RESUMO: A imputação do fenômeno jurídico, possível a toda a sociabilidade humana, permite definir um conjunto de garantias que seja comum aos indivíduos: o Direito das Gentes. O caráter diferencial desse direito é a sua universalidade, contrastando com o jus civile dos Estados. Esta abrangência exigiu a busca por fundamentos em bases naturalistas; todavia, o advento de uma sociedade internacional interestados suscitou o acordo das vontades como base adequada para um direito comum, o que coube ser trabalhado pelo positivismo jurídico. O século XX e a globalização trouxeram uma nova dinâmica para o Direito Internacional, retomando reclames do passado. O presente texto busca resgatar as raízes históricas de jus gentium e ilustrar os movimentos de restrição e extensão do rol de suas personalidades jurídicas.
Palavras-Chave: Jus Gentium. Direito Internacional. Capacidade Jurídica.
INTRODUÇÃO
O debate acerca da dimensão do indivíduo está no cerne das questões atuais do Direito Internacional. O contexto histórico de violações de direitos humanos traz a imperiosa necessidade de que se criem instrumentos globais de proteção, que não precisem da disposição egoística dos Estados para efetivar-se.
A descoberta do caminho adequado para tais necessidades não pode deixar de investigar as raízes históricas do Direito Internacional, que em sua forma clássica romana não objetivava regular as relações entre Estados, mas entre indivíduos. A alçada do Direito Internacional contemporâneo a um paradigma mais centrado no indivíduo envolve debater a própria essência do seu fenômeno, e as respostas não podem ser encontradas longe da política ou da Filosofia do Direito.
Como eram, então, reguladas as relações interpessoais por um Direito Cosmopolita na Antiguidade? Como emergiu o atual modelo do Direito Internacional Público, baseado nas convenções interestatais? O presente trabalho, por sua brevidade, não pretende responder à totalidade destas indagações, mas delinear caminhos para a compreensão do fenômeno.
1. JUS GENTIUM: GÊNESE ROMANA
Jus gentium é uma expressão própria da tradição jurídica romana. É um direito que emana de uma razão natural (naturalis ratio) e aplica-se a todas as gentes. Equivale ao direito natural dos gregos por ser universal e apreensível; não deve, portanto, ser confundido com o termo jus naturale, cunhado posteriormente. Sendo assim, o Direito Internacional da Humanidade surge reconhecendo os indivíduos particulares como sujeitos de direito, estes enquanto alvo da regulamentação produzida (AGRA, 2014, p.142).
No Direito Romano, pode-se destacar dois sistemas de classificação para os sistemas legais: aquela empreendida por Gaio, e, décadas depois, a elaborada por Ulpiano. O primeiro toma uma classificação bipartite do Direito - jus gentium e jus civile. Merece reprodução integral o célebre parágrafo de suas Institutas:
El Derecho, en todos los pueblos regidos por leyes y por costumbres es en parte propio y peculiar de ellos y en parte comun á todos los hombres. Por eso el derecho que cada pueblo se dá á sí mismo es propio suyo, y se llama derecho civil, cual si dijéramos derecho de la ciudad. Aquel, empero, que la razon natural ha constituido entre los hombres , lo observan igualmente todos los pueblos y se llama derecho de gentes, esto es , derecho comun á todas lás naciones. De consiguiente,' el pueblo romano reconoce á la vez un derecho que le es propio, y un derecho comun á todos los hombres; lo cual espondremos con la debida distincion en los respectivos lugares. (GAIO, 1845, p.11)
O jurisconsulto Ulpiano (150 – 228), por sua vez, é o responsável por introduzir a concepção de jus naturale, que se confundirá e absorverá o sentido de jus gentium ao longo dos séculos posteriores, marcados pela decadência da civilização romana. Todavia, o jus naturale correspondia a uma lei instintiva comum a homens e animais, nula em sentido normativo (MATOS,2008,p.312).
A Roma Antiga desenvolveu-se agrícola, patriarcal e militarista. A unidade da Monarquia Romana deriva das conquistas empreendidas por esta cidade-estado (“civitas”) às tribos da Península Itálica, sem, contudo, absorver um arbítrio absoluto sobre elas. Ao direito vigente nas relações entre os patriarcas que compunham as diversas comunidades gentílicas da Itália, denominava-se “jus gentilicum’. O costume reconhecia obrigações comuns aos chefes locais de poder, emanadas dos laços sanguíneos ali comungados.
