Artigo Destaque dos editores

Os discursos desconectados e a ideia de justiça social dos linchadores

Exibindo página 3 de 3
15/02/2018 às 12:55
Leia nesta página:

5. Caso Fabiane Maria de Jesus

O caso de Fabiane Maria de Jesus enquadra-se, devidamente, no paralelo feito entre os conceitos de Linchamento e Justiça popular, proposta por Benevides (1982) e por Martins (1996), e o papel das mídias sociais na prática do ato.

Fabiane Maria de Jesus tinha 33 anos, era casada, mãe de duas meninas, e vivia em Morrinhos, bairro da periferia do Guarujá, litoral de São Paulo. Foi caracterizada, erroneamente, pela comunidade onde morava como a mulher que sequestrava crianças para ritual de magia negra. Teve, em seguida, por meio de denúncias anônimas, sua imagem associada, equivocadamente, à imagem de outra mulher. Na fanpage (página da rede social Facebook) “Guarujá Alerta”, Fabiane foi tratada como uma mulher que raptava crianças para rituais. Assim, rapidamente,a informação circulou pelos computadores, celulares e outros aparelhos eletrônicos dos moradores do Guarujá e região. Fica evidente, nas reportagens feitas pelos jornais, que a população estava mobilizada na identificação da criminosa.

Na tarde do dia 3 de maio, Fabiane Maria de Jesus retornava da igreja e teria ido comprar água em um bar, onde encontrou uma criança e lhe ofereceu uma banana. Nesse momento, uma mulher gritou que Fabiane seria a suposta sequestradora. De tal modo, as pessoas a cercaram e passaram a lhe agredir fisicamente (PETRY, A. “Mataram a mulher” A gênese do linchamento que chocou o Brasil, Veja, n.p. Acesso em 10 de março de 2017. < http://veja.abril.com.br/complemento/brasil/a-historia-de-um-linchamento-mataram-a-mulher/>).

O linchamento culminou na internação hospitalar de Fabiane e, dois dias depois, na morte dela, em decorrência de traumatismo craniano e graves lesões corporais. Nos dias seguintes, a polícia conseguiu identificar cinco suspeitos: dois denunciados anonimamente pela própria população, dois apresentaram-se espontaneamente após terem a prisão decretada e o outro foi capturado.

Conforme divulgado pela reportagem de Petry (2014), intitulada de “Mataram a mulher? A gênese do linchamento que chocou o Brasil”, divulgada pelo site da revista Veja, o jornalista relata que Fabiane foi confundida por um retrato falado feito por agentes da polícia civil em 2012, divulgado pela Secretaria de Defesa Social do Rio de Janeiro., “O aviso do Guarujá Alerta provocou uma cascata interminável de reações de raiva, medo ou ameaça. Um usuário disse que pensava que a história da sequestradora era boato, mas interpretou o post do Guarujá Alerta como uma confirmação” escreveu o jornalista.

Relata ainda Petry (2014), que no dia 27 de abril, domingo, o Facebook fervilhava. Uma usuária, que se identificou como Noelia dos Santos, disse que “tem uma sequestradora de crianças pela redondeza” e também divulgou um retrato falado. Explicou que ela sequestrava sozinha e “em alguns casos ela chega até a tomar a criança dos braços da mãe à força”. Informava que a criminosa já pegara “mais ou menos umas 37 crianças para fazer magia negra”. Seu post9 foi largamente compartilhado. A revolta desdobrou-se em adjetivos: “vagabunda, tem que morrer”, “quem é essa vaca?”, “vadia”. Alguém disse que ela era morena. E alguém replicou que ela havia tingido os cabelos de loiro “para disfarçar”.

Por todo o exposto, é possível verificar que as mídias sociais possuem uma função ímpar na propagação de informação nas sociedades atuais, o que nem sempre é um fator positivo, visto que a violência se tornou manchete constante nos telejornais, nas rádios, nas revistas e em nos sites de relacionamento, como as redes sociais, contribuindo para a expansão de uma mentalidade repressiva nos cidadãos (RIOS, 1988 n. p.).

Diante das perspectivas e da análise dos conceitos de linchamento, mídias sociais, liberdade de expressão e justiça popular, o caso de Fabiane Maria de Jesus torna-se a exteriorização do conceito de linchamento e justiça popular proposto por Martins (1996) e por Benevides (1982) ao traçarem a motivação e o perfil dos que praticaram o linchamento.

