A influência da estrutura familiar e a atenuação da desigualdade social como redutores da criminalidade

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05/03/2018 às 11:34
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Sem a intenção de esgotar o assunto, o presente artigo irá trazer à baila a grande controvérsia estatal existente no nosso cenário atual: investir em segurança pública é investir mais na repressão ou na prevenção?

1 Introdução 

O crime é um fenômeno social que vem tendo um grande desenvolvimento nos dias atuais. O terrorismo urbano traz à tona uma enorme sensação de insegurança, perturbando a paz de toda sociedade. Diante disso, a segurança pública é elencada pelas pessoas como impotente, e via de regra, atribuem a total responsabilidade desse cenário à atividade policial. Entretanto, não é razoável afirmar que a criminalidade será solucionada somente com atividades repressivas, vez que, a segurança não se reduz a um conjunto de ações estritamente policiais. Investir somente no Estado penal é tentar “enxugar gelo”, isto é, a problemática sempre irá existir.

É necessário um viés mais profundo para as questões sociais, haja vista que, a criminalidade fica cada vez mais fortalecida quando o Estado não consegue garantir uma estrutura básica de políticas sociais para as pessoas que necessitam desse amparo. A criança e o adolescente oriundos de uma família desestruturada, que não vivem em um ambiente sadio, que não tem acesso a uma educação de qualidade, indubitavelmente, estão fadados a ingressar no mundo do crime, muitas vezes, como meio de sobrevivência.

Os ilustres escritores Newton Fernandes e Valter Fernandes, asseveram:

“Que esperar de crianças que vivem em favelas infectas, em promiscuidade com elementos de toda a ordem, vendo as cenas mais deprimentes, os gestos mais acanalhados, os procedimentos mais ignominiosos? Que esperar de crianças que em pleno período de formação dormem ao relento, sentindo frio, debaixo de ponte, à porta de casas comerciais lado a lado de toda a espécie de marginais adultos? Que esperar de crianças que prematuramente conhecem os horrores da fome e se alimentam de migalhas jogadas fora ou da caridade pública? ” (FERNANDES e FERNANDES, 2002, p. 486-487) 

Destarte, é preciso que os investimentos, por parte do Estado, assegurem uma infraestrutura forte para conter os indivíduos já contaminados pelo crime, ao revés, essa infraestrutura deve ser ainda mais resistente para salvar aqueles que estão vulneráveis, mas, que ainda não ingressaram nesse desastroso mundo.

Portanto, sem a intenção de esgotar o assunto, o presente artigo irá trazer à baila a grande controvérsia estatal existente no nosso cenário atual: investir em segurança pública é investir mais na repressão ou na prevenção? 


2   A Criminalidade no Brasil. Quando tudo começou

É importante destacar o imprescindível papel das pressões externas capitalistas que influenciaram sobremaneira a implantação do capitalismo no país, na época vivendo a todo vapor a escravidão, que era um dos principais obstáculos à sua política.

A abolição da escravatura, por sua vez, esteve diretamente ligada ao surgimento de um novo mercado consumidor, e a um mercado de trabalho, não obstante, a uma nova classe de pessoas que possuía um único bem a ser vendido: sua força de trabalho. Surgiu, a partir de então, o modo de produção capitalista. Formou-se uma classe de trabalhadores negros e livres de maneira que a exigência econômica os colocava em uma posição inferior, sem que existisse qualquer política estatal para o grande problema que surgira.

Com o passar dos anos e com a ampliação dos centros urbanos, consolidou-se uma nova classe social, formada por ex-escravos e imigrantes que passaram a viver às margens da sociedade, quando nos grandes centros, por exemplo, no Rio de Janeiro, à época capital do Brasil, houve a proliferação de diversas doenças infectocontagiosas em função do exagerado contingente de pessoas que se aglomeraram em cortiços, atraídos pela oportunidade de emprego advinda do modo capitalista. Nesse patamar, e tomando como justificativa a “higienização” da cidade, o governo utilizou essa bandeira para destruir os cortiços onde os trabalhadores moravam, visando, contudo, não o controle da proliferação das doenças, mas sim ao afastamento dessa nova classe social que no momento “manchavam” a imagem da cidade, sendo vistos como retrato da estreita ligação entre a pobreza e a criminalidade.

Essas pessoas passaram a ser vistas como nocivas, porque eram vetores de doenças, e por desafiarem as políticas de controle social a eles impostas. Tornaram-se alvo de indiferença, eram exemplos de carência, incapacidade e, segundo a elite, potencialmente perigosos.

Por fim, ocorreu um inchaço populacional nas grandes cidades, já na segunda metade do século XX, com o êxodo rural aliado a explosão demográfica. Configurou, portanto, um novo problema social: a evolução dos cortiços e favelas. 


