Mulheres operárias e sindicalistas em tempos de ditadura

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16/12/2017 às 09:42
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Neste artigo, analisar-se-ão as atuações das mulheres nos movimentos sindicais e operários brasileiros, no contexto da ditadura-civil militar que se instalou em 1964.

INTRODUÇÃO

A participação das mulheres no cenário político foi quase sempre um tema demasiado controverso. Praticamente excluídas da narrativa historiográfica tradicional, que se contentava em produzir cenários capitaneados quase que exclusivamente por homens, o tema das mulheres, paulatinamente, com a historiografia contemporânea, tem, felizmente, passado a receber pesquisas e considerações em volume e, principalmente, em qualidade merecidos. Não obstante, poucos hão de negar que, fatalmente, abundam lacunas. Ao mesmo tempo, mesmo porque são escassas as fontes, é preciso proceder cautelosamente a fim de evitar resvalar-se para um tratamento romanesco da questão, que certamente pouco agregaria no sentido de avanços.

Em razão disso, pretendemos analisar apenas simples e brevemente a composição e atuação do movimento operário brasileiro durante o contexto da ditadura, tendo sempre em vista os papéis político e social nele ocupados pelas mulheres. Para tanto, em uma primeira etapa pretendemos traçar um panorama geral do movimento sindical brasileiro durante a Primeira República. Depois, passaremos ao período Vargas, investigando as suas implicações no sentido de rupturas e continuidades com os governos anteriores relativamente ao mundo do trabalho e atuação dos sindicatos.

Em seguida, debruçar-nos-emos sobre o tema que verdadeiramente nos toca – o período em que nos encontramos governados por uma ditadura civil-militar. Abordaremos as principais transformações sociais, políticas e econômicas acarretadas com a ascensão dos militares, e depois veremos como atuaram as mulheres nesse período, tomando como exemplo o caso da greve de Contagem, em 1968.

Por fim, cabe um sucinto esclarecimento. Em face da manifesta impossibilidade de tracejar um paralelo direto entre o texto e o filme assinalados como base para este trabalho, pois enquanto o primeiro dedica-se a examinar as dinâmicas do movimento operário e sindicalista brasileiro no curso da ditadura militar, o segundo exibe-nos os percalços de um grupo de mulheres anarcofeministas que lutam pela igualdade de direitos na Argentina em fins do século XIX. A aproximação entre as duas obras deu-se apenas em seu sentido último – o movimento de trabalhadores e o movimento de mulheres –, razão pela qual forçosamente constatar-se-á a raridade de citações diretas ao texto e ao filme.


DESENVOLVIMENTO

1. Primeira República (1889 – 1930) – situação de trabalho das mulheres, participação nos movimentos operários e opinião pública e moralidade social.

Ordinariamente, as pesquisas historiográficas costumam indicar as duas décadas finais do século XIX como tendo sido um período de fundamental significado para o desenvolvimento do Brasil, pois não foi, com efeito, senão a partir desse momento que os fenômenos de industrialização e urbanização passaram a manifestar-se de modo verdadeiramente sensível.[1] 

Observadas as características desse processo que se põe em curso, percebemos que a industrialização brasileira, de forma absolutamente distinta da industrialização desenvolvida em solo europeu, esta gestada longa e gradualmente no curso de mais de séculos, a partir da progressiva modernização do artesanato e da pequena manufatura, com o paulatino aparecimento de novas maquinarias e tecnologias e seu constante aprimoramento, deflagrou-se da maneira curiosamente abrupta, em grande medida recorrendo-se à importação da já velha tecnologia europeia – o que, diga-se de passagem, entravou substancialmente a formação e amadurecimento de uma tecnologia industrial nacional –, largamente financiada pelo “mundo agrário tradicional”.[2]

Nesses períodos iniciais, certamente a industrialização era demasiado incipiente, havendo ainda a coexistência de algumas poucas fábricas, direcionadas em geral para a fabricação de lã e para a tecelagem, com várias pequenas oficinas de artesanato e manufatura que se distribuíam por todo o panorama urbano.{C}[3] Em certa medida, a debilidade industrial brasileira nessas duas décadas finais do século XIX e mesmo no início do século XX pode explicar o baixo grau de organização dos movimentos operário e sindical, que se reduziam ainda a alguns poucos grupos sem, ainda, expressão política que se dissesse significativa no cenário nacional.

