio do unidirecionamento do inquérito policial, pois o ordenamento jurídico traz possibilidades de formação de juízo de valor pelo delegado de polícia. Não obstante, cumpre ressaltar que o Ministério Público não está vinculado ao juízo emitido pelo delegado, aliás, nem mesmo a autoridade judiciária vinculará a denúncia ou queixa feita pelo parquet, podendo valer-se do instituto da emendatio libelli, para atribuir definição jurídica diversa da apresentada na exordial acusatória, ou do instituto da mutatio libelli, caso entenda ser cabível nova definição jurídica do fato, remetendo, neste caso, ao autos ao titular da ação penal, para que este adite a denúncia ou queixa, conforme se extrai dos arts. 383 e 384, do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941).
Portanto, em obediência a harmonia entre os Poderes previsto no art. 2º, da Carta Magna (BRASIL, 1988), os órgãos incumbidos da persecução penal, devem se auxiliar mutuamente dentro de cada área de atribuição, buscando a maior efetivação da justiça e consequente a pacificação social. Em virtude disso, o juízo valorativo feito pelo delegado de polícia deve ser entendido como um mecanismo a mais para se alcançar tal objetivo e não interpretado como um “excesso de poder” dado a um único agente do Estado.