Depois do conturbado segundo mandato de Dilma Roussef (PT) tornou-se elemento cada vez mais presente nas discussões políticas do país a proposta de alteração do sistema de governo, variando as proposições entre parlamentarismo e semipresidencialismo/semiparlamentarismo. Alguns partidos, que já tinham a adoção de tal sistema de governo como pauta política retomaram a ideia, além de já tramitarem diversas propostas de Emenda à Constituição sobre a temática no Congresso Nacional.
A questão é controvertida sob diversos aspectos, sendo especialmente contestada por setores críticos ao impeachment recentemente sofrido pela então Chefe do Poder Executivo, que tendem a vislumbrar na proposta uma tentativa de impedir que no futuro um novo governo popular ou de esquerda possa voltar ao poder, o que é mais fácil em sistemas presidencialistas do que em sistemas parlamentarizados, que dariam, de algum modo, poder de controle do legislativo – notadamente da Câmara dos Deputados – sobre o executivo.
Recentemente até mesmo um ministro da Suprema Corte, assumindo protagonismo político cada vez maior, inclusive fora daquele órgão, encampou abertamente a proposta, tendo gerado mal-estar em Brasília a autuação como Proposta de Emenda à Constituição a proposição em tal sentido encaminhada por ofício seu, apesar da manifesta ilegitimidade do proponente, o que foi, posteriormente, justificado como erro.
Existem diversos aspectos a serem considerados, e aqui falaremos apenas de alguns (pois a conformação concreta do sistema pode variar bastante, e terá que ser apreciada ao longo das discussões e alterações na proposta que podem ocorrer durante 2018).
Entre as objeções mais frequentes à proposta encontra-se aquela que considera que a adoção de referido sistema de governo já foi rechaçada por mais de uma vez, inclusive por consulta popular. Há inclusive quem sustente que o sistema de governo seria inalterável por Emenda à Constituição, diante da sistemática peculiar estabelecida no art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Este argumento não será aqui aprofundado e sobre ele nos posicionaremos adiante, partindo-se aqui da premissa da alterabilidade do sistema de governo em situações de normalidade, como se verá adiante. O mais relevante aqui parece ser a discussão sobre o seguinte problema: eventual aprovação da proposta de emenda poderia – constitucionalmente – vigorar desde logo, aplicando-se às eleições de 2018? A resposta, apesar da complexidade da questão, parece ser negativa.
Embora se conheçam as divergências sobre a eficácia das normas constitucionais quanto ao tempo, entre outros aspectos, e a despeito da tendência atual às teorias no sentido da eficácia imediata, há fortes razões no próprio sistema constitucional positivo a apontar em sentido contrário, no caso em exame, pelas razões a serem explicitadas brevemente no presente ensaio.
Inicialmente ressalte-se que a alteração do sistema de governo, embora não seja alteração no sistema eleitoral em sentido estrito, tem evidentes e fortíssimos impactos sobre o sistema eleitoral. A racionalidade e a atitude de candidatos, partidos e principalmente eleitores, é completamente diferente em sistemas presidencialistas, parlamentaristas e em sistema híbridos – semipresidencialistas ou semiparlamentaristas.
Com efeito, no presidencialismo a regra é a condução das principais questões de governo, tais como política econômica, social, fiscal e outras, pelo chefe do Poder Executivo – Presidente – o que torna a eleição “simples” – no sentido de ser essencialmente calcada no elemento pessoal (além de ser majoritária e de dois turnos) e apesar do elemento partidário – que no Brasil é referência normalmente tênue para as preferências dos eleitores.
Embora o presidente necessite do apoio do Legislativo para inúmeras questões, a função do último é preponderantemente de controle e, portanto, a lógica da eleição dos parlamentares é diferente e “menos importante” – no sentido de que o parlamento não exerce funções de governo mais intensamente, pelo menos de forma direta e institucionalizada. Além disso, é importantíssimo frisar que em situações de normalidade do legislativo é incapaz, em sistemas presidencialistas, de afastar o chefe de governo, o que confere grau importante de independência a este em face daquele e que impede a sujeição do executivo ao legislativo, normalmente.
