INTRODUÇÃO
O Direito Penal protege apenas os bens juridicamente relevantes, ficando afastado, pois, os bens jurídicos considerados inexpressivos. O Direito Penal deve ser considerado a ultima ratio, não sendo razoável sua incidência em casos bagatelares. A seguir ficará demostrado que a infração bagatelar está diretamente relacionada com a aplicação do princípio da insignificância.
Existe em nossa doutrina e jurisprudência uma grande problemática quando o roubo é praticado para a subtração de bens que são considerados insignificantes para o Direito Penal, onde, pela posição majoritária, é inaplicável o princípio da insignificância, sob o argumento de que os bens tutelados por tal crime são indisponíveis. Porém, o que deve ser observado é que o reconhecimento da tipicidade material não está na qualidade do bem tutelado, mas na ofensa efetiva ou provável do bem tutelado. Neste sentido, se esta ofensa efetiva ou provável ao bem jurídico tutelado não ocorrer, deveria ser cabível a aplicação de determinado princípio.
1 PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
1.1 ORIGEM E PRINCÍPIOS FUNDAMENTADORES
O surgimento, propriamente dito, do Princípio da Insignificância é tema bastante polêmico, não se podendo determinar o termo exato de seu advento.
Há, basicamente, duas teorias que relatam essa origem, sendo elas: a que sustenta seu surgimento no Direito Romano, em que o brocardo minima non curat praetor era utilizado e o pretor, magistrado encarregado da administração da justiça, de maneira geral, não se ocupava dos delitos de bagatela, corrente esta defendida por Diomar Ackel Filho e Carlos Vico Manas (1994); e a segunda , conforme sustenta Maurício Antônio Ribeiro Lopes (1997), que nega a origem do Princípio no Direito Romano, pelo fundamento de que a máxima supra era aplicada, apenas, pala ótica civil e não pela penal, argumentando que o direito romano desenvolveu-se muito mais sob a ótica do direito privado do que do direito público.
Notoriamente, fica claro que atualmente o princípio da insignificância não se restringe apenas à esfera patrimonial. No entanto, no período que vai do início da Primeira Guerra Mundial até o fim da Segunda Guerra Mundial, era utilizado em delitos dessa espécie. Durante os conflitos bélicos, a precária situação socioeconômica proporcionou um considerável aumento de pequenos saques que ficaram conhecidos por “delitos de bagatela”. Devido a estes casos, as forças sociais mobilizaram-se a fim de exigir soluções para este quadro. Com isso, após a análise do contexto socioeconômico do pós-guerra, o princípio da insignificância foi formulado, nos moldes atuais, por Claus Roxin, com sua construção em 1964, permitindo a exclusão da tipicidade nos casos de dano de pouca importância, fazendo com que o direito penal seja utilizado como ultima ratio.
O princípio da insignificância, teve na doutrina brasileira, Francisco de Assis Toledo como seu precursor.
De acordo com Francisco de Assis Toledo (2001, p.133/134):
Welzel considera que o princípio da adequação social bastaria para excluir certas lesões insignificantes. É discutível que assim seja. Por isso, Claus Roxin propôs a introdução, no sistema penal, de outro princípio geral para a determinação do injusto, o qual atuaria igualmente como regra auxiliar de interpretação. Trata-se do denominado princípio da insignificância, que permite, na maioria dos tipos, excluir os danos de pouca importância. Não vemos incompatibilidade na aceitação de ambos os princípios que, evidentemente, se completam e se ajustam à concepção material do tipo que estamos defendendo.
Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas [...].
Atualmente, são inúmeros os princípios fundamentadores da insignificância. Porém, deve-se dar destaque a dois deles, quais sejam, o da Intervenção Mínima e o da Proporcionalidade.
O Princípio da Proporcionalidade dispõe que a pena deve ser proporcional à gravidade da infração praticada, de maneira que, quanto mais grave o delito, maior a pena. É nessa ótica que o princípio da insignificância aparece, afastando a punição excessiva que viria a ser aplicada por ocasião da prática de ato de mínima lesividade, mas que se enquadrou perfeitamente ao tipo penal descrito em lei, e desestimulando a prática de condutas mais graves, diante de consequências praticamente idênticas.
