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Cancelamento do registro profissional à luz da Lei n. 5.194/66:

sanção de âmbito administrativo que se diferencia do regime penal

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01/01/2019 às 15:10
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4.    Tipo sancionador aberto

É inegável que o dispositivo legal traz pouca objetividade, o que vai de encontro ao princípio da tipicidade. Os termos má conduta pública e escândalo, situações autorizadoras do cancelamento do registro profissional, são conceitos vagos e juridicamente indeterminados, sendo certo que sua definição perpassa pelo momento em que será analisado e aplicado, pois isso pode mudar de acordo com o momento em que a sociedade vive. O que foi escândalo ou má conduta pública há alguns anos pode não ser mais hoje ou vice-versa. O mesmo ocorre com o termo crime infamante que não tem definição na seara penal.

No entanto, não se pode perder de vista que se trata de normas de cunho administrativo e não penal, são dois sistemas diferentes que apesar de estarem sob a égide de uma mesma constituição, tem regimes e princípios diferentes.

Sobre esta dicotomia, vejamos as pertinentes observações de Fábio Osório Medina, em seu livro Direito Administrativo Sancionador:

“A diversidade de regimes jurídicos é formal e substancial, o direito administrativo veicula suas normas com finalidade e objetivos restritos ao campo de incidência que lhe é próprio. O direito penal tem um campo de incidência teoricamente mais amplo. O Direito Administrativo pode ser aplicado por autoridades administrativas ou judiciais, sendo estas pertencentes à esfera extrapenal. Já o direito penal depende dos Juízes com jurisdição penal. O elemento formal da sanção administrativa é o processo, judicial ou administrativo, extrapenal. O elemento formal das sanções penais é o processo penal. Esses veículos processuais são substancialmente distintos. A interpretação penal é distinta da interpretação administrativa. Distintos são os princípios que presidem uma e outra política repressiva, tendo em conta a radicalidade maior do direito penal, que possui potencialidade de privar o ser humano da liberdade. O princípio da intervenção mínima é mais acentuado no direito penal. O interesse público possui um alcance e uma importância radicalmente maior no Direito Administrativo do que no direito penal.

A regra, enfim, é a existência de diferenças, não de identidades entre os direitos penal e administrativo sancionador. Nesse ponto, cabe lembrar que a existência de diferenças ocorre em grau acentuado, de tal sorte que se justifica a invocação de regimes distintos para essas duas realidades.

(...)

Se é certo que o Direito Administrativo Sancionador possui garantias mais reduzidas que as do direito penal, isso se dá, fundamentalmente, por que seus objetivos estão intimamente vinculados à busca de interesses gerais e púbicos, o que impede uma contaminação penalista ‘inspirada exclusivamente por la obsesión de las garantias individuales.’” (OSÓRIO 2000, 117 ss)

Restando claro que não se está diante de uma sanção no âmbito do direito penal e sim uma sanção administrativa, é certo que as garantias e o tratamento são diferenciados.

De acordo com os ensinamentos de Maria Sylvia, a aplicação do cancelamento do registro pode ser considerada como ato discricionário, podendo se considerar que a discricionariedade está no motivo do ato. Vejamos o que a autora diz:

“O motivo será discricionário quando:

(...)

2. a lei define o motivo utilizando noções vagas, vocábulos plurissignificativos, os chamados conceitos jurídicos indeterminados, que deixam à administração a possibilidade de apreciação segundo critério de oportunidade e conveniência administrativa; é o que ocorre quando a lei manda punir o servidor que praticar ‘falta grave’ ou ‘procedimento irregular’, sem definir em que consistem; ou quando a lei prevê o tombamento de bem que tenha valor artístico ou cultural, também sem estabelecer critérios objetivos que permitam o enquadramento do bem nestes conceitos.” (DI PIETRO 2007, 200)

A discricionariedade é muito comum quando envolve conceitos de valor. Sobre este aspecto, Di Pietro, 2007 afirma que : “Já nos casos de conceito de valor, como os de moralidade, interesse público, utilidade pública etc. a discricionariedade pode existir, embora não signifique liberdade total, isenta de qualquer limite.”

O dispositivo legal, ao prever o cancelamento pela prática de má conduta pública, escândalo ou crime infamante utiliza-se de conceitos jurídicos indeterminados e isto é possível no âmbito do direito administrativo, conferindo discricionariedade ao órgão julgador. Esta é uma técnica legislativa que confere maior adequabilidade da norma ao contexto social vivido, já que nem sempre é possível exaurir todas as hipóteses possíveis e o processo de alteração das leis é complexo e demorado.

