Introdução
Sob qualquer ponto de vista que se analise o problema da segurança pública, os últimos meses representaram um verdadeiro estado de calamidade para a cidade do Rio de Janeiro e cidades circunvizinhas. O descontrole e a escalada do crime, a ineficiência dos órgãos de segurança e a incapacidade de respostas adequadas à criminalidade crescente ensejaram o decreto de intervenção federal na área conturbada.
Muito se tem falado na Inteligência como arma de combate ao crime e como instrumento de apoio às forças de segurança. Mas, o que não se discute é que a atividade de Inteligência tem falhas específicas, muitas vezes relacionadas à gestão e que não basta atribuir verbas e pessoal a essa atividade se não houver uma metodologia rigorosa e uma fiscalização eficaz. O objetivo deste trabalho é abordar alguns pontos de interesse neste contexto, com pontos de tangência com o caos fluminense.
1.O que é Inteligência.
A atividade de Inteligência está ligada à decisão. O administrador, o gestor, aquele que tem a obrigação de conduzir os destinos de uma organização está constantemente compelido a decidir. As escolhas são necessárias e frequentes e devem ser baseadas em informações fidedignas.
A Atividade de Inteligência é um processo específico de produção de informações estratégicas para a organização. Pode ser desenvolvida em organizações públicas ou privadas. Desde os tempos mais remotos a quantidade de dados à disposição daqueles que precisam decidir sempre foi grande. Particularmente nas últimas décadas, a quantidade de fontes de dados decuplicou e muitas organizações vivem num mar de fontes e referências e muitas vezes não sabem bem o que fazer com tudo isso (ESPUNY, 2012).
É neste parâmetro que se desenvolvem as operações e análises pertinentes, que buscam criar o conhecimento aplicável em relevantes decisões. Mas, tal produção de conhecimentos tem princípios que devem sempre ser seguidos, tais como: objetividade, segurança, oportunidade, controle, imparcialidade, simplicidade, amplitude e interação (ABIN, 2018, p. 217).
A objetividade pressupõe a abordagem direta do que a agência ou grupo de Inteligência pretende desenvolver. Questões subsidiárias voltadas aos aspectos que fujam da operacionalidade ou análise do cerne do problema devem ser evitadas.
A segurança está relacionada aos integrantes envolvidos na atividade de Inteligência, bem como aos aspectos concernentes a toda a organização.
A oportunidade está relacionada à tempestividade da aplicação do conhecimento obtido. De nada adianta uma excelente produção de conhecimento que não possa ser utilizada porque a motivação da mesma está num tempo passado, no qual é impossível de ser mudado sob qualquer circunstância.
O controle é um dos aspectos mais importantes: a atividade de Inteligência está fundamentada em princípios que devem ser absolutamente seguidos, com fulcro nos interesses maiores da organização. Interesses pouco republicanos muitas vezes tomam corpo como se fossem legítimos e defensáveis.
A imparcialidade foi herdada de parâmetros científicos. A análise de Inteligência é imparcial. Devem-se analisar quaisquer fatores e não escolher apenas os pontos que justifiquem determinadas ações, desconsiderando os contrários.
A simplicidade está fundamentada na busca direta, sem rodeios do elemento necessário para completar um cenário. Operações rebuscadas e desnecessárias não combinam com a Inteligência.
A amplitude tem a ver com a máxima obtenção possível de conhecimento com a operação ou análise realizada.
E a interação, em tese, seria estabelecer relações que pudessem otimizar a busca por um determinado conhecimento, em órgãos congêneres.
2.Inteligência de Segurança.
Formalmente, a atividade de Inteligência no Brasil, especificamente na área pública, está alicerçada em três grandes bases ou subsistemas:
A Lei 9.883, de 1999, instituiu o Sistema Brasileiro de Inteligência – SISBIN e o Decreto Federal 4.376/2002 dispôs sobre sua organização e funcionamento. O órgão central é a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN. Tal sistema é composto por três subsistemas: a Inteligência de Estado, coordenado pela própria ABIN; o subsistema de Defesa - SINDE, responsável pelas atividades no âmbito do Ministério da Defesa; e o Sistema de Inteligência de Segurança Pública – SISP, coordenado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP (ESPUNY, TOMASINI, FERNANDES, 2017, p.813).