No entanto, é preciso considerar um outro fator, certamente de maior potencial explicativo. A formação da chamada classe operária a partir desses homens e mulheres trabalhadores não se revela enquanto uma implicação direta do surgimento dessa massa que passa a empregar-se nas fábricas e nas indústrias. Pelo contrário, a consciência de pertencimento a uma classe tem como assento, antes, a representação comum que essas pessoas cultivam de si, o sentimento de que pertencem a uma realidade vivencial compartilhada reciprocamente, a compreensão de que se sujeitam a condições e expectativas comuns, a formação de uma genuína consciência de classe, a qual, infalivelmente, constitui-se apenas de uma prática política mais ou menos longa.[4]

O operariado brasileiro, desde o princípio, formou-se de modo bastante heterogêneo: compunham-no muitos emigrantes europeus, homens negros, em grande número oriundos do mundo escravista, mulheres e crianças.

As mulheres, o grupamento que ora nos importa, empregou-se predominantemente nos setores da indústria têxtil e de vestuário, constituindo, em algumas ocasiões, mesmo em parcela majoritária. Em grande parte o emprego considerável dessa mulheres na indústria justificou-se fundamentalmente pelos menores salários que lhes eram pagos.[5]

Contudo, é preciso ter em conta uma circunstância dessa ocupação feminina do mercado de trabalho. Com efeito, o direcionamento das mulheres para atividades relativamente mais brandas e que não exigiam o dispêndio de considerável força física, como a tecelagem e a costura, guardava respaldo na crença, comum e largamente partilhada em sociedade, da mulher como sexo frágil, e que, sendo inevitável o ingresso de mulheres no mercado de trabalho, a fim de estas tomarem parte na manutenção do lar, que elas desempenhassem funções mais afeitas ao “seu temperamento e à sua constituição física”, funções paralelas às que anteriormente executavam no encerro dos lares.

É certo que, amparadas em uma visão profundamente tradicional e conservadora, de índole muitas vezes judaico-cristã, reforçada pelas igrejas e associações religiosas, e bem ainda apoiadas em discursos pretensamente científicos, houve muitas reações a essa passagem das mulheres do âmbito privado para o público, as quais alegavam que o seu lugar natural não era senão o recolho dos lares, onde estas poderiam dedicar-se integralmente à sua vocação do matrimônio e da maternidade, para os quais, inegavelmente, haviam sido destinadas.

Tendo-o diante dos olhos, não nos surpreende que essas mulheres fossem sistematicamente perseguidas pela opinião pública, frequentemente representadas caricaturalmente, sendo concebidas como imorais, corrompidas, rebeldes que negavam as suas funções naturais de mulher; e perseguidas também pelos próprios movimentos operário e sindical, supostamente “progressistas”, fossem eles de matriz cristã, socialista, comunista ou anarquista.[6] Nesse sentido, sobremaneira ilustrativa nos é a passagem de Ni dios, ni patrón, ni marido em que, em uma reunião de uma organização anarquista de trabalhadores, composta em maioria por homens, sapateiros, tipógrafos, comerciantes etc., em certo momento manifestam-se sérias reações às demandas da única mulher que participa e mesmo à sua participação naquele grupo, evidenciando o sentimento que “ali não era espaço para mulheres”.

No movimento operário brasileiro, durante toda a sua trajetória, esse sentimento se fez grandemente presente. Como veremos, doravante, no caso específico do movimento operário e sindical brasileiro durante a ditadura militar, sobretudo no contexto de greves, as mulheres ocupavam posições invariavelmente de baixa representação, secundárias e subalternas. Vemos essa mesma sub-representação nos movimentos de início do século XX, em que, mesmo em setores tipicamente ocupados por mulheres, como as associações de trabalho têxteis, raramente encontrar-se-iam mulheres ocupando posições de diretoria, hierarquicamente superiores.[7]

Por fim, não podemos também afastar a ideia de que essa mesma representação que se elaborara a respeito das mulheres trabalhadoras funcionava como fundamento interno para que os empregadores, em sua absoluta maioria constituídos por homens, incidissem reiteradamente em práticas de assédio moral e abusos físicos e sexuais, perseguindo e demitindo funcionárias que não se submetessem ao seu “apetite”, ao seu “legítimo poder” sobre elas.[8]

Não podemos nos olvidar, conquanto, em geral, esse aspecto seja suprimido de diversas narrativas historiográficas sobre o período, que a greve geral de 1917, talvez a primeira manifestações de trabalhadores a assumir dimensões mais ou menos nacionais, teve princípio com a revolta de tecelãs insatisfeitas com as situações de humilhação, com os abusos sexuais e com as condições de trabalho degradantes a que eram diuturnamente submetidas.[9]

