3. SUPRANACIONALIDADE: TENDÊNCIA CONTEMPORÂNEA
Assim como a Paz de Westphalia (1648) pontuou uma era de transformações que reconheceram apenas aos Estados a capacidade legal no plano internacional, os eventos da primeira metade do século XX constituem um segundo momento-chave na história deste ramo do Direito. Notadamente, dois fatores trarão a noção de supranacionalidade e arranjos para coesão em meio a um sistema interestatal descentralizado: as tragédias humanitárias das duas Guerras Mundiais e o advento dos organismos internacionais.
Estes esforços primários, contudo, ainda não seriam capazes de cessar a catástrofe da civilização conduzida por Estados movidos a ideologias. As Nações Unidas vieram para corrigir os erros políticos de suas antecessoras, e proclamaram, entre outras célebres, a Declaração Internacional dos Direitos do Homem. Deu-se exatos três séculos depois dos acordos da Westphalia: enquanto estes arranjaram um mundo movido pela vontade dos soberanos, aquela formulou princípios supranacionais fundamentados, como defende Bobbio, no consenso entre os povos.
O positivismo legalista - vigente como concepção majoritária acerca do Direito - assistiu a soberanos legítimos desencadearem agressões inéditas à civilização, tudo isto fruto de um sistema horizontal baseado na livre-vontade dos Estados. Nesse diapasão, apelou-se para a construção de organismos capazes de limitar a ação desses Estados; concedeu-se, portanto, obrigações aos entes e direitos aos indivíduos no seio da recém-criada Sociedade das Nações. O Tribunal Permanente de Justiça Internacional, predecessor da Corte Internacional de Justiça, foi criado já em 1921. Estes esforços primários não foram capazes de cessar a catástrofe da civilização conduzida por Estados: todo o drama do nazi-fascismo se deu em conformidade estrita às leis positivas.
As Nações Unidas vieram para corrigir os erros políticos das instituições análogas, e proclamaram, entre outras célebres, a Declaração Internacional dos Direitos do Homem. Isto se deu exatos três séculos após da paz de 1648: enquanto esta arranjou um mundo movido pela vontade dos soberanos, aquela estabeleceu princípios supranacionais fundamentados no consenso entre os povos (BOBBIO, 2004, p.24). O Direito Natural, universalista, predominante de modo esmagador na trajetória humana, decaiu com a ascensão do sistema internacional europeu e deu lugar a um Direito Positivo Estatalista. A partir dos anos 1940, a tendência é produzir e efetivar um Direito Positivo Universal. Este descarta a incerteza jusnaturalista e tenta uma fundamentação no acordo de vontades – redenção grociana.
Apesar do lançamento desta tendência, que a despeito de todos os percalços do processo político parece irreversível, muitas entidades não-Estatais não conseguiram ainda se consolidar como sujeitos ativos de Direito Internacional. Grandes corporações e indivíduos, por exemplo, tornaram-se depositários de normas legais internacionais; todavia, estes sujeitos não são plenamente capazes de desempenhar um papel ativo na regulação mundial por meio desta personalidade jurídica, a não ser através de institutos como a Arbitragem, quando na resolução de disputas entre Estados e investidores estrangeiros.
O Direito Positivo Universal, parâmetro para um jus gentium contemporâneo, restringe-se aos Estados e àquilo criado por eles para exercer o trabalho normativo: as convenções, o costume e as organizações internacionais. A dinâmica do sistema internacional, antes vista e aqui retratada sob a ótica de célebres autores, agora é declarada pelos seus principais atores.
A despeito da ascensão das Nações Unidas e dos sistemas internacionais de Justiça, violações aos direitos humanos persistem, muitas vezes ao arrepio das diretivas destas organizações internacionais. Este é o argumento daqueles que buscam estender aos indivíduos o caráter de sujeito de Direito Internacional. Todavia, este paradigma parece mais um “dever ser” do que um fato empírico, pois até quando pessoas e empresas podem promover ações nos tribunais internacionais, isto ocorre “em virtude de um compromisso estatal tópico”. (REZEK, 2002, p.147). Do mesmo modo, os deveres impostos pelo Direito Internacional Humanitário, por exemplo, somente constituem “direito” (norma e sanção vinculante) quando são vigentes no ordenamento interno, ou, como no caso do Direito Penal Internacional, subsidiários a este.
