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Estudo sobre a responsabilização das empresas e do Estado na ocorrência do dano ambiental

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23/11/2019 às 08:40
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3 CAUSAS E CONSEQUêNCIAS DO ROMPIMENTO DA BARRAGEM DE FUNDÃO

A Samarco Mineração S/A é uma pessoa jurídica de direito privado, fundada em 1977, que exerce atividade de extração mineral e beneficiamento de ferro, explorando a Mina de Germano, situada no Complexo Alegria, no distrito de Santa Rita Durão, em Mariana/MG. Atualmente, a Samarco Mineração S/A é controlada por duas outras grandes empresas: A Vale S/A e a BHP Billiton Brasil Ltda. (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 11).

O produto extraído da mina é transportado para o Estado do Espírito do Santo, através de minerodutos e seus rejeitos são armazenados em barragens próximas, como a Barragem de Germano, a Barragem de Fundão e a Barragem de Santarém (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 11).

Na tarde do dia 05 de novembro de 2015, a barragem de rejeitos Fundão, localizada no vale do Córrego Fundão, na zona rural do distrito de Bento Rodrigues, a cerca de 23KM (vinte e três quilômetros) do município de Mariana/MG, apesar de estar devidamente licenciada pelos órgãos ambientais competentes, rompeu e seus resíduos atingiram a barragem de Santarém, que sem ter a sua estrutura prejudicada de fato, transbordou, ocasionando danos ambientais, sociais e humanos, em especial, à fauna, à flora e à população do Estado de Minas Gerais (JUSTIÇA AMBIENTAL, 2015, n° 12, p. 3).

A partir desta data, foi instaurado inquérito civil por meio do Núcleo de Resolução de Conflitos Ambientais (Nucam) e o Núcleo de Combate a Crimes Ambientais (Nucrim), para a apurar as causas, consequências e os responsáveis pelo maior desastre ambiental da história de Minas Gerais. Para tanto, formou-se uma equipe com 15 (quinze) promotores de justiça e 10 (dez) técnicos ambientais (JUSTIÇA AMBIENTAL, 2015, n° 12, p. 4).

O Ministério Público Federal, em atuação conjunta com o Ministério Público do Estado do Espírito Santo e o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, após a instauração do inquérito civil concluiu que o desastre ambiental ocorrido em Mariana/MG foi resultado de falhas previsíveis e previstas na estrutura da barragem de Fundão, segundo consta da Ação Civil Pública movida pelo MPF e distribuída por prevenção aos autos n° 60017-58.2015.4.01.3800 e 69758-61.2915.4.01.3400.

De acordo com informações do Ministério Público Federal, o percurso dos 62 milhões de metros cúbicos de lama resultantes do rejeito da produção de minério de ferro depositada no Rio Doce deixou 19 (dezenove) pessoas mortas, além de mais de 300 (trezentas) famílias desabrigadas e dezenas de cidades sem abastecimento de água por vários dias. Outrossim, destruiu matas ciliares, soterrou nascentes, comunidades e animais, chegando ao mar do Estado do Espírito Santo, no dia 21 de novembro de 2015, às 15h00min (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 12).

Logo após o desastre ambiental, no dia 16 de novembro de 2015, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, juntamente com o Ministério Público Federal e a Samarco Mineração S/A firmaram um Termo de Compromisso Preliminar, cujo objeto é o estabelecimento de caução socioambiental com a finalidade de assegurar o custeio de medidas preventivas emergenciais, mitigatórias, reparadoras ou compensatórias ambientais e socioambientais, no valor de R$1.000.000.000,00 (um bilhão de reais) (INQUÉRITO CIVIL n° MPMG-0024.15.016236-0).

Diante dos fatos, a Força-Tarefa do Ministério Público Federal, responsável pela investigação do rompimento da Barragem de Fundão, ajuizou Ação Civil Pública, com pedido liminar, em face das empresas Samarco Mineração S/A e suas controladoras, bem como da União, Estado de Minas Gerais e Espírito Santo, com o objetivo de compeli-los a reparar integralmente os danos ambientais, sociais e econômicos causados naquela ocasião (MPF, 2016, p. 1).