Sobre o Princípio da Intervenção Mínima, Cezar Roberto Bitencourt (2010 apud. Greco, 2006, p. 51) expressa de maneira muito eficaz seus argumentos quando diz:
O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas, e não as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade.
Como ficou demonstrado, o princípio da intervenção mínima consiste na possibilidade de aplicação de outros ramos do Direito nos casos de menor ofensividade, ou seja, é a abstenção do Direito Penal quando for possível atingir a eficácia e o objetivo da norma de maneira menos gravosa, sendo aplicado como ultima ratio.
1.2 CONCEITO
Relevante se faz a conceituação do princípio da insignificância, para um melhor entendimento de seu âmbito de abrangência, bem como para traçar os limites de sua atuação.
Assim, segundo Antonio García-Pablos de Molina e Luiz Flávio Gomes (2000, p. 315/316), pode-se afirmar que o Princípio da Insignificância:
é o que permite não processar condutas socialmente irrelevantes, assegurando não só que a Justiça esteja mais desafogada, ou bem menos assoberbada, senão permitindo também que fatos nímios não se transformem em uma sorte de estigma para seus autores. Do mesmo modo, abre a porta para uma revalorização do direito constitucional e contribui para que se imponham penas a fatos que merecem ser castigados por seu alto conteúdo criminal, facilitando as reduções dos níveis de impunidade. Aplicando-se este princípio a fatos nímios se fortalece a função da Administração da Justiça, porquanto deixa de atender fatos nímios para cumprir seu verdadeiro papel. Não é um princípio de direito processual, senão de Direito penal.
Ademais, como bem elucidou Maurício Antônio Ribeiro Lopes (1997, p. 51):
o princípio da insignificância pode ser conceituado como aquele que permite infirmar a tipicidade de fatos que, por sua inexpressividade, constituem ações de bagatela, despidas de reprovabilidade, de modo a não merecerem valoração da norma penal, exsurgindo, pois, como irrelevantes. A tais ações, falta o juízo de censura penal.
No Brasil, o princípio da insignificância é um princípio puramente doutrinário, não existe definição no ordenamento jurídico, seja em leis, códigos ou até na Constituição Federal.
Segundo o princípio da insignificância, portanto, o direito penal, por sua natureza fragmentária só vai até aonde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve se ocupar de bagatelas, por ser uma causa supralegal, excludente da ilicitude.
1.3 TIPICIDADE
A insignificância faz parte do tipo penal, especificamente na tipicidade material, amplamente contemplada pela doutrina e jurisprudência brasileira.
Tem-se por tipicidade a justaposição, ou seja, o enquadramento entre a conduta do agente ao tipo penal.
Mister se faz uma análise da tipicidade formal e material, que é a subdivisão da tipicidade.
1.1.3.1 TIPICIDADE FORMAL
Do ponto de vista formal, o fato é considerado típico quando houver a adequação ao tipo legal do crime, ou seja, à letra da lei, que é a descrição do conjunto dos requisitos linguísticos, literais ou gramaticais fundamentadores de determinada forma de ofensa ao bem jurídico (GOMES, 2007).
Nesse sentido, afirma Francisco de Assis Toledo (2001) que tipicidade formal é um juízo formal de subsunção, que decorre da “função de garantia” do tipo, para que se observe o princípio da anterioridade da lei penal.
Para a configuração de um fato típico, é certo, que devem estar presentes alguns requisitos, quais sejam, a conduta voluntária, resultado, tipicidade e o nexo de causalidade. Assim, a falta de um destes requisitos, considerados elementares, conduz à atipicidade, a qual ocorre quando uma conduta fática, ou seja, a conduta do agente, não corresponder à descrição típica da norma em abstrato, de maneira que a tipicidade formal restará excluída, inexistindo, assim, fato típico.
