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Crime de abandono material e intervenção mínima: os limites da atuação do direito penal na proteção da família

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3 A FAMÍLIA COMO BEM JURÍDICO CATEGORIAL

Em 1936, Georges Ripert[41], professor da Faculdade de Direito da Universidade de Paris, assinalou a proteção dos “fracos”, como novo aspecto do regime democrático, particularizado na assistência aos pequeninos. Todos os que, por sua idade, estado intelectual, inexperiência, pobreza, impossibilidade de agir ou de compreender, são, na sociedade, os mais fracos que os outros, têm direito à proteção legal. A democracia não poderia acolher o aristocrático individualismo de um Spencer[42] ou a moral feroz de um Nietzche[43]. Quem é fraco deve ser protegido[44].

Essa proteção aos fracos - ao menor, ao alienado, ao descriminado, ao estigmatizado – inerente a todas as legislações, desenvolveu-se no direito clássico através da “teoria das incapacidades”. Mas a tendência democrática manifestou-se no sentido de proteção e de enfraquecimento da ideia de poder: a incapacidade para o fraco deve ser ajuda, e não submissão. Assim, para o menor, a ideia de pátrio poder, desde a Revolução de 1789, evolui para a de pátrio dever, perdendo, a cada dia, o absolutismo romano em favor da liberdade e das obrigações impostas ao pai: limitação ao direito paterno de fazer trabalhar o filho, obrigação de instrução primária, restrições ao poder de administrar os bens do menor[45].

Nesta esteira, conforme a organização do atual Código Penal, o legislador, utilizando-se dos bens jurídicos tutelados pelos tipos penais para dar nomes, ora aos títulos, ora aos capítulos por eles ocupados, quando da elaboração do Título VII da parte especial, denominou-o “Dos crimes contra a família” e, o mesmo se fez com o Capítulo III deste título, objeto específico deste estudo, quando lhe foi dado o título de: “Dos crimes contra a assistência familiar”, uma vez que almejou-se com a previsão dos tipos penais locados nestes capítulo e título, a proteção e manutenção do organismo familiar, sendo este interesse vital elevado pelo legislador ao status de bem jurídico-penal[46] digno da intervenção, para sua tutela, através da ingerência penal, conforme se abstrai do artigo seguinte.


4 ABANDONO MATERIAL

Tendo em vista o presente estudo ter como enfoque o crime de abandono material face à necessidade da atuação do Direito Penal, restringir-se-á, durante a análise tipológica, ao contexto das condutas relacionadas ao estado de filiação, sem analisar, todavia, o abandono entre cônjuges, de descendente em relação ao ascendente, ou ainda entre irmãos.

O tipo penal incriminador intitulado pelo legislador ordinário como abandono material encontra-se descrito no art. 244, do Código Penal, e descreve, essencialmente, a conduta omissiva dos pais face ao dever de prestar os alimentos imprescindíveis à subsistência dos filhos menores ou incapazes, punindo aquele que: deixar, sem justa causa, de prover a subsistência de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada.

O bem jurídico protegido é a assistência familiar, traduzida no dever de prestar alimentos mínimos, essenciais à subsistência do descendente incapaz, mantendo-se em perfeito funcionamento ético-social, a instituição familiar, relativamente ao amparo material devido por ascendentes, descendentes e cônjuges, reciprocamente. Parte da doutrina[47], porém, dispõe que tutela-se a estrutura e o organismo familiar, seguindo o magistério de Maggiore, que dispunha “tutelar-se o organismo familiar mediante o reforço das obrigações éticas, jurídicas e econômicas de assistência, impostas pela lei civil aos pais[48]”.

É justamente nesse ponto que intrigamo-nos diante da construção da doutrina italiana pela necessidade de um “reforço” penal ao Direito Civil, uma vez que, nos dias atuais, a família tem sido tutelada a contento pelo jus familiae, que é, indubitavelmente, mais sensível e proporcional aos anseios familiares[49].

Como sujeitos do crime[50], tem-se que, no polo ativo, via de regra, figuram os cônjuges, pais, ascendentes ou descendentes. Nessa linha de pensamento, ensina Fragoso que nas várias modalidades do crime de abandono material, podem ser sujeito ativo: o cônjuge que deixa de prover a subsistência do outro; o pai ou a mãe que deixa de prover a subsistência de filho menor de dezoito anos ou inapto para o trabalho; o descendente (filho, neto ou bisneto), que deixa de proporcionar os recursos necessários a ascendente inválido ou valetudinário; qualquer pessoa que deixa de socorrer ascendente ou descendente gravemente enfermo[51]. Ademais disso, diante dos artigos 5.º, I e 226, § 5.º, da Constituição Federal, bem como das novas diretivas trazidas pelo novo Código Civil, reforça-se a orientação de que a mulher tem os mesmos deveres que o homem com relação ao sustento do cônjuge, dos filhos, ascendentes e enfermos[52].