3.1 DANOS SOCIOAMBIENTAIS

A tragédia de Mariana/MG, considerada o maior desastre ambiental do mundo com barragem de rejeitos, acarretou danos ao meio ambiente, à sociedade e à economia regional da bacia do Rio Doce, chegando ao Oceano Atlântico, pelo município de Linhares/ES, “os prejuízos que se viram às primeiras horas e que aumentaram com o passar do tempo, projetam-se hoje com um devir que não tem tempo certo para findar. Danos contínuos e, em sua maioria, perenes” (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 15).

Dentre os danos socioambientais encontram-se a perda de vidas humanas, da biodiversidade, poluição e contaminação de recursos hídricos, em especial o Córrego de Santarém, o Rio Gualaxo do Norte, o Rio do Carmo e o Rio Doce e seus afluentes, bem como do solo, do ar e destruição do meio ambiente artificial e cultural.

3.1.1 Danos aos Recursos Hídricos

Ao longo do percurso a onda de lama foi levando consigo solo, vegetação e construções, prejudicando o habitat de diversas espécies da flora e fauna brasileira, além de provocar a mortandade de pessoas e animais.

Um dos primeiros impactos da lama proveniente da ruptura da barragem de rejeitos foi a destruição da calha e do curso natural do Córrego de Santarém, eliminando-o completamente. Ocorreu também o assoreamento dos Rios Gualaxo do Norte, Carmo e parte do Rio Doce. Além disso, verifica-se constantemente o carreamento e deposição de sedimentos nos cursos d’água, em razão do depósito da lama minerária nas margens dos rios, prejudicando a capacidade natural de transporte de partículas rumo à sua foz (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 16).

O depósito de substâncias nos rios e córregos geram graves problemas de abastecimento de água, sendo insuficiente para atender as necessidades básicas humanas e animais. O fornecimento de água mineral foi fato propulsor de Ação Civil Pública proposta pela Defensoria Pública da União em prol da população de Governador Valadares/MG.

A poluição dos Rios Gualaxo do Norte e do Carmo foi tão intensa que o IGAM- Instituto Mineiro de Gestão de Águas de Minas Gerais apontou a impossibilidade de coletar amostras para avaliação da qualidade da água (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 17).

Em seguida, os rejeitos provenientes das barragens de Fundão e Santarém atingiram o Rio Doce, que é um rio federal e compõe a principal bacia hidrográfica totalmente inserida na região sudeste. Estudos e relatórios desenvolvidos pelo IBAMA a partir de 05 de novembro de 2015 indicam que o Rio Doce experimentou grandes mudanças em sua composição, contando com a elevação dos níveis de turbidez de sua água, em razão do despejo de lama contaminada por produtos minerários, o que implicou na redução do oxigênio presente na água, chegando a ser inexistente em alguns pontos do rio (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 18).

A Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais em seu Relatório Técnico n° 01/2015, indicou os seguintes impactos ambientais no Rio Doce, principalmente no trecho que passa pelo Parque Estadual Sete Salões:

i) acentuação do processo de assoreamento do Rio Doce, o que compromete o substrato do rio e seu ambiente bentônico, que pela presença desta camada inerte pode impedir o uso e reprodução de peixes e anfíbios. Além de agravar a situação de enchentes e inundações que são um problema recorrente na região; ii) acúmulo de rejeitos de minério de ferro e danificação na vegetação de preservação permanente, o que pode provocar impactos diretos na floração e propagação das espécies; iii) alteração nas condições estéticas do meio, a degradação da paisagem do Rio Doce que está diretamente ligada a identidade da unidade de conservação.