Até a década de 30, a relação do Estado brasileiro com os movimentos operários e sindicatos e suas demandas deu-se fundamentalmente no sentido da repressão violenta, caracterizada pelo fechamento de sindicatos, que eram em geral proibidos, e perseguição de militantes e diretores. Bem que Washington Luiz tenha, ainda na década de 20, por exemplo, regulamentado o trabalho de mulheres e de menores de idade, a assistência obrigatória ao trabalhador e a questão a respeito dos acidentes de trabalho, que eram bastante frequentes na época, tais medidas jamais se implementaram na prática. O que se verifica é que imperava na mentalidade dos governantes a crença de que a questão social e operária era fruto de ideias deletérias que haviam sido insidiosamente importadas da Europa, sem qualquer relação com o contexto brasileiro, tendo, pois, que ser sistematicamente combatidas.[10]


2.A ascensão de Vargas: rupturas e continuidades no mundo do trabalho e nos sindicatos. 

Com a ascensão de Vargas ao poder, ocorre uma profunda reestruturação do sindicalismo e dos movimentos operários no Brasil. De fato, o Estado brasileiro passar a atuar ativamente junto à sociedade, no combate à pobreza, que passa a ser vista como um mal e um atraso ao progresso nacional, e aos sindicatos, cuja existência passar a ser permitida, embora detalhadamente regulamentada em lei. No entanto, os sindicatos em geral ocupam nesse novo cenário posições de caráter assistencialista, de amparo aos trabalhadores, de instrumento do Estado social que se implementava.[11]

Outorga-se[12], exaltando-se o caráter paternalista do governo getulista, uma ampla legislação trabalhista, previdenciária e sindical, com a criação da Justiça do Trabalho, em 1939, consolidada na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, com a organização científica e racional do trabalho, a partir da “concepção totalista de trabalho”, a qual propugnava uma atuação do Estado em todas as condições de vida dos trabalhadores, na saúde, na educação, na habitação, nas condições sanitárias e na alimentação, a fim que ele tivesse melhores condições para trabalhar e, pois, maior produtividade. Homologam-se leis e decretos institucionalizado o salário mínimo, a semana de 48 horas, férias remuneradas, carteira profissional, jornada de oito horas; especificamente quanto às mulheres, reconhecem-se algumas garantias às mulheres grávidas e lactantes, como a licença-maternidade e auxílios às trabalhadoras grávidas; as diferenças salarias por sexo, idade, nacionalidade ou estado civil são pela primeira vez vedadas.[13]Ao mesmo tempo, veiculava-se nos rádios e jornais uma forte propaganda ideológica, que, em última medida, exaltava aos trabalhadores o valor do trabalho e os benefícios que o governo Vargas lhes trouxera. [14]

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Por outro lado, os trabalhadores e militantes que vão de encontro ao governo Vargas, organizando protestos, passeatas e greves, são duramente repreendidos pela polícia política, que se utiliza sistematicamente da força física na repressão, revelando uma série de continuidades com as práticas políticas da Primeira República. Esses trabalhadores são indistintamente taxados de comunistas. Muitos são presos, por vezes postos em trens e abandonados a quilômetros de distância do seu local de origem; trabalhadores estrangeiros são deportados. A atuação dos sindicatos e dos trabalhadores sindicalizados era de perto e constantemente vigiada, a fim de mantê-los disciplinados e ordeiros.[15]

Relativamente à condição das mulheres nesse novo cenário que se estabelece, constata-se a conservação da mesma representação que, enquanto reputa ao homem a imagem de “trabalhador digno”, que se enobrece pelo esforço e pelo suor, ativo no progresso contínuo da civilização brasileira, “pai de família”, cultivador da disciplina e da ordem, celebra as virtudes de mãe e esposa da mulher, que cuida dos filhos e dá suporte material ao homem a fim de que este possa trabalhar.[16] Nos sindicatos, da expressiva ausência de referência a participações ativas de mulheres nas linhas de frente de manifestações e greve e na ocupação de funções diretoriais, podemos deduzir que continuaram a ser invisibilizadas, certamente encontrando graves entraves à sua atuação nesses espaços.

Por fim, quanto ao período compreendido entre a retomada do regime democrático, em 1945, com a renúncia de Vargas e a eleição de Gaspar Dutra para a presidência da república por voto popular direto, e a instalação do regime ditatorial civil-militar a partir da realização do golpe, em abril de 1964, mesmo a escassa literatura feminista a respeito da participação das mulheres nos movimentos de trabalhadores não nos fornece esclarecimentos relevantes sobre o estado de coisas para as mulheres no período. Embora, reconhecemos, seja um tanto perigoso determinar tais ou quais conclusões acerca de um contexto e período históricos sem a devida comprovação documental e bibliográfica, podemos afirmar que possivelmente pouco de novo houve nas condições das mulheres no espaço do trabalho nesse entrementes.