Tipicidade formal, nas palavras de Rogério Greco (2010, p.152):
[...] quer dizer, assim, a subsunção perfeita da conduta praticada pelo agente ao modelo abstrato previsto na lei penal, isto é, a um tipo penal incriminador. A adequação da conduta do agente ao modelo abstrato previsto na lei penal (tipo) faz surgir a tipicidade formal ou legal. Essa adequação deve ser perfeita, pois, caso contrário, o fato será considerado formalmente atípico.
Com isto, podemos observar que tipicidade formal é a conformidade do fato praticado pelo agente com a moldura abstrata descrita na lei penal.
1.1.3.2 TIPICIDADE MATERIAL
Agora, importante se faz a análise da tipicidade material, ou seja, em que situações nos depararemos com a tipicidade material, de modo a tornar mais compreensível o afastamento desta quando aplicado o princípio da insignificância. Segundo Cleber Masson (2011, p.244):
[...] tipicidade material (ou substancial) é a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico penalmente tutelado em razão da prática da conduta legalmente descrita. A tipicidade material relaciona-se intimamente com o princípio da ofensividade (ou lesividade) do Direito Penal, pois nem todas as condutas que se encaixam nos modelos abstratos e sintéticos de crimes (tipicidade formal) acarretam dano ou perigo ao bem jurídico. É o que se dá, a título ilustrativo nas hipóteses de incidência do princípio da insignificância, nas quais, nada obstante a tipicidade formal, não se verifica a tipicidade material.
A concepção material da tipicidade penal consiste na exigência de a conduta típica ser concretamente lesiva ao bem jurídico tutelado, ou seja, na efetiva lesão ao bem jurídico tutelado pelo tipo, em razão do conteúdo valorativo do tipo penal, traduzido em verdadeiro modelo de conduta proibida, o qual não é apenas pura imagem formal, eminentemente diretiva.
Se mostra evidente, que a simples adequação formal da conduta do agente ao tipo penal não é suficiente, por si só, à configuração da tipicidade.
Deste modo, preceitua Luiz Flávio Gomes (2007, p. 60) que “o Direito Penal moderno não é um puro raciocínio de lógica formal. É necessário considerar o sentido humanístico da norma jurídica. Toda lei tem um sentido teleológico”
Nesse mesmo sentido:
HABEAS CORPUS. FURTO. 1 BICHO DE PELÚCIA, UMA ALMOFADA DE PELÚCIA E DOIS CHAVEIROS. CRIME DE BAGATELA. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. PRECEDENTES DO STJ E DO STF. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. ORDEM CONCEDIDA, TODAVIA, PARA, APLICANDO O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA, DECLARAR ATÍPICA A CONDUTA PRATICADA, COM O CONSEQUENTE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.
[...] Como cediço, por imperativo do princípio da legalidade, somente a adequação total da conduta do agente ao tipo penal incriminador faz surgir a tipicidade formal ou legal. No entanto, esse conceito não é suficiente para a concretude da tipicidade penal, uma vez que essa deve ser analisada também sob a perspectiva de seu caráter material, tendo como base a realidade em que a sociedade vive, de sorte a impedir que a atuação estatal se dê além do reclamado pelo interesse público [...].
É de mister importância destacar os elementos da tipicidade material. Segundo Antonio García-Pablos de Molina e Luiz Flávio Gomes (2000) eles são divididos em três juízos valorativos, sendo eles, juízo de desaprovação da conduta, juízo de desaprovação do resultado e imputação objetiva do resultado e, nos crimes dolosos, sua constatação, bem como de outros eventuais requisitos subjetivos especiais.