Ainda dentro do contexto motivacional, proposto pelos autores acima citados, é possível verificar a contribuição que a página “Guarujá Alerta”, da rede social Facebook, deu para o assassinato de Fabiane Maria de Jesus, ao divulgar uma imagem que supostamente seria a sua.

Por fim, o caso de Fabiana não é o primeiro, e também não é o último. A banalização da violência pela mídia e sua utilização como linguagem amplificam os atos violentos. Segundo Elizabeth Rondelli: 

A mídia, quando se apropria, divulga espetaculariza, sensacionaliza ou banaliza os atos de violência, está atribuindo-lhes um sentido que, ao circularem socialmente, induzem práticas referidas à violência (RONDELLI, 1998, p. 149-150).

De tal maneira, algumas vezes, há uma manutenção de práticas violentas estimuladas pelas mídias sociais.

 


9. Conclusão

Tomando por base os parâmetros apresentados nesse trabalho, o linchamento tornou-se, ao longo dos anos, uma forma de representar a revolta popular que, normalmente, surge em uma comunidade instável e tem como escopo imediato expurgar aqueles que transgridam as leis estabelecidas. Sobretudo, com o objetivo de resolver conflitos sociais não solucionados pelas autoridades políticas e, principalmente, pelas autoridades judiciárias. Os linchadores fazem uma justiça sem limitações e incompatível com a justiça formal. Dessa forma, o linchamento pode ser entendido como uma espécie de justiça com as próprias mãos, com marcas de um caráter antijurídico. Mostra não apenas a ausência de um terceiro sujeito, imparcial e neutro, conforme os ensinamentos dados por Aristóteles ao conceituar a justiça corretiva, mas também a falta de uma compreensão sobre a ideia abstrata e universal de justiça. 

O caso, ora analisado, mostra, algumas vezes, certa banalização dos atos de violência pelas mídias que termina por espetacularizá-los, o que pode incitar a manutenção de atitudes sociais associadas a práticas violentas.

Essa é a expressão da realidade social do Brasil, na qual as desigualdades sociais, culturais e o desrespeito aos direitos humanos repercutem para gerar uma espécie de naturalização da violência. Por fim, o linchamento manifesta o conflito entre o que a população espera como punição justa e a resposta dada pelas instituições de justiça. Nesse sentido, surge a necessidade de políticas públicas de justiça e segurança capazes de harmonizar a relação das instituições com a comunidade, não apenas através da punição do dissidente, mas com uma sanção em um momento necessário.

 

 

 


Referências

AGUIAR, Sonia. Redes Sociais na Internet: Os desafios à pesquisa. Rio de Janeiro, 2007.

ANTUNES, Fábio Luiz. Ética e Justiça em Aristóteles. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 89, jun 2011. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9628&revista_caderno=15>. Acesso em abr 2017.

ARISTÓTELES. A Política. [Tradução: Torrieri Guimarães]. São Paulo, Martin Claret, 2002.

_______. Ética à Nicômaco. 8. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em 20 de maio de 2017.

BENEVIDES, Maria Victoria; FERREIRA, Rosa Maria Fischer. Respostas Populares e Violência Urbana: o caso de linchamento no Brasil (1979-1982). In: PINHEIRO, Paulo Sergio (Org.). Crime, Violência e Poder. São Paulo: Brasiliense, 1983.

CABRAL, Bruno Fontenele. Freedom of speech. Considerações sobre a liberdade de expressão e de imprensa no direito norte-americano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2640, 23 set. 2010. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/17476>. Acesso em: 21 abr. 2017.

CABRAL, Diogo. PEDROSA, Luiz Antônio. CABRAL, Wagner. A passagem da vingança para a matança… Disponível em: <https://www.marcoaureliodeca.com.br/2015/07/14/a-passagem-da-vinganca-para-a-matanca/>>. Acesso em 20 de fevereiro de 2017.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. 11ª Edição. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2008.

COSTA, Nayara Miranda da Silva. O Facebook como Ferramenta de Comunicação da Marca Origens. Disponível em:<http://www.uvv.br/edital_doc/O%20FACEBOOK%20COMO%20FERRAMENTA%20DE%20COMUNICA%C3%87%C3%83O%20DA%20MARCA%20ORIGEN S.pdf >. Acesso em 20 de novembro de 2017.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

GALLI, Joel Eliseu. "A opinião das massas substituindo os critérios de verdade: a transformação do julgamento criminal em acossamento". Disponível em: (http://www.ibccrim.org.br). Acesso em 22 de março de 2016.