3.         A ditadura militar (1964-1985) 

3.1       Transformações sociais, econômicas e políticas 

Por assim dizer, os anos de 1950 foram uma década de ouro para o movimento operário e sindical brasileiro, após as fortes repressões que havia sofrido nos governos de Getúlio Vargas (1930-1945) e Gaspar Dutra (1946-1951). Sob a liderança praticamente hegemônica do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, no final de década, passa a assumir o controle da vasta maioria dos sindicatos no país[17], os trabalhadores urbanos e rurais intensificam cada vez mais a realização da greves e paralisações, exigindo melhores condições de trabalho e assistência e lutando contra a carestia de vida. Nesse contexto, temos como patente indício do recobro de ânimo do movimento operário a assim chamada “Greve dos 300 mil”, organizada em São Paulo, reivindicando aumento de salários.[18]

No entanto, com o golpe civil-militar de 1964 e a chegada ao poder de Castelo Branco (1964-1967), o movimento operário, até no momento tão promissor, é desestruturado tanto em suas bases como em sua cúpula. Militantes e líderes diretoriais são perseguidos e presos. Na prática as greves, taxadas genericamente de “greves políticas”, passam a ser proibidas, havendo, a partir de então, um controle imediato das atividades sindicais, cujo teor assistencialista passa a ser incentivado pelo governo. Ao mesmo tempo, o governo estabelece uma sólida política de “arrocho salarial” para alívio da inflação, que passará pouco a pouco a ser o objeto das greves que logo depois tomariam palco. A esquerda, por sua vez, antes relativamente unificada em torno do PCB, fragmenta-se em várias correntes, que passam, cada qual, a tentar afirmar a sua legitimidade e titularidade no comando das lutas operárias no cenário nacional. Nesse fracionamento no espectro da esquerda, percebem-se duas correntes fulcrais: uma que vai optar por uma saída mais democrática, através mesmo da penetração gradual nas estruturas do poder, representada em grande parte pelo PCB, outra mais radical, a qual vislumbrará na luta armada a única panaceia possível para contornar a situação em que se encontravam.[19]

No entanto, a despeito da forte repressão sobre as organizações sindicais e a composição de greves, exercidas tanto no plano legislativo quanto no plano direto da ação policial, durante toda a ditadura militar e, sobretudo, nos período em que esta começou a dar visíveis sinais de desgaste, já no final da década de 70, com a falência do “milagre brasileiro”, aumento de inflações e demissões em massa de trabalhadores, não falta o registro de surgimento de práticas reivindicativas e da ocorrência de muitas greves em variados pontos do Brasil, algumas, inclusive, tendo assumindo proporções gigantescas.

Nos setores urbanos, as mulheres situam-se à frente de movimentos como o Movimento Nacional contra a Carestia, a Luta por Creches, o Movimento Brasileiro pela Anistia e os Centros de Mulheres.[20] Verifica-se também um aumento da mão-de-obra feminina e do número de mulheres sindicalizadas. Certamente, a participação dessas mulheres em movimentos de esquerda, diferentemente daquelas que, nas manifestações anteriores ao golpe de 64 organizadas por mulheres favoráveis à ditadura em defesa da família e da reafirmação dos seus papeis de esposas, mães e donas-de-casa, era um rompimento fragoroso com a estrutura social e moral vigentes.

No entanto, como buscamos destacar, a atuação efetiva dessas mulheres, embora fosse de encontro a uma ordem estabelecida e representasse, de modo infalível, um considerável avanço, não foi suficiente para que se superassem alguns papéis e lugares que historicamente lhes foram atribuídos.

Infelizmente, quando buscamos colher informações a respeito do período, o que nos ressalta patente é a inafastável ausência de fontes sobre a participação política feminina durante a ditadura, sem embargo da vasta literatura historiográfica que durante as últimas décadas têm-se debruçado sobre o tema e suas implicações. Ainda assim, identificamos alguns relatos sumamente interessantes a respeito das circunstâncias em que se deu a atuação das mulheres durante a greve de Contagem, em 1968, e as representações que sobre ela se delinearam, a qual, juntamente com as greves de Osasco e do ABC paulista, na década seguinte, consagrou-se como uma das mais emblemáticas do período ditatorial. Cabe ressaltar, no entanto, que as conclusões a que chegaremos em avanço não podem, ao menos com a devida certeza, ser generalizadas, embora ao menos a experiência e a intuição nos deem relevantes mostras do contrário.