Portanto, a atividade de Inteligência de Segurança Pública, coordenada pela SENASP, trata de todos os aspectos pertinentes à produção de conhecimento para subsidiar decisões ligadas a esse contexto. Note-se que, além da polícia federal, as polícias civil e militar dos estados e do Distrito Federal são órgãos interessados e, ainda mais, produtores e receptores do conhecimento em epígrafe.
A atividade de Inteligência difere de qualquer outra praticada institucionalmente pelas forças de segurança pública: não se confunde com investigação. A investigação é centrada em ocorrências já perpetradas e que precisam ser desvendados quanto à autoria, meios e outras circunstâncias. A Inteligência busca entender o fenômeno, em toda a sua complexidade, com o objetivo de prever tendências. Há autores que defendem a utilização da Inteligência para o combate da criminalidade complexa (MINGUARDI, 2007, p.55).
Apesar de complementares e da Inteligência efetivamente poder subsidiar ações de investigação, confundir uma com a outra acaba comprometendo, metodologicamente, a correta aplicação da Inteligência:
O que bem exemplifica e esclarece é quando da apuração de delitos: quando os métodos investigativos não alcançam os objetivos desejados ou os meios de provas permitidos em direito não conseguem comprovar a materialidade e a autoria do crime, apela-se para o uso das técnicas operacionais de inteligência adotadas pelo Estado brasileiro, ou ainda a leis extravagantes que permitem a adoção de outras técnicas, destacando-se dessa forma a diferença entre a atividade policial que é prevista na lei adjetiva penal e a atividade de inteligência prevista na Lei nº 9.883 de 1999, o que não permite, portanto, rotular investigação policial de Inteligência policial (ABIN, 2006, p.56).
A Inteligência de Segurança Pública – ISP tem características comuns de outras áreas da prática de Inteligência. Alguns conceitos são comuns, como observam Paula, Silva, Silva (2011, p.43):
• Dado é toda e qualquer representação de fato, situação, comunicação, notícia, documento, extrato de documento, fotografia, gravação, relato, denúncia, etc. ainda não submetida, pelo profissional de ISP, à metodologia de Produção de Conhecimento.
• Informação é o dado com significado, ou seja, organizado dentro de um contexto e submetido a algum trabalho de interpretação, pelo profissional de ISP. As espécies de informação podem ser determinadas conforme o grau crescente de sua utilidade para a tomada de decisão. Quanto mais trabalhada a informação, melhor será o conhecimento proveniente do trabalho de análise na metodologia de Produção de Conhecimento.
• Conhecimento é o resultado final — expresso por escrito ou oralmente pelo profissional de ISP — da utilização da metodologia de Produção de Conhecimento sobre dados e/ou conhecimentos anteriores.
Observe-se, ainda, que a atividade de Inteligência pressupõe a busca de elementos que possam compreender as dinâmicas envolvidas nos contextos estudados e a possibilidade dos analistas de produzirem conhecimento que permita previsibilidade, para que as decisões possam ser tomadas a fim de evitar as piores consequências.
3. Inteligência de Segurança Pública e o Estado do Rio de Janeiro.
A atividade de Inteligência no Rio de Janeiro foi de certa forma, privilegiada. Eventos como a Copa do Mundo no Brasil, em 2014, e as Olímpiadas, em 2016, naturalmente incentivaram estudos de Inteligência de Defesa e, obviamente, de Inteligência de Segurança Pública, também.
Contudo, os Anuários Brasileiros de Segurança Pública, referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016, apontam valores muito baixos investidos especificamente na área de Inteligência no estado do Rio de Janeiro:
- 2014: R$ 39.850,70;
- 2015: R$ 23.532,40;
- 2016: Sem indicação no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017.