Com a chegada da lama à foz do Rio Doce, no Oceano Atlântico, no Estado do Espírito Santo, constatou-se, pelo Relatório Técnico Parcial emitido em fevereiro de 2016, pelo Departamento de Oceanografia e Ecologia da Universidade Federal do Espírito Santo, a partir de dados colhidos pelo navio Vital de Oliveira, maior turbidez da água oceânica e menor concentração de oxigênio, bem como o aumento da quantidade de metais pesados como Alumínio, Ferro, Manganês e Cromo. Isto acarreta impactos inevitáveis nas áreas de estuários e no chamado Banco dos Abrolhos (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 25).

Importante mencionar que os estuários do Rio Doce são ecossistemas peculiares e altamente sensíveis, onde não só acontece a reprodução de diversas espécies de peixes, como também atua como “berçário” de inúmeras espécies de animais aquáticos. Além disso, o estuário do Rio Doce é habitat de animais em extinção, como o Cardisoma guanhumi, crustáceo popularmente conhecido como guaiamun. O Banco dos Abrolhos também abriga uma grande variedade de espécies da fauna marinha que lá habitam ou fazem rota (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 26).

Ademais, o litoral norte do Espírito Santo também é uma área especial, uma vez que é local de desova de tartarugas marinhas ameaçadas de extinção, dentre elas a Caretta caretta, mais conhecida como tartaruga-cabeçuda e a Dermachelys coriacea, ou tartaruga-de-couro (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 26).

Depois do rompimento da barragem de Fundão, mas antes da lama chegar ao Espírito Santo, as Autoridades competentes firmaram Termo de Compromisso Socioambiental Preliminar com as empresas responsáveis pela extração mineral, no sentido de adotarem medidas emergenciais, com o objetivo de tentar mitigar os efeitos negativos deste desastre ambiental (INQUÉRITO CIVIL n°MPMG-0024.15.016236-0).

3.1.2 Danos à Flora

De acordo com o Relatório Técnico elaborado pelo Instituto Estadual de Florestas – IEF, os rejeitos provenientes do rompimento da barragem de Fundão e o galgamento da barragem de Santarém atingiram 1.587,005 ha (um mil, quinhentos e oitenta e sete hectares e cinco litros) na Bacia do Rio Doce, dos quais 511,087ha (quinhentos e onze hectares e oitenta e sete litros) eram cobertos por vegetação típica de Mata Atlântica, bioma já em extinção (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 36).

Devido às grandes extensões de áreas de preservação permanente, matas ciliares e vegetação em geral devastadas pela onda de lama, desencadeou-se o processo de erosão do solo, mudanças nos fluxos hídricos, assoreamento dos córregos e rios, prejudicando todo o ciclo hidrológico e a manutenção da biodiversidade local (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 36).

Outro problema ocasionado por este desastre ambiental diz respeito à recuperação solo, haja vista que é possível que os rejeitos afetem a sua composição química, principalmente o pH, dificultando ainda mais o desenvolvimento de espécies nativas e, consequentemente, a recuperação da flora.

Tendo em vista que a lama soterrou comunidades e ecossistemas inteiros, não é difícil acreditar que tenha agravado a ameaça de extinção de árvores como o jacarandá-cabiúna, a braúna e o palmito Euterpe edulis, e ainda colocado sob ameaça de extinção outras espécies anteriormente abundantes (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 39).

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É no Parque Estadual do Rio Doce, onde se encontra a maior floresta tropical do Estado de Minas Gerais, a qual foi comprometida com a chegada da lama, principalmente as suas matas ciliares e os cursos de água, o que intensificou ainda mais os prejuízos à biota do local (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 39).

3.1.3 Danos à fauna

Conforme o Laudo Técnico Preliminar elaborado pelo IBAMA, em 26 de novembro de 2015, espécies nativas da fauna brasileira que habitavam a área atingida pelos rejeitos provenientes da atividade minerária da Samarco Mineração S/A sofreram sérios impactos (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 40).

A invasão da lama contaminada, em especial nos limites das Unidades de Conservação, reduz a disponibilidade de recursos em áreas outrora consideradas aptas para a perpetuação de diversas espécies de aves, importando no desuso da região, na alteração da alimentação e reprodução, e até mesmo na rota migratória. O consumo de peixes mortos e contaminados pelas avifauna aquática também pode interferir na sua procriação, causando má formação dos ovos e comprometimento de órgãos e estruturas do sistema reprodutivo (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 42).