3 Estado Social x Estado Penal

Atualmente, a violência e a criminalidade vêm sendo um dos maiores problemas da sociedade brasileira. É sabido que estes fatos sociais são provenientes da insuficiência estatal em diversas searas. No entanto, é relevante destacar a imensa relação entre esses inconvenientes e a questão social.

Newton Fernandes e Valter Fernandes esclarecem: 

“Esse sentimento de revolta por viver na pobreza não deixa de ser um dos fatores que induz o indivíduo ao crime (contra o patrimônio, especialmente), adquirindo, não raro, um sentido de violência delinquencial muito grande. De fato, assaltantes adultos ou jovens, agindo isoladamente ou em quadrilhas, não se apiedam das vítimas, matando-as, às vezes pelo simples esboço de um gesto qualquer de pavor ou de instintiva e desarmada defesa. ” (FERNANDES; FERNANDES, 2002, p. 389).

A criminalidade, em regra, é praticada por sujeitos excluídos do trabalho, negros, habitantes de comunidades, onde impera a desigualdade e a falta de oportunidade. Esse cenário perverso, intensifica meios alternativos de sobrevivência. Jovens, “fruto do meio em que vive”, são submetidos a viver numa verdadeira guerra, que “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Indivíduos que não ostentam o mínimo para sobreviver, que sofrem com a inexistência de amparo familiar, que até querem estudar, mas, padecem com a omissão do Estado.

Marco Antônio Bandeira Scapini preconiza:           

 “Em países onde a distância entre ricos e pobres é quilométrica e, cada vez mais se acentua, os índices de violência e criminalidade são elevadíssimos, chegando ao descontrole. O Brasil é “campeão do mundo” em injustiças sociais, tem a pior distribuição de renda do planeta. Pequena parcela da população vive na opulência, enquanto à imensa maioria sobrevive sem acesso sequer à saúde, à educação, à alimentação e ao emprego. É óbvio que a situação tende a se agravar, enquanto inutilmente, atacam as consequências do problema, não suas causas”. (SCAPINI, 2002, p. 389)

Diante disso, é deveras necessária uma interessante reflexão perante nossa atual Constituição da República, precisamente no seu preâmbulo, in verbis:

"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil". 

Conforme o texto mencionado alhures, o Estado Democrático de Direto foi instituído com o escopo de garantir a igualdade, a justiça, o bem-estar, os direitos sociais e individuais, a segurança, etc. Todavia, o que vislumbramos é totalmente o contrário, a desigualdade, a violação de direitos e garantias individuais, a corrupção, o mal-estar e a insegurança. Enfim, as letras não pularam do papel.

É percebível que a atuação estatal é substancialmente maior na repressão (Estado Penal) do que na prevenção (Estado Social), punindo mais e educando menos. O notório professor Vicente de Paula Faleiros elenca:

“O Estado está se desobrigando, cada vez mais, de suas obrigações, de garantia do bem-estar coletivo e investindo também cada vez mais em repressão para conter a violência social que se desencadeia com o desemprego e a perda das referências da cidadania social. O Estado de bem-estar está sendo substituído por um estado de contenção social que se expressa nos mecanismos de vigilância física e eletrônica, na construção de prisões e ampliação dos aparatos de punição. A competitividade e não a solidariedade é que é valorizada pelas políticas de responsabilização individual pela sua sorte, acentuando-se a desigualdade e a polarização entre mais ricos e mais pobres”. (FALEIROS, 2006, p. 79)

Desse modo, o Estado contraria sua própria Carta Magna, no seu art. 227, in verbis:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

É ponderoso ressaltar que o presente artigo não tem o objetivo de afirmar que todos os jovens de favelas e periferias são ou serão delinquentes. Lado outro, a ausência de políticas sociais nesses locais, provocam uma maior vulnerabilidade. Além disso, a falta de investimentos na estruturação familiar, contribuem para o desenvolvimento desse caos social.  “A violência e o crime são, amiúde, o único meio dos jovens da classe trabalhadora sem perspectiva de emprego para adquirir dinheiro e os bens de consumo indispensáveis para ascender a uma existência socialmente reconhecida. ” (WACQUANT, 2001, p. 33).

Jeferson Botelho com sua inteligência ímpar, argumenta sobre o crime no Brasil:

“É fácil encontrar argumentos para justificar o crime no Brasil. Primeiro, o descaso do governo com a educação no Brasil, que deveria receber prioridade absoluta, no preparo do homem para o desenvolvimento de habilidades tendentes ao exercício da cidadania, qualificação para o trabalho e desenvolvimento humano, conforme anunciado no art. 205 da Constituição da República (...)”.