3.1 As mulheres e o movimento operário e sindical – a greve em Contagem (1968)

Contagem, município pertencente à região metropolitana de Belo Horizonte, desde a década de 1940 ocupava-se por uma importante Cidade Industrial para a região de Minas Gerais. Tendo-se desenvolvido inteiramente apenas na década de 1960, a Cidade Industrial de Contagem concentrava um grande número de indústrias têxteis, alimentícias, eletrônicas e pequenas metalurgias. Enquanto os homens, por um lado, empregavam-se nas atividades de siderurgia e metalurgia pesada, as mulheres, por seu turno, dedicavam-se a atividades mais “brandas”.[21]

Nos anos anteriores a 1968, constatava-se já uma intensa agitação nas fábricas da região. Organizações de esquerda, como a Ação Popular (AP), composta predominantemente por cristãos progressistas, a Corrente Revolucionária e o Comando de Libertação Nacional (Colina), através da instalação de comissões clandestinas no interior das fábricas, atuavam politizando e exacerbando os ânimos dos trabalhadores, concitando-os a ingressar em dissídios e lutar por melhores salários e condições de trabalho. Acresça-se que, conquanto o ano de 1968 fosse já de franca ascensão do milagre econômico brasileiro, conservavam-se as penosas medidas de contenção dos salários e a péssima qualidade de vida dos trabalhadores. [22]

No dia 16 de abril, em um contexto de frequentes demissões, falências de empresas, atrasos no pagamento de salário e suspensão de direitos civis, 1200 trabalhadores, filiados e não-filiados a sindicatos, da siderúrgica Belgo-Mineira da Cidade Industrial decidem paralisar as suas atividades, exigindo aumento de 25% nos salários, acima do teto de 17% proposto pelo governo, e melhorias nas condições de trabalho. Pouco a pouco, trabalhadores de diversas outras empresas, como os da Mannesman e da Sociedade Brasileira de Eletrificação (SBE) passam a integrar o movimento, que uma semana depois contava já com mais de 15.000 trabalhadores em greve e 20 empresas paralisadas.[23]

Nessa greve, assim como na de Osasco, nota-se, embora raramente apareça nos relatos oficiais, a presença de mulheres dirigentes sindicais e em posições de liderança, bem que em minoria.[24] No palco da greve, criam-se os Comitês de Apoio à Greve, compostos majoritariamente por mulheres, em cujas funções encontravam-se a de arrecadar dinheiro, distribuir alimentos e itens básicos aos grevistas e noticiar através de boletins a condição em que se encontravam os trabalhadores. Um retrato muitíssimo semelhante se veria mais de uma década depois, durante as greves que tomaram palco na região do ABC paulista no final da década de 1970, em que se organizaram “mutirões” de auxílio aos trabalhadores, compostos sobremaneira por mulheres.[25]

Não obstante, conforme nos alerta Magda Neves, as memórias que se tecem sobre períodos históricos e eventos é masculina e as mulheres, nessas memórias, acabam por ser secundarizadas, relegadas ao plano do auxílio e da colaboração aos homens. Disso resulta a necessidade de se pensar se não são mais ou menos distorcidas essas representações, e analisar pontos em que as mulheres exerceram papéis preponderantes.

Em efeito, muitas trabalhadoras também lutavam por seus direitos e garantias sem, no entanto, necessariamente estarem vinculados a sindicatos, partidos ou organizações. Como supramencionado, muitas mulheres formaram e compuseram associações de solidariedade, associações de bairro que lutavam por melhorias em níveis de infraestrutura local e saneamento; outras, com seus maridos perseguidos e demitidos de seus empregos em razão da participação em sindicatos e organizações clandestinos, viram-se obrigadas a prover o sustento material da família. Certamente esses silêncios referentes à participação de mulheres, ainda que, amiúde, involuntários, tem como fundamento a mesma crença, que já assinalamos acima, de que o espaço natural das mulheres é o privado, enquanto o público deve ser dominado pelos homens.

Ao mesmo tempo, tem-se por certo que a participação dessas mulheres no cenário político não se pautava em medida considerável por uma agenda verdadeiramente feminista – ainda que constatemos, por exemplo, o fenômeno do “desbunde”, que, ao romper em larga medida com os padrões morais vigentes e frustrar as expectativas construídas sobre o comportamento da mulher, constituía-se como um ato feminista[26]. Efetivamente, as esquerdas brasileiras apenas vieram a ter contato com essas novas correntes de crítica a partir do retorno de muitos exilados pelo governo, os quais, tendo também de fugir do Chile, em princípio a sua primeira rota de fuga, após a ascensão de Pinochet, em 1973, tomaram conhecimento na Europa do precioso legado deixado pelas manifestações de maio de 1968 na França.[27]

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