O IBAMA calcula que os animais fossoriais e de porte pequeno foram dizimados na extensão por onde os rejeitos percorreram. Quanto aos animais domésticos e silvestres, relatórios apontam que eles têm tido dificuldades de acesso à água para dessedentação, devido à grande quantidade de sedimentos depositados nas margens (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 43).

Répteis e anfíbios também morreram em decorrência do escoamento da lama de rejeitos. A herpetofauna remanescente enfrenta o problema do comprometimento do substrato dos cursos d’água e do seu ambiente bentônico, o que interfere na reprodução e dificulta a sobrevivência.

Além disso, pesquisas realizadas pelos órgãos de fiscalização constataram que muitos organismos aquáticos foram soterrados pelos rejeitos que transbordaram da barragem de Fundão, sendo que, até o dia 26 de dezembro de 2015 foram identificados e retirados do Rio Doce 28.000 (vinte e oito mil) peixes mortos (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 49).

Assim, a ictiofauna foi o grupo mais afetado pelos efeitos do rompimento da barragem de Fundão e seus reflexos, sendo que o Instituto Estadual de Florestas, apontou a mortandade geral de peixes nos trechos do Rio Doce, afetando a conservação da biodiversidade e o equilíbrio ecológico, além da indução da migração dos peixes para afluentes do Rio Doce, onde há recursos escassos, sobretudo em função da má qualidade das águas, comprometendo profundamente a sobrevivência (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 48).

Cabe mencionar ainda que, o aumento da turbidez da água bloqueia a entrada de raios solares, impossibilitando a fotossíntese, o que abala os organismos aquáticos produtores, como o fitoplâncton e, consequentemente, desequilibra toda a cadeia trófica.

Além disso, a alteração físico-química provocada pela lama promove a compressão das brânquias, levando os peixes a morte por asfixia. Outro fator apontado como agravante dos danos provocados à ictiofauna é que o desastre ocorreu entre os dias 01 de novembro e 28 de fevereiro, período de reprodução dos peixes e crustáceos, conforme disciplina a Instrução Normativa n° 195/2008 do IBAMA, o que também foi confirmado pelas necropsias feitas em espécies coletadas no Rio Doce, constatando-se que diversos peixes e camarões de água doce estavam prontos para desova (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 48).

Este cenário é propício não só para aumentar o grau de ameaça de extinção das espécies enumeradas na Portaria MMA 455/2014, mas também para reduzir à condição de ameaçadas espécies anteriormente numerosas.

Por fim, ressalte-se que o desastre em comento ultrapassa os limites da mortandade instantânea dos organismos vivos da fauna e flora, eis que sensibiliza os processos ecológicos responsáveis por produzir e conservar a diversidade na Bacia do Rio Doce, acarretando danos ecológicos no presente e para o futuro.

3.1.4 Danos ao Patrimônio Histórico-Cultural, Paisagístico e Arqueológico

Para além do patrimônio paisagístico natural, o desastre ambiental ocorrido em 05 de novembro de 2015 produziu sérias avarias no patrimônio histórico-cultural arqueológico, representado, especialmente, pelos templos religiosos da região, assim como graves impactos no patrimônio cultural imaterial, que corresponde às manifestações culturais e os costumes da população regional.

 Quanto às construções religiosas, as investigações relatam a destruição da Capela de São Bento, localizada no distrito de Bento Rodrigues; danos na fachada e lateral direita, inclusive a quebra de vitrais e da porta de madeira da Capela de Santo Antônio, no distrito de Paracatu de Baixo; e estragos na infraestrutura da Capela de Nossa Senhora da Conceição, em Gesteira, distrito de Barra Longa/MG (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 51).

