O poder constituinte originário atua com plenitude de poderes e, a partir de uma ruptura institucional completa, elabora novas diretrizes aos governos, às instituições e aos poderes constituídos, baseado nos anseios do povo que representa.
Dada tal peculiaridade, também lhe é permitido instituir regras que, em um primeiro momento, pareçam contraditórias, ou indevidas, ou mesmo fora do contexto da Constituição: são exceções ao sistema, desejadas expressamente pelo legislador constituinte.
Nessa esteira, a Constituição de 1988 trouxe uma regra que é, claramente, excludente do princípio da universalidade do sufrágio, contido em seu art. 14 - a eleição indireta, a partir da segunda metade do mandato, para os cargos de Presidente e de Vice-Presidente da República:
Art. 81 Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga.
§ 1º Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei.
§ 2º Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores.
Como podemos perceber, a eleição é feita pelo Congresso Nacional, que também é o próprio corpo eletivo. Nessa circunstância, a Justiça Eleitoral não participa da organização da votação, nem é responsável pela sua apuração.
Em vista dos atuais acontecimentos pelos quais passa nosso país, o tema adquire vital importância. No entanto, dada a sua não regulamentação, desde 1988, pelo Congresso Nacional, a questão suscita, em substancial proporção, dúvidas em operadores do Direito, em parlamentares, em políticos em geral, em jornalistas e nas pessoas que buscam informações sobre uma sucessão votada somente pelos membros do Congresso Nacional.
EM QUE CASOS OCORRERIA UMA ELEIÇÃO INDIRETA?
Em princípio, nos casos em que ambos os cargos do Poder Executivo da União, Presidência e Vice-Presidência da República, fiquem vagos nos últimos dois anos do mandato em curso.
Não se pode deixar de destacar, contudo, uma forte controvérsia existente no meio jurídico-eleitoral: a tese de que, na hipótese de cassação dos mandatos pela Justiça Eleitoral, não incidiria o art. 81 da Constituição, mas sim o art. 224, § 4.º, do Código Eleitoral. Portanto, até os últimos seis meses anteriores ao término do mandato presidencial, haveria a realização de novo pleito (chamado eleição suplementar), realizada sob a universalidade do sufrágio.
Para que possamos entender mais objetivamente, a ideia é distinguir as causas da dupla vacância, a fim de determinar diferentes consequências:
a) extinção de ambos os mandatos por renúncia, morte ou impeachment = aplicação do art. 81 da Constituição;
b) cassação de ambos os mandatos em razão de processo na Justiça Eleitoral = aplicação do art. 224, § 4º, do Código Eleitoral.
No entanto, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, discorda de tal tese, tendo ajuizado a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 5525, assim noticiada pelo Supremo Tribunal Federal (STF):
“A antiga redação do artigo 224 do Código Eleitoral previa a realização de eleições suplementares quando o mandatário cassado por força de decisão judicial tivesse obtido mais de metade dos votos válidos. Caso o eleito tivesse recebido menos da metade dos votos válidos, o segundo mais votado assumiria o cargo. A nova redação, impugnada pela PGR, prevê realização de eleições como critério exclusivo, independentemente da quantidade de votos recebidos pelo mandatário cassado. A ação questiona também o método de realização das eleições previstas na nova lei (parágrafo 4º do artigo 224 do Código Eleitoral). Se o tempo restante de mandato do político cassado for superior a seis meses, realiza-se eleição direta; se inferior, a eleição deve ser indireta.
De acordo com o procurador-geral, há disciplina específica para os casos de vacância dos cargos de presidente e vice-presidente da República, disposta no artigo 81 da Constituição Federal (CF). O dispositivo prevê que, em caso de indeferimento de registro de candidatura ou cassação de diploma e perda de mandato, ocorrerá vacância no cargo de presidente. O cargo de vice-presidente, na condição de substituto e sucessor do titular, também será alcançado pela decisão judicial. “Essa não é matéria ao alcance de mudança por legislação ordinária, sob pena de ofensa à supremacia constitucional. A lei poderia, quando muito, oferecer detalhamento sobre o procedimento de realização de eleições, mas não trazer prazo diverso do previsto constitucionalmente para que ocorram eleições indiretas”, disse. Nesse ponto, pede a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, para afastar do âmbito de alcance da norma os cargos de presidente e vice-presidente.