O autor Claude Pasteur, em seu livro, afirma que o que se define como comportamento escandaloso pode variar a depender de várias circunstâncias, devendo sempre o aplicador da sanção agir com cautela. (FARIA 2016)

Assim dispõe o referido autor:

“A análise do que possa ser considerado um comportamento escandaloso depende de circunstâncias, subjetivas, geográficas, temporais, culturais e morais. Deve ser um comportamento que atinja a sensibilidade e afete a dignidade do ‘homem médio’ pertencente à comunidade profissional.

Desse modo, deve o aplicador da sanção sopesar com cuidado e parcimônia os fatos trazidos a julgamento para verificar se a conduta do profissional se enquadra em algum dos muitos conceitos e definições possíveis para as expressões ‘escândalo’ e ‘má conduta pública’.” (FARIA 2016, 198 ss)

Em que pese a existência de conceitos indeterminados na lei, às vezes a matéria de fato permite tornar este conceito determinado. Exemplifica Di Pietro, 2007 o seguinte: “É o caso, por exemplo, da expressão notório saber jurídico; ela é indeterminada quando aparece na lei, porém pode tornar-se determinada pelo exame do currículo da pessoa a que se atribui essa qualidade”. Penso que, diante do caso de um profissional engenheiro, investigado pela operação lava-jato por envolvimento em corrupção e lavagem de dinheiro, que, usando de sua profissão e seus conhecimentos de engenharia, esteja envolvido em crimes que promoveram o desvio de milhões de reais, diante de gravações, delações e confissões amplamente divulgadas na mídia, pode restar configurado o escândalo preconizado pela lei, visto que certamente macula a imagem da profissão.

Osório, 2000, reconhece em seu livro que a legalidade é flexível no campo das atuações estatais sancionadoras amparadas no direito administrativo, o que reforça a tese de que são dois sistemas diferentes e que não se pode aplicar todas as garantias do direito penal ao direito administrativo sancionador. Vejamos algumas considerações do autor:

“Não se desconhece que a legalidade da atividade sancionadora que se fundamenta no Direito Administrativo possui uma certa flexibilidade. Isso decorre da ausência de algumas ‘amarras’ que normalmente escravizam as normas penais. É uma consequência, inclusive, da maior elasticidade competencial do Estado neste terreno.

(...)

As leis jurídicas mudam com grande rapidez, tendem a proteger bens jurídicos mais expostos à velocidade dos acontecimentos e transformações sociais, econômicas, culturais, de modo que o Direito Administrativo Sancionador acompanha esta realidade e é, por natureza, mais dinâmico do que o direito penal, cuja estabilidade normativa já resulta da própria competência estrita da União Federal.

Nesse passo, a legalidade das infrações administrativas e das sanções é composta no mais das vezes, por conceitos altamente indeterminados, cláusulas gerais que outorgam amplos espaços à autoridade julgadora, seja ela administrativa ou judicial. ” (OSÓRIO 2000, 205)

    O direito penal exige uma tipicidade rigorosa para configuração do ilícito penal, diferentemente do direito administrativo, sobre este assunto; Antônio Carlos Alencar Carvalho escreve:

“No direito penal, contudo, exige-se que cada elemento do tipo seja rigorosamente configurado para que a conduta seja considerada típica e consumativa do ilícito criminal. Se um só dos elementos do modelo de conduta criminosa não estiver presente, o fato é atípico.

Já no campo do direito administrativo, embora o princípio da segurança jurídica exija a definição dos fatos puníveis e das penas correspondentes para conhecimento dos servidores destinatários, tanto que doutrinadores de vanguarda têm encimado a tipicidade no campo do direito administrativo disciplinar como pressuposto da responsabilidade funcional no caso de condutas sujeitas a sanções mais graves, o tipo disciplinar não se compõe, em todos os casos, da exposição minuciosa dos elementos da conduta típica, variando o grau de rigor a esse respeito conforme a maior gravidade da sanção imputável _ em casos de demissão, demanda-se a mais estreita proximidade da ação em face do modelo hipotético de conduta punível.

(...)

Mas há tipos disciplinares, em parte abertos, cujos elementos deferem certa discricionariedade para que a autoridade administrativa proceda ao enquadramento da conduta, o que revela substancial distinção diante dos ilícitos penais, fechados. São as faltas passíveis de demissão classificadas como, respectivamente, as hipóteses dos incisos IX e XV do art. 117 e incisos V e VI do art. 132, todos da Lei Federal 8112/90: valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública; proceder de forma desidiosa; incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição; insubordinação grave em serviço.