Tendo em vista ser o delito em estudo um tipo misto cumulativo, tem-se três figuras previstas no artigo 244, caput, destacando-se que, com a realização de mais de uma conduta configurar-se-á mais de um crime em sua diversidade modal. Eis cada uma delas:

a) Deixar, sem justa causa[53], de prover a subsistência[54] de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, não lhes proporcionando os recursos necessários[55]: o crime de abandono material é omissivo próprio e, nessa modalidade, consuma-se quando o agente deixa de prover a subsistência da vítima durante lapso temporal juridicamente relevante, de modo que a omissão ocasional ou simples atraso no cumprimento da prestação não configuram o respectivo delito[56]. É também, de caráter permanente e, por isso, seu momento consumativo se protrai no tempo pela malícia do agente e persiste enquanto não for punido[57].

b) faltar ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada: consuma-se quando o sujeito ativo deixa de efetuar o pagamento – mediante inequívoca recusa – da pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada.

A dúvida que surge, neste momento, refere-se ao fato de que a Sumula 309, do Superior Tribunal de Justiça, possibilita a prisão civil do alimentante inadimplente em razão do não pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada por três meses consecutivos[58], enquanto que a legislação penal, ao tipificar a conduta de “faltar ao pagamento de pensão”, foi silente em relação ao fato de se exigir ou não o transcurso desse mesmo prazo para a consumação do delito. Desta forma, considerando que o legislador ficou aquém do verdadeiro interesse da norma penal, e analisando-se ainda, a exposição de motivos do Código Penal[59], conclui-se no sentido de que o respectivo prazo de três meses exigidos pelo âmbito cível, também deverá ser atendido na seara criminal, o que a torna menos eficaz do que a instância cível.

c) deixar, sem justa causa, de socorrer descendente gravemente enfermo: a consumação ocorre no momento em que o agente deixa de socorrer o descendente gravemente enfermo. Sobre a possibilidade de tentativa, tem-se que o abandono material é delito omissivo próprio ou puro, de modo que pune-se a realização de uma ação que o autor podia realizar na situação concreta em que se encontrava[60], razão pela qual, não se admite a tentativa. Isso porque o agente infringe uma norma mandamental, isto é, transgride um imperativo, uma ordem ou comando de atuar[61].

Há, ainda, no parágrafo único do artigo 244, do Código Penal, uma forma equiparada, segundo a qual, nas mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada. Procurou-se prevenir, neste caso, a fraude do devedor da pensão, que não raro prefere abandonar o emprego, onde é descontado em folha de pagamento (artigo 734, Código de Processo Civil)[62].

A grande controvérsia, porém, refere-se à possiblidade ou não do cometimento deste delito na forma tentada, posto que, nas modalidades do caput, a doutrina[63] é unânime em inadmiti-la. Porém, tal compreensão não pode, simplesmente, ser estendida ao parágrafo único, onde é perfeitamente possível a tentativa[64], uma vez que tal delito não decorre somente de uma omissão do sujeito ativo, mas admite-se que se dê por um facere, quando, por exemplo, o pai-alimentante, em conluio com seu empregador, simulam uma demissão para evitar o desconto em folha, sendo surpreendidos, às vésperas do vencimento da prestação, por visita de auditor fiscal do trabalho que constata sua presença na empresa.


5 CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS AO CRIME DE ABANDONO MATERIAL E À INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO PENAL

A Constituição Federal trata a família como a base da sociedade (art. 226), reafirmando o princípio da igualdade ao dispor que deverá ser “exercida igualmente pelo homem e pela mulher (§ 5º do art. 226), enfatizando, outrossim, no § 7º, que com fundamento nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal. Nota-se, nesse contexto, que o princípio da paternidade responsável traz à luz a ideia central de responsabilidade, que inicia-se já na concepção e estende-se até e enquanto se faça necessário e justificável o acompanhamento dos filhos pelos pais, respeitando-se assim, o comando constitucional do art. 227.

Assim, o não exercício da paternidade responsável poderá dar ensejo a consequências cíveis, administrativas e até criminais, devendo os pais proporcionar aos filhos o desenvolvimento saudável, fornecendo-lhes “o alimento” de que necessitarem, o afeto e a educação básica para que adquiram autonomia e passem a viver e conviver em sociedade. Tutela-se, então, constitucionalmente[65], como direitos individuais, o direito de ser filho, de conhecer os pais, o direito à educação dos menores, a fim de se assegurar o livre, completo e digno desenvolvimento da personalidade humana.

É intrigante a construção jurídico-doutrinária italiana pela necessidade de um “reforço” penal ao Direito Civil, que nasceu com o Código Rocco, conforme demonstrado, quando se elevou tais direitos ao status de bens jurídico-penais, criminalizando-se o abandono familiar uma vez que, nos dias atuais, a família tem sido tutelada a contento pelo jus familiae, que é, indubitavelmente, mais sensível e proporcional aos anseios da estirpe.