Somado a estes, o rompimento da barragem de Fundão causou alterações relevantes na paisagem natural do caminho percorrido pela lama contaminada com os rejeitos da atividade minerária, causando danos degressivos, isto é, os pontos mais próximos à barragem experimentaram maiores prejuízos do que as localidades mais afastadas, sendo que o subdistrito de Bento Rodrigues, assentado nas adjacências da barragem de Fundão, foi totalmente soterrado pela lama, segundo o Laudo Técnico Preliminar do IBAMA (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 54).

Toda a microrregião diretamente impactada, composta pelos municípios de Mariana/MG, Barra Longa/MG, Rio Doce/MG e Santa Cruz do Escalvado/MG sofreu grandes prejuízos em todos os setores da economia, desde atividades primárias, como a produção agrícola, pecuária e extrativismo, até a indústria, comércio e turismo. A este respeito, a Força-Tarefa do Ministério Público apurou que o prejuízo econômico privado suportado pela microrregião monta a quantia de R$ 253.056.436,42 (duzentos e cinquenta e três bilhões, cinquenta e seis milhões, quatrocentos e trinta e seis reais e quarenta e dois centavos) (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 56).

O Poder Público Municipal também experimentou a redução de seu erário, em razão da diminuição da arrecadação tributária, das ações emergenciais necessárias para abrandar as consequências do desastre ambiental sobre a população, bem como da perda de receita em serviços essenciais, como o abastecimento de água, o esgotamento sanitário e o fornecimento de energia elétrica (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 57).

A morte de 19 (dezenove) pessoas e a devastação da vida de milhares de seres humanos, que ficaram desabrigados e perderam muito mais que todos os seus bens materiais, mormente, “os atingidos perderam o estilo de vida pacífico de que desfrutavam em comunidade e a tranquilidade que o convívio diário nas comunidades atingidas lhes propiciava” (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 62), demostra que, para além dos danos socioambientais e econômicos, o rompimento da barragem de Fundão acarretou danos de natureza humana que são impossíveis de mensurar e reparar, culminando em danos histórico-culturais imateriais.

O distrito de Bento Rodrigues, conforme já mencionado, foi o mais devastado pela onda de rejeitos que arruinou mais de 180 (cento e oitenta) construções, veículos, maquinários, animais domésticos, lavouras, sepultando comunidades inteiras e com elas a história de vida e tradição de cada indivíduo.

Os povos indígenas e comunidades tradicionais são intimamente vinculados aos recursos naturais, o que majora a sua vulnerabilidade a impactos ambientais. De acordo com o Ministério Público Federal:

Os povos indígenas e as comunidades tradicionais têm um modo diferenciado de apropriação, uso e significação do território, o qual está intimamente ligado à expressão de suas identidades coletivas. O território tradicional e seus elementos naturais são o suporte do modo de vida diferenciado indígena e das comunidades tradicionais, protegidos por tratados internacionais e pela Constituição da República de 1988 (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 70).

É por isso que desastres ambientais como o rompimento da barragem de Fundão, em 2015, alteram drasticamente o modo de vida destes povos, motivando-os a iniciar processos de migração rumo aos centros urbanos e com isso, deixando para trás, sob os destroços, toda a sua expressão cultural.

Desde o acidente com a barragem de rejeitos operada pela Samarco Mineração S/A, em Mariana/MG, os povos indígenas Krenak, Tupiniquim e Guarani e as comunidades tradicionais de quilombolas, ribeirinhos e pescadores artesanais residentes na Bacia do Rio Doce vêm sofrendo com a poluição geral do território, sobretudo com a escassez de água potável, utilizada, em especial, para o consumo direto dos grupos, dessedentação de animais, banho e pesca, o que inviabiliza também as suas atividades agrícolas e a caça.