Nessas hipóteses, pois, há possibilidade de a autoridade administrativa aquilatar, com alguma liberdade, os conceitos de proveito, inclusive extrapatrimonial, ou prejuízo à dignidade da função pública; o de procedimento desidioso; o de incontinência em público; o de escândalo na conduta no recinto da repartição; o de gravidade do ato de insubordinação. São tipos relativamente abertos, a despeito de corresponderem a penas gravíssimas (destituição do cargo em comissão, demissão, cassação de aposentadoria), no que se distinguem, portanto, dos crimes cujos elementos (fora os tipos penais em branco, aqueles em que segundo Rogério Greco, o preceito primário da norma criminal é incompleto, dependendo de complementação por outro diploma ou norma regulamentar ou administrativa para se compreender seu âmbito de aplicação) são minuciosamente previstos, de forma exaustiva, na lei penal.” (CARVALHO 2011, 77 ss)

O desejável é que as normas fossem completas, com conteúdo denso e isentas de conceitos indeterminados, como forma de dar ampla segurança jurídica aos administrados, mas a realidade do nosso sistema não é essa, como já explicitado anteriormente é muito comum a utilização de conceitos indeterminados notadamente no campo do direito administrativo sancionador, como por exemplo, o artigo 75 da lei 5194/66, escopo do presente trabalho, que trata do cancelamento do registro profissional.

Embora seja criticável a técnica legislativa utilizada, ela não torna as normas que se utilizam de conceitos indeterminados inconstitucionais e nem impossibilita completamente a sua aplicação. É certo que para a aplicação será necessário garantir a ampla defesa e contraditório e ainda utilizar-se da proporcionalidade e razoabilidade _ a decisão deve ser bem motivada e fundamentada, atentar para todas as circunstâncias fáticas e considerar o grau de reprovabilidade da ação. É preciso ter em mente que estamos diante de uma norma de direito administrativo e não de direito penal; e que o direito administrativo visa a proteger o interesse público, e não o privado. As garantias individuais serão respeitadas com o devido processo legal e com uma fundamentação suficiente da autoridade sancionadora.

Cláudio Luzatti, apud Osório, 2000 apresenta-nos a expressão “vagueza socialmente típica” expressão que dispõe sobre as normas jurídicas que apresentam cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. Vejamos o entendimento do autor:

“Desse modo, a expressão ‘vagueza socialmente típica’, formulada por Cláudio Luzzati, indica os casos de emprego legislativo de expressões programaticamente vagas, verificáveis quando ‘algum termo, segundo uma certa interpretação, exprime um conceito valorativo cujos critérios aplicativos não são sequer determináveis senão através da referência aos variáveis parâmetros de juízo e às mutáveis tipologias da moral social e do costume’. O critério para a aplicação das normas vagas nesta acepção, será constituído por valores objetivamente assentados pela moral social, aos quais o juiz é reenviado. Trata-se de utilizar ‘valorações tipicizantes das regras sociais, porque o legislador renunciou a determinar diretamente os critérios (ainda que parciais) para a qualificação dos fatos, fazendo implícito ou explícito reenvio a parâmetros variáveis no tempo e no espaço (regras morais, sociais e de costume)’”. (OSÓRIO 2000, 213)

Considerando que inúmeras vezes, por opção do legislador, há a utilização de conceitos indeterminados, resta ao aplicador da norma sancionadora a escolha razoável e fundamentada, como bem leciona Fábio Medina Osório, 2000 ao dispor que os conceitos jurídicos indeterminados “comportam margens de apreciação dos intérpretes, dos aplicadores das normas sancionadoras, dentro de pautas de razoáveis escolhas, sempre vedada a arbitrariedade. ”

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Com o intuito de dirimir dúvidas e nortear melhor a atuação dos aplicadores da sanção de cancelamento do registro profissional foi editada a Resolução 1090/2017 pelo CONFEA. Há que se registrar, no entanto, que a possibilidade de cancelamento decorre da lei e não da Resolução e assim sendo era possível o cancelamento do registro profissional mesmo antes da edição da referida Resolução, desde que se observasse claro a razoabilidade, proporcionalidade com respeito ao devido processo legal.