Nesse passo, certamente, não é de ser acolhido o apriorismo lombrosiano de que todas as tendências para o crime têm seu começo na primeira infância. Nem é de se admitir, por outro lado, o unilateralismo simplista de Randall, que afirmara outrora: “salvai a criança, e não haverá mais homens a punir!”. Não, a delinquência é, na sua etiologia, um problema complexíssimo, desconcertante, que se não deixa fixar de modo integral e definitivo[66].

Viu-se, portanto, que diante do não cumprimento do dever de exercer a paternidade responsável, os pais poderão responder criminalmente pelo cometimento do crime de abandono material, contrariando o princípio da intervenção mínima, segundo o qual, o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade.

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É nessa esteira que, acerca da tipificação jurídico-penal de delito como o de abandono material, questionamo-nos se seria o Direito Penal meio necessário para a tutela da família, uma vez que, os Direitos Civil e Administrativo têm sido suficientes para a fazê-lo, ao passo que, o Penal, ao intervir nas relações fraternais com intuito de salvaguardá-la, estaria ao contrário, lesando-a.

Assim, constata-se que, na modalidade de “deixar, sem justa causa, de prover a subsistência de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, não lhes proporcionando os recursos necessários”, a figura típica é colocada pelo ordenamento jurídico-penal como verdadeiro “soldado de reserva”, posto que as violações nela contidas poderiam, perfeitamente, ser tuteladas, conforme o caso, pelos delitos de abandono de incapaz (art. 133, CP), de omissão de socorro (art. 135, CP), de maus-tratos (art. 136, CP), de lesão corporal em comissão por omissão (art. 129, CP, c/c art. 13, § 2º, a, CP), ou até mesmo, nas últimas consequências, de homicídio por omissão (art. 121, CP, c/c art. 13, § 2º, a, CP). A mesma conclusão há de ser obtida em relação ao abandono material cometido por “deixar, sem justa causa, de socorrer descendente gravemente enfermo”, outro delito subsidiário, perfeitamente suprível por outras figuras e totalmente desnecessário.

Já quanto à figura típica que criminaliza o abandono decorrente do “não pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada”, tem-se que o Direito Civil, por admitir a imediata prisão civil do prestador inadimplente - enquanto na esfera criminal, necessita de um processo-crime, além do que, por tratar-se de delito apenado com detenção, iniciar-se-á o cumprimento de pena em regime semiaberto ou aberto, obrigatoriamente, podendo ainda o agente prestar fiança ainda à autoridade policial, o que lhe possibilitará responder o processo em liberdade -, é absolutamente mais eficiente, restando demonstrado, com isso, violação frontal à intervenção mínima do Direito Penal.

Ademais disso, quanto ao delito de abandono material, cuja pena é de detenção de 1 a 4 anos e multa, não será aplicável o artigo 92, II, do Código Penal, uma vez que este só submete-se aos crimes apenados com reclusão, inadmitindo-se a perda do poder familiar como efeito da condenação. Ao passo que o artigo 1.638, do Código Civil possibilita tal ocorrência por ato judicial caso os pais abandonem o filho, mostrando-se, neste aspecto, o Direito Civil, mais eficaz do que o Direito Penal.

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Sobre os autores
Gerson Faustino Rosa

Doutor em Direito. Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo-SP. Mestre em Ciências Jurídicas. Centro Universitário de Maringá-PR. Especialista em Ciências Penais. Universidade Estadual de Maringá-PR. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Gama Filho-RJ. Graduado em Direito. Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente-SP. Professor de Direito Penal e Coordenador dos cursos da área jurídico-penal da Uniasselvi. Professor de Direito Penal nos cursos de pós-graduação da Universidade Estadual de Maringá, da Escola Superior da Advocacia, da Escola Superior da Polícia Civil e da Escola Superior em Direitos Humanos do Estado do Paraná, da Unoeste, do Cesumar, da Univel-FGV, da Fadisp, da Unipar, do Integrado e da Faculdade Maringá. Professor de Direito Penal nos cursos de graduação da Universidade Estadual de Maringá-PR (2014-2019). Professor de Direito Penal e coordenador da pós-graduação em Ciências Penais da Universidade do Oeste Paulista (2016-2019). Professor de Direito Penal na Uniesp de Presidente Prudente-SP (2013-2016). Tem experiência na área do Direito, com ênfase em Direito Penal e Segurança Pública, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Penal e Direito Penal Constitucional.

Gisele Mendes de Carvalho

Pós-doutora e Doutora em Direito pela Universidade de Zaragoza (Espanha). Mestre em Direito Penal pela Universidade Estadual de Maringá (PR). Professora Adjunta de Direito Penal na Universidade Estadual de Maringá (PR) e no Mestrado do CESUMAR - Maringá (PR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Gerson Faustino ; CARVALHO, Gisele Mendes. Crime de abandono material e intervenção mínima: os limites da atuação do direito penal na proteção da família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6045, 19 jan. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63220. Acesso em: 2 nov. 2024.

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