A tribo Krenak tem uma forte relação espiritual com o Rio Doce, sendo este um forte aspecto de identificação cultural. Neste sentido está o Parecer n° 03/2016/PGR/SEAP, confeccionado pela Perita em Antropologia do Ministério Público Federal, Maria Fernanda Paranhos:

A partir da pesquisa realizada, podemos afirmar que o Rio Doce é um lugar fundamental do território e no modo de ser Krenak. O rio tem um papel ativo não apenas na sustentabilidade e na recreação como também na cosmologia indígena. A relação dos Krenak com o rio é parte ativa nos seus processos socioculturais, influencia sua organização e dinâmica social, sua moral e seus valores ético-espirituais. (...) O Rio Doce é relatado como lugar habitado pelos Krenak não só por atender as suas necessidades biológicas, mas um espaço de reprodução social da sua cultura, espaço da tradição, referência na afirmação da identidade Krenak. (...) A identidade dos Krenak fundamenta-se no pertencimento ao seu território, ao Rio Doce, ao lugar que os orienta.

Além disso, a FUNAI observou que, em conformidade com a crença desta tribo indígena, o desastre ambiental em enfoque provocou a morte do Rio Doce, ou Uatu, de acordo com a linguagem Krenak, o qual é parte fundamental de seus ritos sagrados, gerando sérias disfunções de natureza psíquica nos indígenas, sendo os anciãos os mais abalados (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 75).

A pesca é de grande relevância para os povos indígenas Tupiniquim e Guarani, predominantes no Estado do Espírito Santo, haja vista que essa atividade não se limita à função de garantir a segurança alimentar, mas também é uma característica peculiar do modo de vida da comunidade e, inclusive, é vista como uma maneira de lazer e conservação dos laços sociais.

As tribos Tupiniquim mantêm forte vínculo com o estuário do Piraquê-Açu, “nas histórias de vida fica clara a importância da pesca e da mariscagem”, sendo que, geralmente “o resultado da pesca, quando não destinada à venda e em quantidade suficiente, é distribuída com os parentes, vizinhos e compadres” (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 83).

A preservação do ecossistema praiano e do estuário do rio Piraquê-Açu é igualmente relevante para as tribos Guarani, porque além da pesca ser fonte de alimento, o estuário traduz a noção de tekoha, isto é, a unidade política, religiosa e territorial desse povo, concebido como o “lugar em que se realiza o modelo de ser Guarani” (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 83).

Importante transcrever mais um trecho do laudo pericial antropológico confeccionado pela equipe do Ministério Público Federal sobre a importância dessa região para os indígenas, notadamente, os Guarani:

O rio Piraquê-Açu e o Mangue desempenham um papel também importante como fonte de alimento para a comunidade, visto que a caça também muito apreciada pelos Guarani, é difícil na região devido às poucas áreas de mata preservada, em razão do monocultivo do eucalipto e de outros empreendimentos econômicos que afetaram as terras indígenas de Aracruz (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 83).

Não se pode deixar de assinalar que a diminuição do turismo na região foi um dos mais expressivos impactos do rompimento da barragem de Fundão sobre a economia dos povos indígenas, uma vez que a venda de artesanato era a principal fonte de renda destas comunidades (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 85).

Além dos povos indígenas, ao longo da Bacia do Rio Doce, existem vários grupos de diferentes comunidades tradicionais, dentre elas, os quilombolas[4], os caipiras[5], os pomeranos[6] e os pescadores artesanais.

Os pescadores artesanais suportaram danos ainda mais expressivos, eis que a pesca é uma importante atividade econômica na Bacia do Rio Doce, que gera emprego e renda, especialmente, para as camadas mais pobres da população, bem como tem fundamental influência na alimentação da comunidade.

Conforme dados extraídos do abortado Ministério de Pesca e Aquicultura, em 2010 mais de 600.000 (seiscentas mil) pessoas viviam com o faturamento proveniente da atividade pesqueira artesanal, que além de fone de recursos econômicos é um ofício clássico, que revela um estilo de vida singular. A este respeito, Diegues (1993, p. 22 apud ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.380) leciona:

A essência da pesca artesanal é o conjunto de conhecimentos sobre o meio ambiente, as condições das marés, a identificação dos pesqueiros, o manejo dos instrumentos de pesca, etc. Este conjunto de conhecimentos faz parte dos meios de produção dos pescadores artesanais e, em geral, é transmitido de pai para filho e guardado ciosamente pelos pescadores.