Não há que se falar em inovação e completude indispensável do Art. 75 pela Resolução 1090/17. Indiscutivelmente, a referida resolução vem trazer conceitos menos abstratos, mas ainda assim, esta traz em seu bojo diversos conceitos jurídicos indeterminados.

Diferentemente da doutrina penal, que estabelece a existência de normas penais em branco (as quais dependem da completude de outras normas para sua aplicação), no direito administrativo sancionador isso não ocorre necessariamente. O cancelamento do registro profissional pode ser aplicado com a interpretação dos conceitos jurídicos indeterminados de acordo com os costumes e morais vigentes à época, desde que se respeite o devido processo legal e que a decisão seja fundamentada e lastreada na razoabilidade e proporcionalidade.

Em que pese tenhamos deixado bem claro que na aplicação do cancelamento do registro estamos diante de uma sanção inerente ao regime administrativo e não penal, trazemos à baila, breve explanação de Damásio de Jesus que diferencia norma penal em branco de tipo penal aberto, tal raciocínio pode ser aplicado ao presente caso, pois  o artigo da lei que possibilita o cancelamento do registro profissional mais se assemelha ao tipo penal aberto do que à norma penal em branco, pois não há obrigatoriedade e nem previsão na lei da necessidade de outra norma que defina o que é má conduta, escândalo ou crime infamante.

Vejamos os conceitos apresentados e a diferenciação feita por Damásio de Jesus:

“As normas penais podem ser completas e incompletas. Completas são as que definem o delito de maneira precisa e determinada, não necessitando de nenhum complemento. Ex.: Pedro, dolosamente, mata José. O fato se enquadra imediatamente no art. 121, caput, do CP, que descreve o crime de homicídio doloso. Leis penais incompletas, também denominadas "cegas", "abertas" ou normas penais em branco, são disposições incriminadoras cuja sanção é certa e precisa, permanecendo indeterminado o seu conteúdo. Este é completado por um ato normativo, de origem legislativa ou administrativa, em geral de natureza extrapenal, que passa a integrá-lo. Ex.: nos termos do art. 168-A do CP,[3] que define a apropriação indébita previdenciária, constitui delito o fato de "deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e na forma legal" (ou convencional; itálico nosso). Qual é o prazo? A norma não o menciona, cumprindo buscá-lo na Lei de Custeio da Previdência Social (arts. 30, I, "b", V e 31). A sanção vem determinada, ao passo que a definição legal do crime é incompleta, condicionada a dispositivos extrapenais. De modo que, nesses casos, a adequação típica depende do complemento de outras normas jurídicas ou da futura expedição de certos atos administrativos (regulamentos, portarias, editais etc.). A pena é imposta à transgressão (desobediência, inobservância) de uma norma (legal ou administrativa) a ser emitida no futuro.

(...)

Norma penal em branco não se confunde com o tipo aberto, aquele que não apresenta a descrição típica completa e exige uma atividade valorativa do Juiz. Nele, o mandamento proibitivo inobservado pelo sujeito não surge de forma clara, necessitando ser pesquisado pelo julgador no caso concreto. São hipóteses de crimes de tipo aberto:

a) delitos culposos: neles, é preciso estabelecer qual o cuidado objetivo necessário descumprido pelo autor;

b) crimes omissivos impróprios: dependem do descumprimento do dever jurídico de agir (CP, art. 13, § 2.º);

c) delitos cuja descrição apresenta elementos normativos ("sem justa causa", "indevidamente", "astuciosamente", "decoro", "dignidade", "documento", "funcionário público" etc.): a tipicidade do fato depende da adequação legal ou social do comportamento, a ser investigada pelo julgador diante das normas de conduta que se encontram fora da definição da figura penal.

Assim, diferenciam-se normas penais em branco e elementos normativos do tipo (c). Nestes casos, não se cuida de uma complementação do tipo por meio da aplicação de outro mandamento derivado da mesma instância ou inferior, como nas normas penais em branco, e sim da compreensão da existência ou não de violação do dever de agir ou de não agir em face de regras legais e de cultura.

Neste tema, cumpre não esquecer o princípio fundamental de "conformidade à Constituição": é necessário, seja o tipo aberto ou remetido, haja elemento normativo ou se apresente caso de norma penal em branco, que a interpretação e a aplicação da lei se realizem obedecidos os princípios constitucionais, sob pena de atipicidade do fato.” (JESUS ano 6, n. 51, 1 out. 2001).