Nos sistemas parlamentaristas ou parlamentarizados, com fortes variações conforme o modelo concreto adotado, as posições do órgão legislativo e do chefe do executivo mudam drasticamente. As funções de governo são exercidas preponderantemente pelo primeiro ministro ou são divididas entre este e o presidente (o que muda profundamente o sentido e a importância da eleição presidencial).
Seja como for, há um incremento significativo no exercício das funções de governo pelo parlamento, pois este não apenas designa o gabinete ou ministério e o primeiro ministro – no parlamentarismo, por exemplo –, mas pode exercer controle intenso sobre a atividade governamental, ao exercer faculdades como as de aprovar ou rejeitar planos ou propostas de governo, ou de poder, de forma mais ou menos ampla, aprovar moções de censura ou votos de desconfiança que podem acarretar a demissão do gabinete e do primeiro ministro. Isso também muda drasticamente o sentido da eleição para o parlamento.
Embora essas constatações sejam mais verdadeiras para o parlamentarismo do que para o semipresidencialismo, em ambos há uma significativa expansão das funções governativas do parlamento. Ou seja, nesses sistemas, a eleição do parlamento é significativamente “mais importante” do que no presidencialismo, e a eleição presidencial não possui o mesmo significado que no presidencialismo.
Dizendo de outro modo: o eleitor “pode” levar “menos a sério” as eleições parlamentares em sistema presidencialista, dado o relevo do chefe do Executivo, nas quais tende a focar sua atenção. E o eleitor precisa levar muito “mais a sério” as eleições parlamentares em sistema parlamentarista, dada a ampliação de suas funções governativas.
Ouso dizer ser preciso um conhecimento muito mais profundo do sistema de governo parlamentarista e uma cultura política distinta para que este funcione, diversamente do que ocorre no presidencialismo, sistema de governo muito mais simples do que aquele. Isso se torna ainda mais complexo quando o órgão legislativo que exercerá poderes de governo (Câmara dos Deputados) é composto pelo sistema proporcional, de compreensão complexa para o eleitor (vale lembrar que muitos brasileiros não compreendem, por exemplo, como um candidato a deputado pode ser eleito com votação pessoal menor do que um candidato com mais votos, em função do sistema do quociente – e não coeficiente – eleitoral e da legenda ou coligação).
Em uma democracia o exercício do sufrágio por meio do voto não pode ser meramente formal, devendo implicar escolha consciente e substancial do eleitor, devendo haver opções reais de influência deste na condução do governo, sob pena de constituir-se a democracia em mero simulacro. Não sendo assim, teremos que considerar democráticas as democracias “populares” do passado e do presente, de partido único, cujas eleições sabidamente são meramente plebiscitárias.
As eleições são o único elemento, episódico e intermitente, na qual a “soberania popular” é exercida. Para que o seja de fato, e não apenas de maneira formal, é necessário que o eleitor entenda o sentido do ato eleitoral e do ato de votar. Em país com tradição secular de presidencialismo e de personalização da política – temos presidencialismo desde 1890 e poucos episódios de parlamentarismo, efêmeros no período republicano – há que se ter cuidado, pois a mudança do sistema para qualquer nuance de parlamentarismo, ainda mais de inopino e por razões obscuras, pode levar a resultados eleitorais não desejados nem remotamente pelo eleitor, e nem por ele compreendidos.
Como quem governará, de fato, não será mais o presidente, mas este em conjunto com o primeiro ministro, ou até mesmo preponderantemente este último, conforme a variante adotada, não faz sentido que o eleitor dirija-se às urnas com “mentalidade presidencialista”.
Por isso, se levarmos a democracia a sério, estas alterações, se for o caso de serem promovidas, teriam de ser antecedidas não apenas por amplo debate e, após a aprovação do modelo, se ocorrer, com todas as matizes e nuances possíveis, o sistema deveria ser objeto de uma ampla campanha informativa (e não publicitária), sendo amplamente explicado aos eleitores, em linguagem didática e não persuasiva, durante tempo prolongado, para que estes possam compreender a mudança de peso no voto “presidencial” de no voto “parlamentar”. Isso é imperativo para que não haja fraude à efetiva vontade popular e ao art. 14 da Constituição Federal, que estatui a soberania popular.