Comparativamente, com os dados disponíveis, os estados de São Paulo ou Minas Gerais, investiram significativamente muito mais na área de Inteligência. Por exemplo, tomando por base os anos de 2015, enquanto o Rio de Janeiro investiu R$23.532,40, São Paulo investiu R$ 366.580.511,41(quinze mil vezes mais) e Minas Gerais, R$ 128.518.337,18 (cinco mil e quatrocentas vezes mais), segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017. A diferença brutal de tais índices certamente merece maiores explicações.
Contudo, há outras fontes de dados. A Lei do Orçamento Anual – LOA, de 2016 atribui ao item Inteligência e Segurança da Informação, o valor aproximado de R$ 5.300.000,00; já em 2017 atribui ao item Inteligência e Segurança da Informação, o valor de R$ 3.500.000,00. Já o projeto da LOA relativo ao ano de 2018, sintomaticamente, atribui o valor aproximado de R$ 2.400.000,00. Valores que decrescem continuamente.
Questões focadas aos investimentos na área da Inteligência são bastante relativas. Tais investimentos são bem aplicados? No âmbito das organizações que praticam Inteligência de Segurança Pública, o treinamento na obtenção de dados e as análises pertinentes podem fazer a diferença (polícias civil e militar).
4. Falhas de Inteligência.
Não são incomuns falhas na Inteligência. Tais falhas podem estar na coleta do material para a análise, podem estar na própria análise, podem estar na metodologia conduzida para a obtenção do conhecimento, enfim em múltiplas vertentes.
Um dos maiores fiascos contemporâneos da Atividade de Inteligência reside no fato de não ter sido encontradas quaisquer armas de destruição em massa no território do Iraque, invadido pelos EUA. Uma discussão bastante divulgada, tanto pelo público especializado quanto pelo público leigo, é a de que tal fiasco não foi senão a consequência de uma “armação” para que o Iraque fosse invadido de qualquer maneira. Portanto, a existência ou não das armas acima citadas não passaria de uma desculpa para justificar a operação. Apesar de possível, tal raciocínio não parece muito lógico: várias outras desculpas poderiam ser utilizadas sem que envolvessem a maior agência de Inteligência americana, a CIA. De qualquer forma, sendo a justificativa uma mera desculpa para a guerra que se seguiu ou não, o que se constata pelas fontes disponíveis é que ao não encontrar quaisquer armas de destruição em massa, os EUA protagonizaram mais um episódio que expôs, negativamente, a Inteligência do país (ESPUNY, 2014).
Outras falhas internacionalmente repercutidas, como o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, demonstram que por mais investimento que se tenha na área e por mais que se busque a previsibilidade como vertente de segurança, muitas vezes o resultado concorre com o imprevisível.
Contudo, há falhas e falhas. Existem falhas que são provocadas de forma absolutamente irresponsável, pois os protagonistas sabem de antemão que estão praticando algo de irregular. Um exemplo deste comportamento é a ingerência política. Dentre as razões de falhas na atividade de Inteligência, essa é uma das maiores incidências. Alguns autores afirmam que é esta a principal razão (CEPIK, AMBROS, 2012, p.92).
Um dos maiores problemas práticos é tentar induzir as conclusões para um determinado viés. Isto pode ocorrer quando os analistas de Inteligência são pressionados, seja pela via hierárquica, seja pela conveniência política a confeccionar um relatório que atenda a outros interesses, que não seja o da metodologia da atividade de Inteligência. E o que é pior: utilizarem-se do conhecimento especializado em Inteligência, deturparem as conclusões e apresentarem como se fosse fruto legítimo do trabalho.