Em relação aos governadores e prefeitos, a ADI sustenta que a norma usurpou competência dos estados-membros, do Distrito Federal e dos municípios para escolher o modo de eleição de seus mandatários, em caso de vacância na segunda metade do mandato. Segundo Janot, o Supremo, no julgamento da ADI 4298, decidiu que não é obrigatória a observância por estados e municípios do rito estabelecido pelo artigo 81 da CF, no trecho em que autoriza a realização de eleições indiretas. “A questão, portanto, é de repartição das competências federativas e de respeito aos espaços próprios dos estados-membros, do Distrito Federal e dos municípios. Lei federal, conquanto de caráter nacional, como é o caso do Código Eleitoral, não pode suprimir esse espaço autônomo de deliberação dos entes federados”, declarou Janot. De acordo com o procurador-geral, não há inconstitucionalidade no critério para escolha do sucessor, mas sim na fixação da modalidade dessa eleição quando deva ocorrer na segunda metade do mandato.”
Para Rodrigo Janot, “a lei esvazia a eficácia das normas eleitorais que protegem a regularidade e legitimidade das eleições”.
Portanto, caberá à Suprema Corte deliberar acerca da procedência, ou não, da tese descrita. O Relator, Ministro Luís Roberto Barroso, liberou seu voto nesta ADI em outubro do ano passado e, em 21/05/2017, disponibilizou também seu voto na ADI 5519, cujo teor é muito semelhante. Nela, no entanto, o Partido Social Democrático (PSD) requer que a nova redação do art. 224 do Código Eleitoral não seja aplicada quando o sistema adotado no pleito for o de maioria simples, como é o caso da eleição para senador e para prefeito de cidade com menos de 200 mil eleitores; ou seja, a agremiação entende que, quando o mais votado tiver seus votos anulados em decisão transitada em julgado, deve ser considerado eleito o candidato que ficou em segundo lugar.
Ambas ações aguardam colocação em pauta, a fim de que sejam julgadas em conjunto.
QUAIS SERIAM AS REGRAS APLICÁVEIS?
Há fartas discussões sobre quais as normas aplicáveis ao caso, dado que o legislador ordinário brasileiro não regulamentou, de acordo com os termos da Constituição de 1988, a eleição indireta para os mais altos cargos da nação.
Embora exista um ato normativo a ditar regras exatamente sobre tal situação, a Lei n. 4.321/64 (“Dispõe sobre a eleição, pelo Congresso Nacional, do Presidente e Vice-Presidente da República”), não temos um pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre sua validade em face da atual Carta Magna.
Por isso, especialistas divergem sobre pontos nevrálgicos de um pleito hipotético, já que a Constituição não especifica se as regras das eleições gerais devem valer para uma votação indireta. Por isso, tal lacuna de regramento poderia ensejar, ou não, uma aplicação, conjugada ou não, de atos normativos diversos, tais como a Lei n. 9.504/97, o Regimento Comum do Congresso Nacional e até mesmo resolução do parlamento brasileiro.
Sendo uma situação fora do comum, Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e parlamentares acreditam em adaptação das regras para que haja uma solução política. Cita-se, por exemplo, que, em casos de eleições suplementares para prefeituras, o TSE adaptou prazos de filiação ou de descompatibilização para viabilizar a eleição – isso poderia, eventualmente, ser feito em uma eleição indireta.
"Na verdade, há duas leis sobre o tema, uma de 1951 e outra de 1964. Tem especialistas que dizem que a primeira ainda está em vigor, outros acreditam que a que vale é segunda. A lei é tão antiga que fala em voto em cédula de papel, mas os parlamentares já votam por meio de painel. Vivemos na era da urna eletrônica", observa Alberto Luis Rollo, professor de Direito Eleitoral da Universidade Presbiteriana Mackenzie, ao falar sobre as Leis n. 1.395/51 e n. 4.321/64. No entanto, esclarece-se que a primeira foi expressamente revogada pelo art. 50 da LC n.º 1/62.
Segundo ele, para haver eleição indireta é preciso ter maioria absoluta do Congresso presente – metade do total de parlamentares mais um. Já para Daniel Falcão, professor de Direito Eleitoral do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) e da USP (Universidade de São Paulo) de Ribeirão Preto (SP), pode haver segundo turno e ele acontece "poucas horas depois do primeiro turno". Entretanto, Thales Tácito Cerqueira, Promotor de Justiça Eleitoral de Minas Gerais e ex-Vice-Diretor da Escola Judiciária Eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) afirma que "não há segundo turno". Rollo, por sua vez, diz que há duas votações até que alguém tenha maioria absoluta: "Se ninguém tiver, há uma terceira votação. Ganha em tiver maioria simples."
As opiniões são divergentes porque não há uma legislação atual que dite as regras do jogo de uma eleição indireta. Para Adilson Dallari, professor de Direito da PUC-SP e especialista em Direito Político pela USP, o caso apresentado agora tem um componente político “imenso”. Por isso, não descarta o surgimento de soluções “nada ortodoxas” para a solução do impasse. “Há a possibilidade de uma solução muito mais política do que jurídica propriamente dita”, diz.