A mudança do sistema de governo de inopino, a toque de caixa, em ano eleitoral, ainda que por Emenda à Constituição, indica assistir razão aos críticos à adoção como uma medida antidemocrática e reacionária, uma espécie de prevenção contra a possibilidade de eleição de um novo governo popular (cada vez mais plausível diante das medidas impopulares e da altíssima rejeição do atual governo e congresso), e reduz a democraticidade de nosso sistema, pois afasta ainda mais o eleitorado de uma efetiva participação nos rumos do governo no país. Por isso tudo, se a proposta visar implementação imediata, será inconstitucional.
Recorde-se que para mudanças bem mais modestas – mudanças no sistema eleitoral – a própria Constituição de 1988 estabelece a inaplicabilidade de alterações às eleições realizadas até um ano de sua entrada em vigor, ou seja, de sua publicação (art. 16). Repito: embora mudança de sistema de governo não se encaixe no conceito de mudança do sistema eleitoral (pois pode implicar, mas não implica necessariamente a mudança deste), do ponto de vista formal, a mudança do sistema de governo tem impactos eleitorais enormes, e, portanto, a racionalidade da constituição, ao restringir a vigência temporal de normas que alteram o processo eleitoral, há que se aplicar à mudança da forma de governo.
Desse modo, sustenta-se que a proposta PEC somente será constitucional se previr expressamente que não se aplicará às eleições de 2018. Caso não o faça, será manifestamente inconstitucional, por violação ao art. 14 da Constituição e a um princípio implícito ao art. 16: o do fair play democrático, devendo assim ser declarada pelo Supremo Tribunal Federal em ação de controle abstrato deflagrada por qualquer legitimado, seja com redução de texto, seja sem, para conferir-lhe interpretação conforme, de modo que se aplique apenas após as eleições de 2018.
Esta é a única interpretação capaz de salvaguardar os diversos valores envolvidos: de um lado a modificabilidade (relativa) da constituição, cujos limites devem ser os expressamente previstos no § 4º do art. 60, pelo menos em princípio, e, de outro, a “soberania popular”, albergada no art. 14 da Constituição Federal e, ainda, pelas mesmas razões que inspiram norma constitucional expressa, a saber, o art. 16 da CF/88: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.”
Há um argumento adicional importante: o voto direto é cláusula constitucional intangível (art. 60 § 4º II). Há que se indagar se parlamentarismo é compatível com voto direto, no sentido empregado pela constituição, pois o sistema opera, na prática, como uma espécie de eleição indireta do chefe de governo: o eleitor vota para um presidente “castrado” e para um parlamento e este opera, em um segundo momento, como uma espécie de colégio eleitoral, elegendo o chefe de governo. Não é absurdo questionar se tal fórmula é compatível com o voto direto. Mas esta questão é mais complexa e sua discussão não cabe aqui, neste primeiro ensaio.
Quanto à alegada intangibilidade do sistema de governo diante das peculiaridades estabelecidas pelo art. 2º do ADCT, mencionada no início do ensaio, não parece ser questão simples e fácil. De um lado, não parece razoável entender que tal temática seja imutável e intangível. É bastante evidente para quem tenha um pouco de familiaridade com sistemas políticos e constitucionais que elementos como sistema de governo e sistema eleitoral sejam alteráveis. A única observação a se fazer aqui é que isso se aplica a situações de normalidade institucional. Em situações de forte instabilidade institucional, como a presente, na qual a “operação Lava Jato” e o recente impeachment, entre outros elementos, geram uma crise importante de legitimidade em tal espécie de alteração, e diante dos elevadíssimos níveis de rejeição e descontentamento do eleitorado para com o governo e o parlamento, há que se tomar cuidado com tal tema, extremamente sensível de um ponto de vista democrático e eleitoral, como visto.
Aliás, não é outra a razão que inspira disposições constitucionais como a contida no art. 60§ 1º, que veda a emenda à Constituição em situações de anormalidade ali elencadas (não se está aqui a propor uma ampliação hermenêutica da norma, mas a chamar a atenção para uma analogia entre as situações). Em síntese, a mudança do sistema de governo para vigorar imediatamente, em ano eleitoral, não nos parece constitucionalmente viável por seus fortíssimos impactos no sistema democrático e eleitoral, diante, entre outros elementos, dos arts. 1º, caput e parágrafo único, 14 e 16 da Constituição, e, possivelmente, do art. 60 § 4º II.