Usando por analogia o direito penal, resta claro que a disposição legal que trata do cancelamento do registro profissional não é uma norma em branco que depende necessariamente da edição de outra norma para produzir efeitos, não há menção na lei de expressões como: na forma da lei ou do regulamento ou resolução. No entanto, apesar de não ser um normativo indispensável para aplicação da lei a edição da Resolução 1090 é muito importante para trazer mais segurança jurídica e aumentar a efetividade da fiscalização do exercício profissional como bem apontou o relatório de auditoria realizado pela CGU.

É importante ainda observar que a referida Resolução ainda traz conceitos jurídicos indeterminados, mas já é um avanço no sentido de exemplificar e tentar trazer mais segurança para os profissionais inscritos e mais uniformidade para o sistema Confea-Crea.

Vejamos os conceitos e exemplificações dos termos contidos na lei que ensejam o cancelamento do registro profissional, como má conduta pública, escândalo e crime infamante.

“ CAPÍTULO I

DAS DEFINIÇÕES

Art. 2º Para os fins desta resolução, considera-se:

I - má conduta pública: a atuação incorreta, irregular, que atenta contra as normas legais ou que fere a moral quando do exercício profissional;

II - escândalo: aquilo que, quando do exercício profissional, perturba a sensibilidade do homem comum pelo desprezo às convenções ou à moral vigente, ou causa indignação provocada por um mau exemplo, por má conduta pública ou por ação vergonhosa, leviana, indecente, ou constitui acontecimento imoral ou revoltante que abala a opinião pública;

III - crime infamante: aquele que acarreta desonra, indignidade e infâmia ao seu autor, ou que repercute negativamente em toda a categoria profissional, atingindo a imagem coletiva dos profissionais do Sistema Confea/Crea;

IV - imperícia: a atuação do profissional que se incumbe de atividades para as quais não possua conhecimento técnico suficiente, mesmo tendo legalmente essas atribuições;

V - imprudência: a atuação do profissional que, mesmo podendo prever consequências negativas, pratica ato sem considerar o que acredita ser fonte de erro; e

VI - negligência: a atuação omissa do profissional ou a falta de observação do seu dever, principalmente aquela relativa à não participação efetiva na autoria do projeto ou na execução do empreendimento.

CAPÍTULO II

DO ENQUADRAMENTO

Art. 3º São enquadráveis como má conduta ou escândalos passíveis de cancelamento do registro profissional, entre outros, os seguintes atos e comportamentos:

I - incidir em erro técnico grave por negligência, imperícia ou imprudência, causando danos;

II - manter no exercício da profissão conduta incompatível com a honra, a dignidade e a boa imagem da profissão;

III - fazer falsa prova de qualquer dos requisitos para o registro no Crea;

IV - falsificar ou adulterar documento público emitido ou registrado pelo Crea para obter vantagem indevida para si ou para outrem;

V - usar das prerrogativas de cargo, emprego ou função pública ou privada para obter vantagens indevidas para si ou para outrem;

VI - ter sido condenado por Tribunal de Contas ou pelo Poder Judiciário por prática de ato de improbidade administrativa enquanto no exercício de emprego, cargo ou função pública ou privada, caso concorra para o ilícito praticado por agente público ou, tendo conhecimento de sua origem ilícita, dele se beneficie no exercício de atividades que exijam conhecimentos de engenharia, de agronomia, de geologia, de geografia ou de meteorologia; e

VII - ter sido penalizado com duas censuras públicas, em processos transitados em julgado, nos últimos cinco anos.

Art. 4º O enquadramento da infração por crime considerado infamante dependerá da apresentação da decisão criminal transitada em julgado.”[3] 

Pois bem, compulsando as definições e previsões da Resolução 1090/2017 percebe-se claramente que ainda há o emprego de vários conceitos indeterminados, quando por exemplo se refere à atuação incorreta, irregular, que fira normas legais ou a moral, mau exemplo, acontecimento imoral, conduta incompatível com a honra, dignidade, boa imagem da profissão. Enfim, a resolução não resolveu o problema de indefinição da lei e trouxe no artigo 4º exemplos de condutas que podem ser enquadradas como má conduta e escândalo, sem distinguir uma espécie da outra, como se má conduta pública e escândalo fossem a mesma coisa. Há no entanto, que se considerar que as hipóteses previstas no artigo 4º não são taxativas e sim exemplificativas, uma característica bem comum aos tipos abertos, pois pela própria mudança e evolução da sociedade e conceitos, não é possível prever com precisão conceitos relativos sobretudo à moral e ética. Aí mais uma vez se utiliza de uma possibilidade do direito administrativo que é a maior flexibilidade das normas com a utilização de conceitos indeterminados e cláusulas gerais que outorgam amplos espaços à autoridade julgadora.

A Resolução 1090/2017 acertou quando deixou claro que o cancelamento por crime infamante depende de sentença penal transitada em julgado e quando não misturou o tratamento do crime infamante com a má conduta pública ou escândalo, vez que são conceitos independentes, má conduta pública e escândalo não necessariamente são crimes, são antes condutas que ferem a moralidade, a honra, a boa imagem e a ética da profissão, aspectos que não são considerados ou apreciados pelo Direito Penal.

Merece aplausos ainda a referida resolução no tocante à previsão da reabilitação para o exercício profissional e à previsão da condução do processo, quando atentando-se para disposições já existentes na lei de processo administrativo e para a garantia da ampla defesa e contraditório prevê a necessidade de indicação expressa desde o início do processo de possível violação ao Art. 75 da Lei 5194/66 para que o profissional tenha conhecimento do objeto da apuração e das possíveis penas aplicáveis e exerça seu amplo direito de defesa.

Há questionamentos sobre a previsão do cancelamento do registro profissional após a aplicação de duas censuras públicas, se esta seria uma inovação da resolução e consequentemente a criação de hipótese não prevista na lei. A lei traz as hipóteses claras de possibilidade de cancelamento: má conduta pública, escândalo ou crime infamante, não há dentre elas a hipótese de aplicação de duas censuras públicas.

Os defensores do cancelamento do registro profissional após duas censuras públicas argumentam que não se trata de inovação, pois esta situação se enquadraria na má conduta pública, já que quando o profissional descumpre a ética profissional e recebe uma censura pública, a reprovabilidade de sua conduta passa a ser pública e a reiteração de infração ao código de ética com nova aplicação de uma censura pública seria sim uma má conduta pública.

É um entendimento razoável, mas com a devida vênia, é uma inovação e criação de penalidade por resolução o que seria ilegal. Isto porque já existe a previsão de penalidades por descumprimento do código de ética profissional que ensejam a aplicação de censura pública, o cancelamento é uma aplicação extrema para os casos previstos na lei, não é para qualquer profissional que descumpra o código de ética, sendo certo que o reiterado descumprimento do código de ética não é automaticamente uma má conduta pública.

É indispensável a existência de robusta fundamentação do enquadramento do ato praticado como má conduta pública, não se sustenta a dispensa desta fundamentação sob o argumento de que a condenação a duas censuras públicas seria automaticamente uma má conduta pública a ensejar o cancelamento do registro.

A aplicação do cancelamento após a condenação a duas censuras públicas pode ainda significar uma possível aplicação de duas penalidades em razão da mesma conduta, o conhecido bis in idem, pois após o profissional ter sido penalizado por infração ao código de ética com a aplicação de uma censura pública, seria aberto um novo procedimento administrativo para aplicar o cancelamento do registro sobre o fundamento da existência de duas censuras públicas decorrentes da prática de atos já apreciados e penalizados pela Administração.

Enfim, o objeto do presente trabalho não é a análise e crítica da Resolução 1090/17 e sim o entendimento da aplicação do cancelamento do registro profissional tendo em vista o momento atual e a análise deste instituto em face do direito administrativo, considerando ainda algumas características e diferenças em face do direito penal, razão pela qual fizemos breves apontamentos e considerações sobre a Resolução 1090.

Assim, ultrapassada a análise da previsão legal de cancelamento do registro por má conduta pública, escândalo ou crime infamante e ainda considerando as especificidades apresentadas em decorrência dos conceitos jurídicos indeterminados utilizados e do regime próprio de direito administrativo e não penal, trataremos a seguir da interferência da jurisdição penal sobre a administrativa e posteriormente do entendimento jurisprudencial acerca de processos de cancelamento do registro profissional.

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Sobre a autora
Fernanda Guedes

Advogada, especialista em direito público, procuradora do CREA-MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUEDES, Fernanda. Cancelamento do registro profissional à luz da Lei n. 5.194/66:: sanção de âmbito administrativo que se diferencia do regime penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5662, 1 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63117. Acesso em: 2 mai. 2024.

Mais informações

Tendo em vista o momento moralizador que o país está passando e o envolvimento de vários engenheiros em escândalos relacionados com a operação lava-jato, mostra-se atual e relevante a análise do cancelamento do registro profissional pelos CREAs abordando a interface com a seara penal.

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