Face ao contexto histórico, a questão que se suscita é a seguinte: como uma sociedade tão xenófoba e militarista como a romana foi capaz de proclamar um Direito universal e que lhes igualava a outros povos, em termos de objetivar a regulação? Aduzem-se aqui dois fatores: a necessidade de e normatizar as complexas relações de Roma com os povos vencidos e a penetração da filosofia estoica entre as mentes mais influentes do Estado.
Apesar do “orgulho” característico daquela sociedade, houve uma época na história do povo romano (fins da República) em que uma postura prático-pragmática e relacional substituiu a moral rígida (BURNS, 1976). A expansão inédita exigiu - e a ausência de inimigos externos à altura em influência e complexidade organizacional permitiu - um apaziguamento na relação entre os itálicos e os conquistados a partir da adoção de um critério comum e “justo” para as suas relações jurídicas, critério este independente das arbitrariedades do legislador.
O jus gentium operou entre os cidadãos da República e do Império baseado em três princípios: a boa-fé das relações jurídicas (bona fide), a equidade entre as partes (aequitas) e a prevalência do consenso entre as vontades num contrato. Trata-se de uma oposição radical à rigidez e ao formalismo do jus civile, imperioso nas relações entre cives e entre agentes públicos. O jus gentium, por sua vez, valia para os contratos entre cives e peregrini (estrangeiros) e para os peregrini entre si. (BORGES DE MACEDO, 2010, p.5).
O papel da filosofia nesta construção jurídica cabe ao estoicismo, corrente própria do Helenismo. Preocupa-se com a questão da felicidade, lançada por Aristóteles ainda na tradição filosófica anterior, a antropológica[1]. Para tal, os estoicos determinam uma conexão entre a natureza das coisas (physis) e as atitudes humanas, estabelecendo um ethos de proposta bem semelhante à do direito natural; professam ainda a liberdade de pensamento e a igualdade entre os homens, esta última fundamental para entender a aceitação do jus gentium (MORRISSON, 2006, p.61) (MATOS, 2008, p.320). Os estoicos (do grego stoa, “portal” ou “pórtico”, onde comumente reuniam-se os pensadores e seus discípulos) não são dualistas; é a partir da unidade apontada entre natureza e vida prática que pode a práxis humana orientar-se até o equilíbrio e a tranquilidade. Suas ideias atingem Roma após a desintegração da Macedônia de Alexandre e a subsequente conquista de seus domínios pelos latinos; são expoentes do estoicismo nesta cultura Cícero (106-43 a.C) Sêneca (4a.C – 65 d.C), o imperador Marco Aurélio (161-180 ) e o jurisconsulto Ulpiano .
Passa-se agora a investigar, entre os autores e na história das ideias jurídicas, quais etapas levaram o conceito romano de jus gentium a ser substituído pela concepção moderna de direito internacional. Para Borges de Macedo (2015), “o direito internacional surge somente quando se torna autônomo do direito natural (ainda que embasado nele) e versa sobre institutos verdadeiramente internacionais (não institutos de direito interno que existem em diversos países)”.
Durante a Idade Média, o advento de uma forte tradição jusnaturalista de base teológica não impediu que Isidoro de Sevilha (560 – 636), Doutor da Igreja, definisse jus gentium como direito restrito aos príncipes. Não é universal e é particularizável, abrindo caminho para a autonomia deste ramo do direito em relação à ratio naturalis. Seu parágrafo é tão célebre quanto o de Gaio:
O direito das gentes trata da ocupação, da edificação e da fortificação de castelos e cidades, da guerra, dos cativos de guerra, da escravidão, da recuperação de direitos pelo postliminium, dos acordos de paz, das tréguas, da inviolabilidade das embaixadas, e da proibição do casamento entre pessoas de religiões diferentes. E é assim o direito das gentes, pois é a lei dos usos de todas as gentes.
A conquista do continente Americano e a exploração de sua população nativa pelos hispânicos foi o pano de fundo que despertou, entre os catedráticos de teologia de Salamanca, um retorno às discussões acerca do antigo jus gentium romano. Notadamente a filosofia de São Tomás de Aquino, e, secundariamente, o nominalismo de Ockham compõem a base ideológica sobre a qual Francisco de Vitoria e Francisco Suárez edificarão o resgate histórico do Direito das Gentes (BUCCI, 2014, p.53-56).