Por fim, o eterno Cesare Beccaria aduz:

“Finalmente, o método mais seguro de prevenir crimes é aperfeiçoar o sistema educacional. Mas este é outro tema muito vasto e excede os meus planos. Um tema, se devesse me aventurar a comentá-lo, que é tão intimamente ligado com a natureza do governo, que sempre permanece um objeto estéril, cultivado apenas por poucos e sábios homens. Um grande homem, perseguido por aquele mundo que iluminou e a quem devemos muitas importantes verdades, detalhou cuidadosamente os princípios da educação útil, que consiste principalmente em apresentar às mentes um pequeno número de temas selecionados que substituam as cópias pelos originais dos fenômenos físicos e morais, guiando o pupilo na virtude, através da fácil estrada do sentimento e protegendo-o do mal pelo infalível poder das inconveniências necessárias, em vez do comando, que somente consegue uma falsa e momentânea obediência”. (BECCARIA, 1738-1794, p. 122)  

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4 Direito comparado: países que cumprem o Estado social

Como foi visto, o Brasil não cumpre o Estado social, isto é, não garante políticas sociais consistentes para o crescimento digno de sua população, especialmente para os jovens. Sabe-se que a repressão ao crime deve existir, entretanto, o mais inteligente seria atacar as causas e não as consequências.

Quando comparamos o Brasil (que elegeu o meio punitivo para combater o crime) com outros países que, ao contrário, escolheram o Estado de bem-estar social, avistamos uma imensa discrepância no contexto criminal.  Islândia, Dinamarca, Suíça, Áustria, Nova Zelândia, são exemplos de nações que possuem baixo índice de violência e criminalidade. Qual será o segredo?

Na Islândia, por exemplo, quase não há diferença entre as classes alta, média e baixa, 97% da população é considerada classe média ou trabalhadora. Segundo Bjorgvin Sigurdsson, ex-presidente do grupo parlamentar da Aliança Social Democrata, a igualdade é a principal causa da quase ausência de crimes no país: “Aqui os filhos dos magnatas vão aos mesmos colégios que o restante das crianças”. Para ele, os sistemas de serviços públicos e de educação do país promovem a igualdade.                     


5 Escola da socialização defeituosa

A evolução da criminologia se deu por meio dos pensamentos das suas várias escolas. Entre elas, destacamos a Escola da Socialização Defeituosa.  Antes dela, o crime era considerado um fenômeno que estava dentro do criminoso.

Porém, com o seu surgimento, ocorreu o deslocamento dos fatores da criminalidade. Diante desse contexto, o crime não é mais visto apenas com o viés intrínseco ao deliquente, mas, igualmente, a partir de circunstâncias extrínsecas. Portanto, segundo essa teoria, o crime é uma prática introduzida na pessoa por meio das influências sociais.              

5.1 Teoria do broken home

A teoria dos lares destruídos (broken home) é o primero desenvolvimento da Escola da Socialização Defeituosa. Estudos realizados com agrupamentos de jovens apresentaram uma relevante conexão entre a ausência de estabilidade familiar e o ingresso do indivíduo no universo do crime.

“Os deliquentes juvenis são, na sua maioria, oriundos de lares desfeitos ou disfuncionais, sendo frequentemente educados por mães solteiras que enfrentam muito mais do que apenas problemas materiais. As pessoas sentiam falta do espírito de propriedade e encontraram nas quadrilhas, a família que não tinham lá fora, provenientes em sua maioria, de lares desintegrados ou inexistentes.”. 

O eminente professor Jeferson Botelho corrobora:

“O primeiro desdobramento da escola da socialização defeituosa é a teoria do broken homo, que parte do pressuposto de que o criminoso geralmente vem de uma família desestruturada. A ideia do crime pode nascer do lar destruído. O criminoso reage em face da frustração de uma família desestruturada”.     

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Sobre o autor
Henrique Costa

Advogado. Orador. Autor de artigos e textos jurídicos. Especialista em Licitações Públicas e Contratos Administrativos. Atua como Treinador, Consultor e Assessor Jurídico. Participante do Projeto Implantação da Nova Lei de Licitações com ênfase nos Órgãos e Entidades Públicas. Participante do Curso Desmistificando as Obras e Serviços de Engenharia - Os Novos Desafios da Lei 14.133/21 e as Velhas Questões; Congressista no VI Congresso Brasileiro de Licitações e Contratos. Congressista no I Congresso do Instituto Nacional de Contratações Públicas (INCP). Congressista no III Congresso Jurídico Internacional da Fundação Pres. Antônio Carlos. Participante da XXIV Conferência Nacional da Advocacia Brasileira. Pós-graduado em Direito Constitucional e Administrativo. Pós-Graduado em Direito Trabalhista e Previdenciário. Pós-Graduado em Direito e Processo Civil. Pós-graduado em Ciências Penais e Segurança Pública.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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