Desde Mariana/MG até o litoral do Espírito Santo foram computados 2.574 (dois mil, quinhentos e setenta e quatro) pescadores profissionais, segundo dados do Sistema Informatizado do Registro Geral da Atividade Pesqueira- SisRGP. Entretanto, considera-se que grande parte dos trabalhadores do setor pesqueiro são informais, sem inscrição no órgão competente (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.3800, p. 91).

Pois bem, o evento danoso em comento reflete diretamente no modo de vida dos povos indígenas e das comunidades tradicionais da Bacia do Rio Doce, os quais tiveram a própria sobrevivência e a sua tradição e de seus antepassados ameaçadas.

3.2 RESPONSÁVEIS DIRETOS E INDIRETOS

O desastre ambiental iniciado no distrito de Bento Rodrigues, provocou inestimáveis danos, imediatos e futuros, ao patrimônio ambiental, à coletividade[7], mais profundamente, às comunidades da Bacia do Rio Doce e ainda em maior grau, àquelas mais próximas à barragem de Fundão.

Diante disso, nasce o dever de indenizar dos responsáveis de maneira direta ou indireta pela operação da Mina de Germano, bem como dos entres federativos do Estado e seus órgãos e entidades responsáveis pela proteção ambiental e regularização de atividades minerárias.

A Barragem de Fundão não só era utilizada para a deposição de rejeitos provenientes da atividade de extração de minério de Ferro na Mina de Germano, explorada pela Samarco Mineração S/A, como também era usufruída para a mesma finalidade pela Vale S/A (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.380, p. 108).

A empresa BHP Billiton Brasil Ltda, assim como a Vale S/A, é sócia controladora da Samarco Mineração S/A, pelo que também deve figurar no polo passivo de quaisquer ações que visem a composição dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em razão da possibilidade de aplicar-se ao caso o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, previsto no artigo 4° da Lei n°9.605/98.

Ademais, o Poder Público, representado por seus entes com competência para gerir assuntos em matéria ambiental, tem a obrigação de atuar de modo a evitar a ocorrência de danos ao meio ambiente, ou caso eles aconteçam, deve agir para que eles sejam reduzidos, promovendo a recuperação ou compensação do dano (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.380, p. 109).

De acordo com as investigações do Ministério Público Federal e demais envolvidos na apuração do caso Samarco, constatou-se o seguinte:

Para a ocorrência de um dano desta monta, concorreram falhas não só do particular explorador da atividade, mas do Estado brasileiro em permitir que a atividade fosse desenvolvida dentro de parâmetros de segurança tais que fossem incapazes de impedir a ocorrência do maior desastre ambiental do país (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.380, p. 110).

Portanto, o Poder Público brasileiro, notadamente a União e o estado de Minas Gerais, por intermédio de seus órgãos e entidades, tais como o IBAMA, Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD), IEF, Instituto Mineiro de Gestão de Águas (IGAM) E Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), conjuntamente com as empresas responsáveis pela exploração mineral no Complexo Alegria, tinha o dever de evitar a ocorrência destes danos, sendo que a omissão o Estado, ao exercer um poder de polícia falho, seja na fase de licenciamento, seja na fase de fiscalização da segurança da atividade minerária, é um dos motivos ligados ao resultado danoso (ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.380, p. 111).

Uma vez efetivado o dano, somando esforços com a Samarco Mineração S/A, Vale S/A e BHP Billinton Brasil Ltda., cabe à União, aos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo[8] e suas entidades da Administração, promover medidas com o objetivo de reestabelecer o meio ambiente natural, artificial, cultural e do trabalho e, principalmente, garantir a subsistência de todos os seres vivos sobreviventes ao desastre e suas futuras gerações.