Truyol y Serra (2007, p.86) afirma que Francisco de Vitoria (1483-1546) desempenhou, no mundo jurídico-internacional, papel análogo ao de Tomás de Aquino no mundo jurídico-político: promover uma secularização e humanização ao admitir e trabalhar uma filosofia distinta da teologia. A concepção-chave na teoria de Vitoria é o totus orbis, a existência de uma comunidade global que supera os limites da Cristandade. Ele recupera o sentido atribuído por Gaio ao jus gentium, contudo, antecipa, junto com o seu discípulo Francisco Suárez, a ideia de um jus inter gentes, em que os sujeitos de Direito podem ser agrupamentos e não indivíduos singulares.
Deste núcleo axiológico tomista, derivam duas ideias: a prescrição daquele direito sobre todas as gentes e governos, em suma um jus cogens, e o direito natural de interação derivado do contato natural entre os povos, jus communicationis. Pelo primeiro conceito, Vitoria reconhece a igualdade entre espanhóis e indígenas e as garantias destes últimos como sujeitos de jus gentium, lança as bases para o princípio de que o Direito das Gentes deve prevalecer sobre a vontade dos Estados; todavia, legitima, pelo jus communicationis, várias ações empreendidas pelo projeto metropolitano (BUCCI, 2014,p.57) .
Francisco Suárez (1548 – 1617), granadino e escolástico voluntarista, é discípulo de Francisco de Vitoria. Deve-se a ele a distinção no seio do jus gentium entre jus intra gentes e jus inter gentes. Este último deve ser o direito internacional por excelência, cuja única fonte reside no costume internacional[2]. É o “ordenamento jurídico que regula as relações dos Estados como tais entre si” (TRUYOL Y SERRA, 2007, p.180), enquanto a outra categoria é bem mais abstrata. O jus intra gentes de Suárez é uma comunidade coincidente de direitos entre os ordenamentos jurídicos dos variados estados.
Cabe aqui uma ressalva com relação à teoria de Suárez e à concepção romana. O jus gentium romano era, de fato, um direito civil cosmopolita, fundamentado e aplicável para, e entre, os mais diferentes povos. O jus intra gentes de Suárez, todavia, é uma coincidência não vinculativa, sujeita a alteração parcial pela vontade de cada Estado, enquanto o jus inter gentes (passemos a chamar simplesmente de jus gentium) é positivo, vinculativo, histórico e só se altera totalmente por um “novo consenso entre povos” (BORGES DE MACEDO, 2014, p.21).
Roma teria sido, portanto, uma escola de jus intra gentes? De fato, a tradição romana toma jus gentium como um Direito Privado (desse modo, englobando diretamente os indivíduos). Contudo, a peculiaridade daquela civilização, única em seu tempo em abrangência política e em sistema jurídico, tornou os seus institutos praticamente universais sobre o mundo conhecido, constituindo um ordenamento muito mais concreto que o jus intra gentes suareziano.
2. O DIREITO DAS NAÇÕES
A ausência de propriedade normativa do jus intra gentes[3] em Suárez não pode ser compreendida à parte do processo político do século XVII. O Doutor Exímio vivia no mais poderoso reino do sistema de Estados europeus que ascendia. A Respublica Christiana - ou qualquer ideia de monismo político semelhante - estava em claro declínio diante da raison d’état do Cardeal Richelieu (BORGES DE MACEDO, 2014, p.8)[4]. A tradição jurídica romana que cunhou jus gentium não vislumbrava, e logo não precisou pensar sobre, povos com instituições análogas ao Estado da coisa romana e capaz de equiparar seu poder. Henry Kissinger define este processo de secularização e racionalização da política interestatal nos seguintes termos:
“Europe was thrown into balance-of-power politics when its first choice, the medieval dream of universal empire, collapsed and a host of states of more or less equal strenght arose from the ashes of that ancient aspiration” (KISSINGER, 1994, p.20)
Os juristas, a partir da Guerra dos Trinta Anos (1618 – 1648) e dos acordos de paz da Westphalia (1648), adaptaram-se ao modelo de sociedade internacional anárquica que se evidenciava, com Estados reconhecendo uma horizontalidade entre suas soberanias e buscando a consecução de seus interesses:
“In the world inaugurated by Richelieu, states were no longer restrained by the pretense of a moral code. If the good of the state was the highest value, the duty od the ruler was the aggrandizement and promotion of his glory.” (KISSINGER, 1994, p.66)
Um pensador alinhado a essa nova disposição da sociedade internacional foi o inglês Thomas Hobbes (1588 – 1679). Como nenhum de seus predecessores, rompe claramente com a tradição escolástica e grociana, ao restringir pela expressão britânica Law of Nations o direito à dinâmica interestatal, distanciando sensivelmente de jus gentium. Todavia, o Direito das Nações não deixa de ser equacionado ao direito natural[5]. Hobbes é o pai da ideia de “anarquia internacional” - os Estados atuam na liberdade de suas vontades - oriunda da ausência de um poder superior às sociedades políticas.