Entre os doutrinadores nacionais, Valério Mazzuoli entende que o debate contemporâneo não deve ser acerca do rol das pessoas no Direito Internacional. Indivíduos, corporações e entidades não-governamentais possuem personalidade jurídica, pois outra não é a finalidade do Direito senão abrange-las para regulá-las (MAZZUOLI, 2015, p.471). O cerne da questão está em sua capacidade jurídica, sendo esta, conforme a doutrina civil, a medida da personalidade. Francisco Rezek já não reconhece “personalidade” propriamente dita nessas entidades:
“Não têm personalidade jurídica de direito internacional os indivíduos, e tampouco as empresas, privadas ou públicas. A proposição, hoje frequente, do indivíduo como sujeito de direito das gentes pretende fundar-se na assertiva de que certas normas internacionais criam direitos para as pessoas comuns, ou lhes impõem deveres. É preciso lembrar, porém, que os indivíduos – diversamente dos Estados e das organizações – não se envolvem, a título próprio, na produção do acervo normativo internacional (...)”. (REZEK, 2002, p.146).
A globalização econômica suscitou alguma mudança no âmbito da capacidade jurídica das empresas. Merece destaque a instauração de juízos arbitrais entre empresas e Estados, nos litígios decorrentes de investimentos. A ascensão da capacidade legal destas evidencia a consolidação de uma supranacionalidade frente à soberania dos Estados, sancionando-os por um sistema que os próprios optaram por integrar. Ressalte-se ainda que o sistema da comunidade internacional atingiu um grau de abrangência que quase insta os Estados a, no mínimo, justificar suas decisões num Direito Universal Positivo, impondo-se este quase como um soft power.
Outro fenômeno a observar-se ainda é a incorporação dos ditames do direito internacional no âmbito dos ordenamentos internos, efetivando, por exemplo, o acesso dos indivíduos não a uma justiça internacional propriamente dita, mas ao conteúdo material desta através dos instrumentos domésticos. A Jurisdição Universal, à parte dos sistemas de extradição, pode ser vista como o mais próximo existente de um sistema de jus gentium: ela é adotada em países como a Alemanha, França, Bélgica e Canadá, para crimes tipificados internacionalmente, sob o auspício do Estatuto de Roma. Na Alemanha, desde 2002 existe o “Völkerstrafgesetzbuch”, cuja tradução mais próxima seria a de “Código Criminal do Direito dos Povos”. Proclama o Artigo 1º deste diploma: “Esta lei aplica-se a todas as infracções penais contra o direito internacional descritas neste Ato e às infracções penais graves designadas no mesmo, mesmo quando a infracção for cometida no estrangeiro e não guarde qualquer relação com a Alemanha.”.
CONCLUSÃO
A multiplicação de institutos de jurisdição universal, ou mesmo de reconhecimento interno da eficácia de convenções internacionais, caso do Brasil, não pode ser vista como um fortalecimento do sistema autônomo do Direito Internacional. O dualismo ainda não foi superado como paradigma predominante na permeabilidade entre normas internas e internacionais, e este impasse guarda nexo com o próprio processo de legitimação destas últimas - o paradigma hobbesiano resiste imperioso. No Direito Internacional Privado, há avanços sensíveis no tocante à capacidade jurídica das empresas, mas a regulação efetiva entre entes privados, sem acesso a mecanismos como a arbitragem, encontra ainda óbices importantes nas fronteiras jurídicas. Todavia, em linha à profecia Cançado Trindade, parece-se caminhar para a construção de um novo jus gentium – a descoberta dos métodos adequados para tal será a árdua tarefa da doutrina e dos atores internacionais no século XXI.