Deste modo, segundo o Ministro Celso de Mello, o princípio da insignificância afasta a tipicidade material:
DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. ATIPICIDADE. TIPICIDADE FORMAL E MATERIAL. ANTINORMATIVIDADE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. PARÂMETROS E CRITÉRIOS. MÍNIMA OFENSIVIDADE DA CONDUTA DO AGENTE. AUSÊNCIA DE PERICULOSIDADE SOCIAL DA AÇÃO. REDUZIDO GRAU DE REPROVABILIDADE DO COMPORTAMENTO. INEXPRESSIVIDADE DA LESÃO JURÍDICA PROVOCADA. [...] Consoante critério de tipicidade material (e não apenas formal), excluem-se os fatos e comportamentos reconhecidos como de bagatela, nos quais tem perfeita aplicação o princípio da insignificância. O critério da tipicidade material deverá levar em consideração a importância do bem jurídico possivelmente atingido no caso concreto. [...]
Neste mesmo sentido, discorre Cleber Masson (2011, p.23) sobre o afastamento da tipicidade quando houver incidência do referido princípio:
Este princípio, calcado em valores de política criminal, funciona como causa de exclusão da tipicidade material, desempenhando uma interpretação restritiva do tipo penal. Para o Supremo Tribunal Federal, a mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica constituem os requisitos de ordem objetiva autorizadores a aplicação desse princípio.
Carlo Vico Mañas (1994, p.81), discorrendo sobre este tema assim se posiciona:
O princípio da insignificância, portanto, pode ser definido como instrumento de interpretação restritiva, fundado na concepção material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma socialmente relevante os bens jurídico protegidos pelo direito penal.
Com efeito, segundo preceitua Luiz Flávio Gomes (2007) o posicionamento que prevalece atualmente é no sentido da aceitação do princípio da insignificância como causa de exclusão da tipicidade, com o entendimento de que, na lesão ou na conduta insignificante, o fato que pode ser caracterizado formalmente típico pode, todavia, não o ser materialmente.
Mister se faz transcrever o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Consoante bem observado pelo Ministro Celso de Mello, na decisão proferida no Habeas Corpus 84.412/SP:
E M E N T A: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO - CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - "RES FURTIVA" NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. - O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. [...]
Assim, conforme pode ser observado com tais posicionamentos, o princípio da insignificância exclui a tipicidade material do crime, agindo como descriminalizante ou, em outras palavras, como excludente de tipicidade.
1.4 REQUISITOS PARA APLICAÇÃO
1.4.1 TRIBUNAIS
Em termos jurisprudenciais, o Supremo Tribunal Federal (2005) quando do julgamento do HC 84412-SP, estabeleceu critérios para aplicação do princípio da insignificância. In verbis:
E M E N T A: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO - CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - "RES FURTIVA" NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. - O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: "DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR". - O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.” (grifo nosso)
O Superior Tribunal de Justiça, da mesma forma que o Superior Tribunal Federal, reconhece esses quatro requisitos como imprescindíveis:
PENAL. RECURSO ESPECIAL. TENTATIVA DE FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INCIDÊNCIA. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE MATERIAL. TEORIA CONSTITUCIONALISTA DO DELITO. INEXPRESSIVA LESÃO AO BEM JURÍDICO. RECURSO IMPROVIDO. 1. O princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, consagrando os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima. 2. Indiscutível a sua relevância, na medida em que exclui da incidência da norma penal aquelas condutas cujo desvalor da ação e/ou do resultado (dependendo do tipo de injusto a ser considerado) impliquem uma ínfima afetação ao bem jurídico. 3. A tentativa de subtrair a quantia em dinheiro de R$ 62,00, embora se amolde à definição jurídica do crime de furto tentado, não ultrapassa o exame da tipicidade material, mostrando-se desproporcional a imposição de pena privativa de liberdade, uma vez que a ofensividade da conduta se mostrou mínima; não houve nenhuma periculosidade social da ação; a reprovabilidade do comportamento foi de grau reduzidíssimo e a lesão ao bem jurídico se revelou inexpressiva. 4. Recurso especial improvido. (grifo nosso)
Desta forma, a jurisprudência tem aplicado os seguintes critérios para verificação da aplicação de referido princípio: ausência de periculosidade social da ação; mínima idoneidade ofensiva da conduta; falta de reprovabilidade da conduta, e inexpressividade da lesão jurídica causada. Somente a presença cumulativa deles é que permite o reconhecimento do princípio da insignificância.