Outro problema que se observa na prática da atividade de Inteligência é a confusão entre a atividade estratégica, que visa identificar padrões e/ou tendências e a atividade voltada para os aspectos tático e operacional. A produção de conhecimento estratégico não é fácil. Envolve investimentos, equipe preparada e treinada e, acima de tudo, liderança adequada para tal mister. Já a atividade voltada à área tática ou operacional é focada em ocorrência pesquisada, em fatos que ocorreram ou estão ocorrendo e o foco está no levantamento de dados que facilitem a investigação ou a repressão a delitos. Observe-se, portanto, que se a Inteligência não permitiu conhecer o desenrolar dos fatos (tendências) e o reconhecimento de padrões não pode ser considerada Atividade de Inteligência, no sentido amplo, que é o estratégico. No contexto da Segurança Pública, o viés estratégico deveria ter sido, sempre, adotado. Nestes termos, as decisões poderiam evitar cenários deteriorados.
Por outro lado, as atividades táteis ou operacionais são focadas em áreas específicas que não permitem uma visão sistêmica. Teria sido essa a grande falha da Inteligência de Segurança Pública no Rio de Janeiro? Ou a falha principal teria sido dos responsáveis pelas decisões, que apesar de possuírem os subsídios de Inteligência adequados não tomaram as decisões mais apropriadas que o cenário exigia? Essas respostas interessam muito aos gestores de Inteligência.
Fora deste contexto, a pior de todas as vertentes seria a de que a Inteligência não fora estimulada, a julgar pelos investimentos explicitados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, anos 2015, 2016 e 2017. Caso seja essa a resposta, observe-se o altíssimo preço que o Rio de Janeiro está efetivamente pagando.
O mais provável é que o fracasso da segurança pública no estado do Rio de Janeiro tenha como um dos elementos a falta de eficiência e eficácia da Inteligência por um misto das razões explicitadas nos parágrafos anteriores.
Referências
ABIN. Agência Brasileira de Inteligência. Cadernos de Legislação da Abin, n° 3. Fevereiro de 2018. – Brasília : Agência Brasileira de Inteligência, 2018.
ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/atividades/anuario/. Acesso em: 25 fev. 2018.
CEPIK, Marco A.C. AMBROS, Christiano C. Explicando falhas de inteligência governamental fatores histórico-institucionais, cognitivos e políticos. VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 28, nº 47, p.79-99, jan/jun 2012.
ESPUNY, Herbert Gonçalves. Combate à Fraude com Atividades de Inteligência. Case Operação Esqueleto. ABSEG – Associação Brasileira de Profissionais de Segurança – ABSEG. Publicado em 2012.
ESPUNY, Herbert Gonçalves, TOMASINI, Gisele, FERNANDES, Robinson. A Repressão aos Crimes de Licitação e o Combate à Lavagem de Dinheiro por meio da Atividade de Inteligência no Exercício da Polícia Judiciária. In: CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro; OLIVEIRA, André Tito da Motta; ISSA, Radael Hamze; SCHWIND, Rafael Wallbach. (Org.). Direito, Instituições e Políticas Públicas. O papel do jusidealista na formação do Estado. 1ed.São Paulo: Quartier Latin, 2017, v. , p. 799-828.
ESPUNY, Prof. Dr. Herbert Gonçalves. Influências das redes de poder nas atividades de inteligência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3988, 2 jun. 2014. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/29141>. Acesso em: 25 fev. 2018.
LEI DO ORÇAMENTO ANUAL – LOA. Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: < http://www.rj.gov.br/web/seplag/exibeconteudo?article-id=2922337>. Acesso em: 25 fev. 2018.
MINGUARDI, Guaracy. O trabalho da Inteligência no controle do Crime Organizado. USP. REVISTA ESTUDOS AVANÇADOS 21 (61), 2007, p.55.
PAULA, Giovani de. SILVA, Edson Rosa Gomes da. SILVA, Otávio Sustenei. Inteligência - estratégia de segurança pública. – 2. ed. – Palhoça: UnisulVirtual, 2011.
PATRÍCIO, Josemária da Silva. Inteligência de Segurança Pública. Revista Brasileira de Inteligência. Agência Brasileira de Inteligência. – Vol. 2, n. 3 (set. 2006) – Brasília : Abin, 2006.