Segundo Paulo Lucon, presidente do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) e professor de direito da USP (Universidade de São Paulo), em caso de vacância da presidência, o Congresso terá de legislar antes de dar início ao processo eleitoral, ou seja, teria de deliberar, por exemplo, acerca do PL n. 5.821/2013, que está parado para apreciação no plenário da Câmara dos Deputados desde 2013.
Outro buraco, segundo Walber de Moura Agra, autor de "Temas Polêmicos do Direito Eleitoral": "Para dar mais legitimidade, o eleito deveria contar com quórum de maioria absoluta", ou seja, mínimo de 41 senadores e 257 deputados. "Mas a Constituição não prevê nada, nada, nada", diz. Caberia ao Congresso definir os parâmetros da seleção.
Ademais, inexiste definição acerca do caráter do voto (se aberto ou secreto), nem se a votação pelos membros do Congresso Nacional seria uni ou bicameral.
QUEM PODERIA SER CANDIDATO?
Não existe consenso entre os especialistas sobre quem poderia ser candidato na eleição indireta. Existem, pelo menos, três correntes de pensamento: qualquer pessoa pode se candidatar, apenas parlamentares podem ser candidatos e, por fim, os candidatos devem ter filiação partidária e preencher os requisitos de elegibilidade.
Isso porque a Constituição não especifica se as regras de elegibilidade (ser brasileiro, ter 35 anos ou mais, filiado a um partido etc.) se aplicam num pleito indireto, o que faz com que alguns especialistas defendam que se siga o roteiro geral e outros que essas normas não valem no pleito indireto. Caberia ao Congresso definir.
“É uma zona de dúvida. A Constituição trata dos requisitos para a elegibilidade do presidente, mas não fala especificamente na eleição indireta”, afirma Fernando Neisser, coordenador-adjunto da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).
Para o professor da Faculdade de Direito da USP, Rafael Mafei, existem duas alternativas possíveis. “Uma é: como não há disciplina, não pode haver nenhum tipo de restrição. Então, qualquer um poderia se candidatar. Uma outra interpretação, que me agrada mais, porque acho que ela é mais parametrizada, é fazer uma analogia com aquilo que já existe”, afirma. E acrescenta: “Como não existe uma regra específica para essa situação, vamos pegar a regra mais próxima que disciplina uma situação análoga”.
Professor de direito da USP, André Ramos Tavares acha que "o figurino comum não se aplica a exceções". Zela o "figurino comum" que um aspirante à Presidência precisa se filiar a um partido ao menos um ano antes das urnas, ter 35 anos ou mais e ser brasileiro de nascença ou naturalizado, entre outros pré-requisitos. Por não ser "uma eleição para a sociedade", Tavares crê que a propaganda eleitoral não faz sentido na prática. A teoria não está posta.
A maioria, entretanto, discorda deste último posicionamento, vendo como requisitos para concorrer aos cargos em uma eleição congressual as mesmas exigências do pleito comum.
José Ribamar Santos Vaz, Juiz de Direito aposentado, ex-membro e Corregedor Eleitoral do TRE-MA, afirma que: “O texto constitucional, em análise, não consagra determinação sobre quem poderá concorrer nas eleições diretas ou indiretas, como aludidas no ‘caput’ e no parágrafo 1º do citado artigo 81. Entretanto, facilmente, se pode depreender que, a concorrência é livre entre as pessoas habilitadas, mediante filiação partidária, quites com a Justiça Eleitoral e não alcançadas pelos efeitos da lei ‘Ficha Limpa’. Já no segundo caso, em se tratando de eleição indireta, a competência para a escolha dos eleitos ficará a cargo dos membros do Congresso Nacional, com extensividade para os integrantes das Assembleias Legislativas dos Estados e das Câmaras Municipais, se for o caso. Também nesta última situação, a eleição se dará entre pessoas que preencham os mesmos requisitos da eleição direta.”
Também Paulo Lucon afirma que, em atenção aos princípios democráticos, a eleição indireta deve ter a mesma lógica da direta, por isso "todos aqueles que atendem as condições de elegibilidade previstos na Constituição Federal e não incidam em alguma causa de inelegibilidade podem ser candidatos nessa eleição indireta".
Alberto Luis Rollo também afirma que, para se candidatar nas eleições indiretas, valeriam as mesmas regras válidas para as eleições para presidente realizadas de quatro em quatro anos: "O político tem que ter um ano de domicílio eleitoral, e estar filiado há pelo menos seis meses a um partido político".
Só não podem se candidatar políticos que foram condenados por algum órgão colegiado, seja ele um tribunal ou o próprio STF (Supremo Tribunal Federal). "No caso da Lava Jato, se o político foi condenado só pelo juiz Sergio Moro, pode se candidatar. Mas se ele foi condenado pelo TRF 4 ou pelo STF, fica com a ficha suja e por isso inelegível", esclarece Daniel Falcão.