3.3 DEVER DE REPARAÇÃO/INDENIZAÇÃO DO DANO AO MEIO AMBIENTE

Não é novidade que o dever de reparar os danos provocados ao meio ambiente goza de expressa previsão constitucional, impondo-se ao poluidor, além da responsabilização civil, sanções administrativas e criminais, consoante estabelece o artigo 225, §3° da Constituição da República Federativa do Brasil.

Ademais, o princípio do poluidor-pagador encontra respaldo na legislação infraconstitucional, notadamente, na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, em seu artigo 4º, VII, ao determinar que: impõe-se ao poluidor e ao predador a obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados, à medida que, cabe ao usuário contribuir pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos.

Saliente-se que, a Carta Magna confere atenção especial às atividades minerárias, em seu artigo 225, §2°, impondo ao explorador de recursos minerais, a obrigação de reparar os danos que a sua atividade der causa.

Diante disso, é notável que a Samarco Mineração S/A e suas empresas controladoras se encaixam no conceito de poluidor do artigo 3°, IV da Lei 6.938/81, devendo, pois, responder de maneira objetiva, com fundamento na teoria do risco integral, isto é, independentemente da existência ou não de fatos excludentes do nexo causal, pelos danos que o exercício da sua atividade de mineração deu causa.

Além disso, não se pode deixar de registrar a reponsabilidade civil solidária do Poder Público pela sua omissão no dever de zelar e obstar que os danos acontecessem. A este respeito, vale lembrar as lições de Édis Milaré (2011, p.1262) inclusas na dissertação da ACP/MPF n° 60017-58.2015.4.01.380:

O poder público poderá sempre figurar no polo passivo de qualquer demanda dirigida à reparação do meio ambiente: se ele não for responsável por ter ocasionado diretamente o dano, por intermédio de um de seus agentes, o será ao menos solidariamente, por omissão no dever de fiscalizar e impedir que tais danos aconteçam. A propósito, vale lembrar que a Constituição Federal impôs ao poder público o dever de preservar e defender o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

Sendo assim, in casu, evidencia-se a responsabilidade civil objetiva solidária entre os autores diretos e indiretos do dano ambiental produzido pelo rompimento da barragem de Fundão. Isto sugere que a obrigação de reparar/indenizar pode ser exigida em sua totalidade de quaisquer dos corresponsáveis, de parte deles ou de todos eles conjuntamente, nos termos dos artigos 264 e 275 do Código Civil.

Saliente-se que este lamentável episódio acarretou graves prejuízos à natureza de maneira geral, como os danos socioambientais, econômicos e humanos, em todo o trecho da Bacia do Rio Doce por onde a lama contaminada percorreu, além dos danos futuros que ainda não puderam ser contabilizados.

Destarte, considerando todo o exposto ao longo deste estudo, as empresas Samarco Mineração S/A, a Vale S/A e BHP Billinton Brasil Ltda., devem ser responsabilizadas objetivamente e sob o alcance da teoria do risco integral, pelos danos ambientais oriundos da má operação da barragem de Fundão, o que causou o seu rompimento, fazendo espargir milhões de metros cúbicos de lama contaminada pelo Rio Doce e seus afluentes até chegar ao Oceano Atlântico, no Estado do Espírito Santo.

Ainda, de modo a assegurar a completa e adequada reparação, o Poder Público e os entes da Administração competentes para assuntos de ordem ambiental e minerária dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, devem assumir posição solidária e subsidiária na execução de medidas eficientes para a recuperação dos espaços atingidos, das funções ecológicas, bem como da qualidade de vida da população afetada, em conformidade com as orientações do princípio da reparação integral.

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Sobre a autora
Bruna Aparecida Souza Franco

Advogada, graduada pela Universidade do Estado de Minas Gerais-Unidade Ituiutaba, pós graduanda em Direito Ambiental e Urbanístico pela PUC Minas e em Direito do Trabalho pela FAEL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANCO, Bruna Aparecida Souza. Estudo sobre a responsabilização das empresas e do Estado na ocorrência do dano ambiental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5988, 23 nov. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64514. Acesso em: 26 dez. 2024.

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