REFERÊNCIAS
AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
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BORGES DE MACEDO, Paulo Emilio Vauthier. A Genealogia da Noção de Direito Internacional. Revistas da Faculdade de Direito da UERJ. Rio de Janeiro, n.18, p.1-35, 2010.
BUCCI, Daniela. O Direito Natural e o Universalismo para Francisco de Vitoria: Contribuições para a Construção do Direito Internacional Moderno. In: MENEZES, Wagner (Org.). Direito Internacional Clássico e seu Fundamento. Belo Horizonte: Arraes, p. 47-61, 2014.
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A Humanização do Direito Internacional. 1ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
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MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. O Pórtico e o Fórum: Diálogos e confluências entre o estoicismo e o Direito Romano Clássico. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, v.98, p.295 – 336, jul. 2008.
MAZZUOLI, Valério. Curso de Direito Internacional Público. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
MORRISSON, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos ao Pós-modernismo. 1ª ed. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso elementar. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
TRUYOL Y SERRA, Antonio. Historia de la Filosofía del Derecho y del Estado: Del Renacimiento a Kant. 4ª ed. Madrid: Alianza Editorial S.A, 2007, v.2.
Notas
[1] Sócrates inaugurou uma filosofia centrada nas questões humanas. O período de ouro da Filosofia - tempo dos sofistas, Platão e Aristóteles - coincide com o século de Péricles em Atenas, auge da democracia direta. Esta tradição clássica é, por isso, também chamada de “antropológica” ou “antropocêntrica”.
[2] “o autor não eleva o tratado À condição de fonte, porque, provavelmente, não estava familiarizado com a ideia de uma convenção multilateral. Os tratados, à época de Suárez, eram bilaterais e não se distinguiam, com muita clareza, dos contratos. Aos seus olhos, a única maneira possível de vincular todos – ou quase todos – os povos resumia-se ao costume.”. (BORGES DE MACEDO, 2014, p.19)
[3] Para Borges de Macedo (2008), “o direito internacional surge somente quando se torna autônomo do direito natural (ainda que embasado nele) e versa sobre institutos verdadeiramente internacionais (não institutos de direito interno que existem em diversos países)”.
[4] Primeiro-ministro de Luís XIII e autor do Testamento Político, estadista francês durante a Guerra dos Trinta Anos e um racionalista influenciado por Maquiavel. Apesar de ser um membro da Igreja Católica, compôs com nações protestantes para derrotar a Casa da Áustria (católica), evidenciando um novo paradigma nas relações internacionais: raison d’état.
[5] “lo que el derecho natural es entre hombre y hombre antes de constituirse la república, es después el derecho de gentes entre soberano y soberano”(HOBBES. Elementos de Derecho natural y politico.Trad. D. Negro Pavón, Madrid, 1979. In: TRUYOL Y SERRA, 2007, p.226)
[6] Também foi assinalada na obra final de Grócio a concepção suareziana de jus gentium como Direito Civil Cosmopolita (jus intra gentes): “Y civil-amplio es el derecho de gentes, esto es, el que recibió la fuerza ,de obligar de la voluntad de todos o de muchos pueblos. (...) Y se prueba este derecho de gentes de la misma manera que el civil no escrito, por el uso continuo y por el testimonio de los sabios.” (GROCIO,1925, p.60).
[7] Brocardo que designa o princípio da força obrigatória dos contratos.
[8] Norberto Bobbio afirma que a tradição jusnaturalista reconhece valores de três modos: pelo apelo à universalidade (natureza humana), pela autoevidência daquele juízo ou pelo consenso geral e amplo (consensum omnium gentium). (BOBBIO,2004, p.46)
[9] O filósofo antevê a consecução futura de um Estado universal (Volkerstaat, civitas gentium) acompanhado por uma Paz Perpétua entre os homens. Os povos, enquanto organizados em Estados, vivem livres e sujeitos sempre à guerra pela deficiência que caracteriza o Direito das Gentes (Volkerrecht). (TRUYOL Y SERRA, 2007, p.406)