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Multiparentalidade e seu reflexo no direito sucessório

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10/07/2018 às 14:30
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2 O DIREITO SUCESSÓRIO

O direito sucessório é um direito fundamental previsto na Constituição Federal de 1988, no artigo 5°, incisos XXVII e XXX, os quais expressamente garantem o direito à herança.

Segundo Sílvio de Salvo Venosa (2003, p. 20-21), entende-se herança “como o conjunto de direitos e obrigações que se transmitem, em razão da morte, a uma pessoa, ou a um conjunto de pessoas, que sobreviveram ao falecido. [...] A herança entra no conceito patrimonial [...]”.

Assim, diante da morte de um indivíduo, nasce o direito ao herdeiro de suceder o falecido em relação aos seus direitos e obrigações.

2.1 O REFLEXO DA MULTIPARENTALIDADE NA SUCESSÃO

Atualmente, com o reconhecimento da multiparentalidade pelo STF, muito se discute acerca de sua extensão e reflexos na realidade fática. Um dos temas de grande debate volta-se ao direito patrimonial que este reconhecimento possa ensejar.

Com base na tese fixada pelo STF, não restam dúvidas de que o entendimento desta Suprema Corte segue no sentido de que a multiparentalidade acarreta efeitos e garante o direito à sucessão, pois declara, expressamente, que a filiação socioafetiva concomitante com a filiação biológica produz consequências patrimoniais e extrapatrimoniais.

Porém, nosso ordenamento jurídico de 2002, o Código Civil, quando previu como se daria a sucessão entre os herdeiros, não imaginou que chegaríamos a possibilidade da multiparentalidade e, assim, não preconizou como seria a divisão dos bens nesta situação específica.

O Código Civil de 2002 prevê a ordem de preferência e vocação hereditária no artigo 1.829 e, desta forma, estabelece as linhas sucessórias entre os genitores, filhos e demais parentes.

Ocorre que se na família multiparental sobrevier a morte de um dos pai ou mãe, o filho (seja socioafetivo ou biológico) herdará o seu quinhão em concorrência com os demais irmãos, visto que não existe mais diferenciação entre os “tipos” de filhos. Porém, se ocorrer a morte do filho e este filho não possuir descendentes e nem cônjuge, os pais/genitores serão os herdeiros e, neste caso, teremos um impasse, pois não há previsão legal de como será dividido os bens deste filho entre os ascendentes multiparentais.

Neste último caso, teríamos como herdeiros, três pessoas e nossa legislação previu apenas a sucessão dos ascendentes entre um vínculo paterno e um vínculo materno, como se observa do artigo 1.836, § 2°, CC: “Art. 1.836. Na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente. § 2° Havendo igualdade em grau e diversidade em linha, os ascendentes da linha paterna herdam a metade, cabendo a outra aos da linha materna”.

Assim sendo, observamos que o tema ainda demanda muito empenho tanto do Poder Legislativo quanto do Poder Judiciário para que, na questão da sucessão de famílias multiparentais, sejam sanadas as lacunas legais proporcionando maior segurança jurídica além de efetivar os mesmos direitos fundamentais a todos os envolvidos.

Outro ponto temerário quanto a este assunto volta-se à possibilidade de um aumento de demandas judiciais com o intuito único de buscar o direito ao patrimônio do pai biológico/pai socioafetivo, com quem o indivíduo nunca desenvolveu qualquer tipo de relação filial (afeto, cuidado e amor). Segundo o professor Flávio Tartuce (2016), esta questão foi levantada pelo professor José Fernando Simão, estudioso do tema, inclusive por ser juridicamente cabível esta possibilidade em decorrência do princípio da paternidade responsável.

Esta situação de monetarização nas relações familiares já é realidade nos Tribunais brasileiros, mesmo antes do surgimento da multiparentalidade, visto que alguns filhos socioafetivos buscam a investigação da paternidade biológica de pai já falecido, em ações sucessórias, abrindo mão, inclusive, da sua realidade socioafetiva, apenas com intuito de ganho patrimonial.

Neste mesmo sentido, Cristiano Chaves de Farias, citado por Rolf Madaleno (2017, p. 491-492), também entende que o cuidado e a ponderação prática devem sempre estar presentes na análise da multiparentalidade, visto que possibilita a plurihereditariedade, ou seja, concede autorização para que o filho plúrimo busque a herança de cada um de seus genitores que vier a falecer, tornando-se herdeiro necessário.