KAPLAN, Andreas M. HAENLEIN, Michael .Users of the world, unite! The challengesandopportunitiesof Social Media. Disponível em: <http://michaelhaenlein.eu/Publications/Kaplan,%20Andreas%20-%20Users%20of%20the%20world,%20unite.pdf> Acesso em 22 de novembro de 2016.

Linchamento De Fabiane Maria De Jesus. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Linchamento_de_Fabiane_Maria_de_Jesus> Acesso em: 18 de maio 2016.

Linchamentos Põem A Nu Fragilidades Da Democracia. Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/proa/noticia/2014/05/linchamentos-poem-a-nu-fragilidades-da-democracia-4496521.html. Acesso em: 18 de maio 2016.

Manual De Orientação Para Atuação Em Mídias Sociais. Versão 2.0. São Paulo, 2014. Disponível em:< http://www.secom.gov.br/pdfs-da-area-de-orientacoes-gerais/internet-e-redes-sociais/secommanualredessociaisout2012_pdf.pdf> Acesso em 20 de maio de 2017.

MARTINS, José de Souza. Brasil, o país dos linchamentos. Entrevista com José de Souza Martins. Disponível em:<http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-arquivadas/12164-brasil-o-pais-dos-linchamentos-entrevista-com-jose-de-souza-martins>Acesso em: 17 de maio de 2016.

MARTINS, José de Souza. Linchamento, o lado sombrio da mente conservadora. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 8(2): 11-26, outubro de 1996.

MARTINS, Jose de Souza. As condições do estudo sociológico dos linchamentos no Brasil. Estudos Avançados. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141995000300022> Acesso em 10 de maio de 2016.

MARTINS, José de Souza. Brasil, o país dos linchamentos. Disponível em <http://blog.zequinhabarreto.org.br/2008/08/13/brasil-o-pais-dos-linchamentos/> acessado dia 23 de março de 2017.

OLIVEIRA, Luiz Gustavo Caratti de; DANI, Marília Gabriela Silva. Os crimes virtuais e a impunidade real. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 91, ago 2011. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9963>. Acesso em mar 2017.

PETRY, André "Mataram A Mulher?" A Gênese Do Linchamento Que Chocou O Brasil. disponível em: <http://veja.abril.com.br/complemento/brasil/a-historia-de-um-linchamento-mataram-a-mulher/>acesso em 22 de abril de 2017.

PONDÉ, Luiz Felipe (2010). Contra um mundo melhor. Ensaios do afeto 1ª ed. (São Paulo: Leya).

RONDELLI, Elizabeth. Imagens da Violência: práticas discursivas. Tempo Social. V. 10, n. 2. São Paulo, out. 1998, p. 145-157. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/site/images/stories/edicoes/v102/imagens.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2015.

SALOMÃO, Patrícia. O Princípio do Devido Processo Legal. Disponível em: <https://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=866>. Acesso em 25 de março de 2017.

SILVA, José Afonso. Aplicabilidade da norma constitucional. 4ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

 ______. Curso de direito constitucional positivo. 24. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

SINHORETTO, Jacqueline. Linchamentos: insegurança e revolta popular. Revista Brasileira de Segurança Pública. Ano 3. Ed. 4. Fev./Mar. 2009.

SINHORETTO, Jacqueline. Linchamentos: insegurança e revolta popular. Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/artigo%20jaqueline.pdf> Acesso em 12 de dezembro de 2016.

STJ - Agravo Regimental No Recurso Especial AgRg no REsp 908077 RN 2006/0267124-1 (STJ). Disponível em:<

https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=Linchamento> Acesso em 12 de dezembro de 2016. 

TELLES, André. A Revolução Das Mídias Sociais. Disponível em: http://www.andretelles.net.br/downloads/a-revolucao-das-midias-sociais-andre-telles.pdf>. Acesso em 14 de março de 2017.

TÔRRES, Fernanda Carolina. O direito fundamental à liberdade de expressão e sua extensão. Revista de Informação Legislativa. Dez. 2013. Disponível em: <https://www2. senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/502937/000991769.pdf?sequence=1>. Acesso em 02 de março de 2016. 

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. Vol.1. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

 

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Dialles Nogueira Barros

Advogado. Formado pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco-FACESF. Pós-Graduado em Direito Público Municipal pela Faculdade de Petrolina (FACAPE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Dialles Nogueira. Os discursos desconectados e a ideia de justiça social dos linchadores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5342, 15 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62856. Acesso em: 4 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos