Capa da publicação Reforma trabalhista e tarifação da indenização por danos extrapatrimoniais
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O equívoco da tarifação da indenização por danos extrapatrimoniais pela Lei nº 13.467/2017

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3. O critério de tarifação do dano da indenização. Violação dos princípios constitucionais da isonomia e proibitivo da discriminação

Em primeiro lugar, e como antes se deixou registrado, ao contrário do pensa parte da doutrina, não somos contra à fixação da alguma baliza para o arbitramento da indenização do dano moral ou extrapatrimonial decorrente da relação de trabalho, pois pensamos, com o devido respeito, e até mesmo para se evitar excessos, que algum critério deve ser fixado pelo legislador. Porém, não concordamos com aquele acolhido pela Lei 13.467/2017 ao estabelecer o salário ou contracheque do trabalhador como base para a quantificação da indenização, pois ao assim fazê-lo o legislador terminou por violar o princípio-garantia da isonomia e proibitivo da discriminação, atentando contra o previsto nos arts. 3º e 5º do Texto Supremo, além de agredir a dignidade do trabalhador, que passa a ser medida pelo valor do salário, o que não parece correto.

Com efeito, aceitar-se o aludido critério teremos uma situação verdadeiramente absurda em que o trabalhador que percebe salário elevado, embora tendo tido violado um ou alguns dos bens que compõem a dignidade humana, será indenizado com valor superior ao daquele que nas mesmas condições e sofrendo a mesma violação, receberá quantia inferior, numa verdadeira situação de discriminação em razão da remuneração num inaceitável atentado ao principio da isonomia.

Ora, a idéia de dignidade humana, como lembrava Pico della Mirandola, no liminar da Idade Moderna, é que ela é uma qualidade peculiar inerente ao ser humano que lhe permite construir de forma livre e independente sua própria existência. Visa como lembra a doutrina[30], garantir o respeito ao ser humano, seu caráter superior dotado de uma natureza espiritual, cultural, histórica e moral que se impõe a todos os interesses e a todas as coisas[31]. É, pois, um valor supremo que deve iluminar todo o ordenamento jurídico constituindo um limite não apenas ao particular, mas também ao legislador, à medida que, como averba a doutrina espanhola[32], “está en el meollo de todos los derechos fundametales” sendo assim uma “frontera insalvable para el legislador”. Não é por outra razão que se tem afirmado[33] com acerto que a primazia de dignidade da pessoa humana constitui um autêntico princípio geral de direito, o que implica dizer que tanto os poderes públicos como os particulares têm o indeclinável dever de respeitá-la, constituindo atos antijurídicos aqueles que eventualmente venham lesá-la, inclusive os editados pelo legislador. Por conseguinte, toda e qualquer norma que venha atentar contra esse supremo valor, um dos fundamentos da República (art.1º, inciso III) sofre da mácula de inconstitucionalidade, como é o caso da norma contida no art. 223-G, § 1º da CLT acrescido pela Lei 13.467/2017, ao estabelece o valor do salário do trabalhador como baliza para a fixação da indenização por danos extrapatrimoniais, dando uma importância e um valor maior à dignidade daquele que percebe salário superior à daquele que seja remunerado com salário inferior.

Para o legislador da Reforma Trabalhista existem trabalhadores com dignidade mais valiosa do que outros, dependendo do valor salarial percebido, num verdadeiro atentado ao que previsto no art. 1º, inciso III do Texto Supremo. Isso é inadmissível, pois como alerta a boa doutrina[34], a dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, independentemente, por óbvio, do valor salarial que possa perceber. Portanto, esse valor supremo não pode ser medido pelo salário que eventualmente se receba ou pelo que consta de contracheque daquele que é vitima de alguma violação. Afinal, como recentemente afirmado por Renato Mario Borges Simões, Desembargador Federal da 5ª Região em palestra proferida na Conferência Nacional dos Advogados, “Cada preceito constitucional carrega o peso da concatenação e da conformidade a todo o sistema de valores nele estabelecidos. Quando a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito e erigiu o valor da dignidade humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” como pilares ou fundamento da República, estabelecendo - dizemos nós - que, juntamente com a soberania, a cidadania e o pluralismo democrático, esses valores maiores informam todo o sistema jurídico e não podem menosprezados, nem mesmo pelo legislador, pena de se violar não apenas o Texto da Constituição da República, mas também a todo o sistema de proteção aos direitos fundamentais, porque a primazia da dignidade da pessoa humana constitui um autêntico valor supremo e, ao mesmo tempo, princípio geral de direito, vale repetir, o que implica dizer que tanto os poderes públicos como os particulares, estes em face da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, têm o indeclinável dever de respeitá-lo.

Desse modo, a Lei 13.467/2017 ao estabelecer o salário do trabalhador como critério para o arbitramento do dano extrapatrimonial, porque atentatória contra a esses valores fundamentais da República, pilares do Estado Democrático de Direito brasileiro, efetivamente sofre da mácula da inconstitucionalidade material[35], pois manifestamente incompatível com o conteúdo essencial do princípio da dignidade humana do trabalhador, o que desobriga o julgador a aplicá-la no particular, pois como lembra Gomes Canotilho[36], “os actos normativos só estarão conforme com a constituição quando não violem o sistema formal, constitucionalmente estabelecido, da produção desses actos, e quando não contrariem, positiva ou negativamente, os parâmetros materiais nas regras ou princípios constitucionais”.

Se isso não bastasse, o preceito legal viola ainda os princípios da isonomia e da proibição da discriminação, que também são endereçados ao legislador[37], pois permite ao trabalhador com maior salário ser indenizado pelo mesmo dano sofrido por outro nas mesmas condições apenas porque percebe valor salarial diferenciado, atentando assim contra o contido nos arts. 3º e 5º da Carta da República, além de agredir aos termos da Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho, proibitiva desse tipo de discriminação no âmbito das relações laborais.

Assim entendido, pode=se afirmar que a norma legal em referência viola os princípios da isonomia e ao da não discriminação, o que reafirma que art. 223-G, § 1º da nova Lei efetivamente afronta o Texto Maior[38] devendo ser interpretado à luz desses valores constitucionais e não como pretendido pelo legislador.

Ademais, não leva em consideração o critério da proporcionalidade e as balizas constantes do art. 944 do Código Civil que recomendam ao juiz que, em cada caso concreto, ao fixar a indenização por essa modalidade de dano, sopese as circunstancias em que o evento ocorreu, a gravidade, o grau da culpa, as condições das partes, entre outras, à medida que não pode ser fonte de enriquecimento da vítima, mas, todavia, não deve ser injustiçada apenas porque o legislador fixou certo teto com base no salário por ela percebido para essa indenização.


4. Conclusão

A forma em tanto açodada como tramitou o Projeto que deu origem à Lei 13.467/2017, de certa forma inviabilizou uma discussão uma maior e mais profunda sobre as conseqüências que poderá provocar no campo das relações de trabalho, seja positiva ou negativamente e talvez por isso, apesar de conter grandes avanços e de certa forma adequar a legislação laboral ao novo sistema de produção de trabalho prestigiando a autonomia e coletiva da vontade, terminou por cometer alguns pecados e até mesmo inconstitucionalidades como se procurou ao longo deste trabalho, cujo objeto é restrito à questão da tarifação da indenização por dano extrapatrimonial decorrente de relação de trabalho.

Conceitos jurídicos indeterminados com um certo desprezo à realidade e a princípios clássicos que informa o Direito do Trabalho, muitos com dignidade constitucional, maculam em alguns momentos a nova Lei que, apesar disso, contém muitos avanços que não podem ser negados.

Nesse cenário, incumbe ao Poder Judiciário delimitar, pelo processo hermenêutico construtivo e democrático, o alcance e os limites da Reforma, com o fim de se lhe emprestar o verdadeiro alcance e para evitar a retirada de direitos conquistados em lutas histórias afastando-se, por consequência, insegurança jurídica para todos aqueles são os principais atores do processo produtivo – trabalhador e empresário ou empregador - destinatários privilegiados ou prejudicados pelo “novo Direito do Trabalho” que surgirá da aplicação das normas constantes da Lei 13.467/2017, porém, sem adotar posições maniqueístas, corporativas ou ideológicas, de tal forma que haja um sopesamento dos valores sociais do trabalho e da dignidade do trabalhador, mas também sem se esquecer da existência do princípio de salvaguarda dos legítimos interesses do empresário ou empregador que gera riqueza e trabalho, igualmente garantido pelo Texto Supremo.

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Sobre os autores
Francisco das Chagas Lima Filho

juiz do Trabalho em Dourados (MS), professor de Direito da UNIGRAN, mestrando em Direito pela UnB

Paulo Henrique Costa Lima

Bacharel em Direito pela Universidade Unigran- Dourados - MS e Advogado Trabalhista em Brasília – DF.

Heitor Oliveira Barbosa

Acadêmico de Direito na UCDB – Campo Grande – MS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA FILHO, Francisco Chagas ; LIMA, Paulo Henrique Costa et al. O equívoco da tarifação da indenização por danos extrapatrimoniais pela Lei nº 13.467/2017. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5300, 4 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63186. Acesso em: 24 abr. 2024.

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