Como se não bastasse, Flávio Tartuce (2016) aponta, ainda, a preocupação acerca da aplicação da tese da multiparentalidade para os casos de reprodução assistida heteróloga, hipótese que poderá gerar efeitos e consequências jurídicas aos doadores de material genético, tornando, tal método impraticável.

Logo, é notória que a sucessão nas famílias multiparentais ainda é uma temática que apresenta muita polêmica, de resolução complexa, pois muitas são as situações fáticas passíveis de se caracterizar e autorizar o reconhecimento da pluriparentalidade, o que pode vir a acarretar, inclusive, afronta a direitos fundamentais de alguns indivíduos que se envolveram numa relação familiar, mas que não desejam desenvolver a convivência familiar com todas as suas consequências.

Ainda, para agravar tal situação, as lacunas existentes na legislação sucessória são barreiras a serem superadas, para que a segurança de todo o ordenamento jurídica seja preservada.


CONCLUSÃO

A importância maior deste artigo volta-se à necessidade de conscientização da sociedade e da comunidade jurídica acerca da nova temática que envolve a multiparentalidade e dos temas controversos do seu reflexo no direito sucessório.

A multiparentalidade surgiu com o intuito de humanizar as relações familiares, baseadas na realidade fática atual de formação da família, e proporcionar a dignidade da pessoa humana e a sua busca à felicidade.

O afeto, carinho e dedicação oriundos da convivência familiar devem ser reconhecidos e protegidos pelo ordenamento jurídico, para que todas as famílias, independente da sua constituição, sejam acolhidas e possam usufruir de todos os direitos que a legislação prevê.

Porém, quando há um reflexo patrimonial, como no caso da multiparentalidade, é imperioso que haja ponderação na análise do caso fático, pois não é viável que o instituto da família sirva de base apenas para que se obtenha ganho patrimonial.

Importante, portanto, que o tema da pluriparentalidade seja amplamente discutido, em todos os seus aspectos e reflexos, mas principalmente com relação à sucessão, para que seja possível adequar a atual situação jurídica de modo a evitar abusos e anseios unicamente patrimoniais.

Para o Direito de Família, o reconhecimento da multiparentalidade pelo STF e a aplicação da tese firmada pela Suprema Corte, a qual já vem sendo citada em diversas decisões dos Tribunais brasileiros, retrata a ascensão da importância do afeto nas relações familiares, e é considerada uma grande conquista social, além de ser efetivamente, o reconhecimento de que o Direito de Família deve se adequar à evolução das necessidades da sociedade e não mais ser determinado por padrões fixos que impossibilitam as famílias contemporâneas de atingirem sua felicidade suprema.

Diante do exposto, entendemos ser produtiva e digna a multiparentalidade e todos os direitos e deveres que dela decorram quando o desejo de se reconhecer mais de um pai/mãe como genitor se baseia em laços afetivos e que demonstre a coexistência do pai biológico e do pai afetivo, assim como a coparticipação de ambos na vida do filho, assumindo todos os encargos do poder família e, consequentemente, desenvolvendo uma convivência familiar, cuidados e afetos dignos do instituto da Família.


REFERÊNCIAS:

ABREU, Karina Azevedo Simões de, “Multiparentalidade: conceito e consequências jurídicas de seu reconhecimento”. Disponível em: <https://karinasabreu.jusbrasil.com.br/artigos/151288139/multiparentalidade-conceito-e-consequencias-juridicas-de-seu-reconhecimento >. Acesso em: 29 ago. 2017.

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BRASIL. Código Civil (2002). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis /2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 5 nov. 2017.

BRASIL. Constituição (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 5 nov. 2017.

BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 5 nov. 2017.

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GUASSÚ, Rivadavio; COVA, Jéssica. “Multiparentalidade – Dupla Paternidade/Maternidade”. Disponível em:   <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI217945,11049-Multiparentalidade+Dupla+PaternidadeMaternidade>. Acesso em: 29 ago. 2017.

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VENOSA, Sílvio de Salvo. “Direito Civil: Direito das Sucessões”. 3. ed. v.7. São Paulo: Atlas, 2003.


Notas

[1] MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Preservação da Maternidade Biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família - Enteado criado como filho desde dois anos de idade Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes - A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade Recurso provido. (TJ-SP - APL: 64222620118260286 SP 0006422-26.2011.8.26.0286, Relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior, Data de Julgamento: 14/08/2012, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/08/2012)

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POIANI, Marcia Beani. Multiparentalidade e seu reflexo no direito sucessório. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5487, 10 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64780. Acesso em: 25 nov. 2024.

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