Hugo Grócio (1583 – 1645), holandês radicado na França, é contemporâneo a Thomas Hobbes. O debate entre as visões de ambos acerca da sociedade internacional faz com que muitos os enquadrem como os percursores do idealismo e do realismo, respectivamente, como paradigmas para as relações internacionais. Grócio foi responsável por secularizar o direito natural em meio às guerras religiosas europeias do século XVII.
O jurista de Delft edificou sua teoria da sociedade internacional sobre a base do estoicismo e sob a influência de Suárez. Do Pórtico depreende-se sua visão da igualdade entre os homens, solidificada na existência de fato de uma grande comunidade internacional. Do Doutor Exímio, observa-se a enfim consolidação da concepção de sistema internacional como o conjunto de Estados soberanos (summa potestas)[6]. Todavia, esses Estados necessitam estar em consonância a princípios da “justa razão”, emanados da raiz natural do jus gentium.
Grócio enxerga o pacta sunt servanda[7] como o eixo sustentador de todo o Direito Internacional Positivo. Considera, para além dos costumes, os tratados como fonte de jus gentium – é o reconhecimento do direito que se fundamenta pelo consenso entre as vontades das gentes[8].
Ele foi o compilador de institutos que seriam aplicados na Europa por toda uma era, e seus discípulos buscaram conciliar o Direito Natural à vontade e ao consenso entre a “Família das Nações”. Estes dois últimos elementos, por sua vez, são também base da doutrina positivista no Direito Internacional, que apesar de surgir ainda no século XVII, consolida-se apenas na metade final do XIX.
Os dois séculos que sucederam a Paz de Westphalia (1648) marcaram a conquista da monopolização da força pelo Estado soberano, dentro de um sistema internacional horizontalizado. A restrição da titularidade do Direito das Nações (expressão originalmente britânica) aos Estados é fruto deste processo e antecedeu a própria consolidação do positivismo jurídico, vide a cunhagem do termo International Law por Jeremy Bentham ainda em 1779.
O desenvolvimento da sociedade interestatal reforçou o papel prático da Diplomacia; para Daniel Mangabeira Dantas (2014), “a diplomacia se aproximava mais do Direito Positivo enquanto os acadêmicos inclinavam-se mais para o Direito Natural”. Esta última tendência - vista aqui em Vitoria, Suarez, Hobbes e Grócio mas também representada por Samuel von Pufendorf (1632 – 1694) é revertida pelo trabalho dos positivistas: Samuel Rachel (1628 – 1691), Cornelius van Bynkershoek (1673 – 1743), Christian Wolff (1679-1754) e Georg Friedrich von Martens (1756-1821), entre outros.
Para John Austin (1790 – 1859), aquilo que naturalistas e grocianos chamaram de “Direito das Gentes” é, na verdade, “moral internacional positiva” (MORRISSON, 2006, p.283). Retoma-se o argumento hobbesiano da inexistência de coação externa capaz de consolidar um “direito” no plano interestatal. Este ceticismo, incorporado também por Kant[9], é a base para a escola positivista clássica do século XIX. Nesse diapasão, Lassa F. L. Oppenheim (1858 – 1919) foi um grande sistematizador do Direito Internacional Público, que junto aos seus numerosos seguidores (Braz de Sousa Arruda, no Brasil) são inflexíveis quanto à admissão de um sujeito ativo de Direito Internacional que não fosse o Estado soberano.