1.4.2 DOUTRINA
A maioria da doutrina segue os mesmo requisitos impostos pelo Superior Tribunal Federal para a aplicação do princípio da insignificância. Todavia, Guilherme de Souza Nucci traz regras diferentes para a aplicação deste.
Nucci (2011, p. 231/232) assim se posiciona:
Há três regras, que devem ser seguidas, para a aplicação do princípio da insignificância:
1ª) consideração do valor do bem jurídico em termos concretos.
É preciso certificar-se do efetivo valor do bem em questão, sob o ponto de vista do agressor, da vítima e da sociedade. Há determinadas coisas, cujo valor é ínfimo sob qualquer perspectiva (ex.: um clipe subtraído de uma folha de papel não representa ofensa patrimonial relevante em universo algum). Outros bens têm relevo para a vítima, mas não para o agressor (ex.: uma peça de louça do banheiro de um barraco pode ser significativa para o ofendido, embora desprezível para o agressor). Neste caso, não se aplica o princípio da insignificância. Há bens de relativo valor para agressor e vítima, mas muito acima da média do poder aquisitivo da sociedade (ex: um anel de brilhantes pode ser de pouca monta para pessoas muito ricas, mas é coisa de imenso valor para a maioria da sociedade). Não se deve considerar a insignificância;
2ª) consideração da lesão ao bem jurídico em visão global.
A avaliação do bem necessita ser realizada em visão panorâmica e não concentrada, afinal, não pode haver excessiva quantidade de um produto, unitariamente considerado insignificante, pois o total da subtração é capaz de atingir valor elevado (ex.: subtrair de um supermercado várias mercadorias, em diversas ocasiões, pode figurar um crime de bagatela numa ótica individualizada da conduta, porém, visualizando-se o total dos bens, atinge-se valor relevante).
Além disso, deve-se considerar a pessoa do autor, pois o princípio da insignificância não pode representar um incentivo ao crime, nem tampouco constituir uma autêntica imunidade ao criminoso habitual. O réu reincidente, com vários antecedentes, mormente se forem considerados específicos, não pode receber o benefício da atipicidade por bagatela. Seria contraproducente e dissociado do fundamento da pena, que é a ressocialização do agente. A reiteração delituosa, especialmente dolosa, não pode contar com o beneplácito estatal;
3.ª) consideração particular aos bens jurídicos imateriais de expressivo valor social.
Há diversos bens, penalmente tutelados, envolvendo o interesse geral da sociedade, de modo que não contêm um valor específico e determinado. O meio ambiente, por exemplo, não possuí valor traduzido em moeda ou em riqueza material. O mesmo se diga da moralidade administrativa ou do respeito aos mortos, dentre outros. Portanto, ao analisar o crime, toma-se essencial enquadrar o bem jurídico sob o prisma soc1al merecido.
Não se quer com isso sustentar a inviabilidade total de aplicação da insignificância para delitos, cujo bem jurídico é de interesse da sociedade. O ponto de relevo é dar o devido enfoque a tais infrações penais, tendo cuidado para aplicar o princípio ora examinado. Ilustrando, um policial, que receba R$ 10,00 de propina para não cumprir seu dever, permite a configuração do crime de corrupção passiva, embora se possa dizer que o valor dado ao agente estatal é ínfimo. Nesse caso, pouco importa se a corrupção se deu por dez reais ou dez mil reais. Afinal, o cerne da infração penal é a moralidade administrativa.
De outra sorte, fisgar um único peixe, em lago repleto deles, embora proibido, permite a figuração da bagatela, ainda que se trate de delito ambiental.
Pelo exposto, observa-se que a doutrina traz critérios que diferem dos elencados pelos Tribunais, sendo que para Guilherme de Souza Nucci é necessário a observação de outras regras, quais sejam, consideração do valor do bem jurídico em termos concretos, consideração da lesão ao bem jurídico em visão global, e consideração particular aos bens jurídicos imateriais de expressivo valor social.