A responsabilidade objetiva e a inversão do ônus da prova como instrumento de efetividade da tutela jurisdicional nas relações de consumo

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O legislador reconhece a necessidade de intervenção estatal nas relações privadas, a fim de permitir o efetivo alcance à prestação jurisdicional por parte do consumidor, considerado o polo mais fraco.

Desde as civilizações mais antigas, nota-se a presença, ainda que de forma embrionária, do princípio da imputação civil dos danos[1], que, em síntese, consiste no dever de indenização por parte de quem violou direito alheio.

Inicialmente, o princípio da imputação civil dos danos era confundido com a vingança privada, uma vez que as condenações decorrentes dos danos causados a outrem atentavam diretamente contra a integridade física do ofensor, com o fim de que este sofresse mal idêntico ao experimentado pela vítima. Porém, com a evolução da sociedade, o instituto desenvolveu-se e, aos poucos, foi adquirindo os contornos atuais.

Partindo de uma análise histórica, é possível verificar a existência do princípio da imputação em todos os sistemas jurídicos, o que igualmente ocorre se feito o exame do direito comparado. Assim sendo, a responsabilidade civil está presente tanto nos ordenamentos jurídicos mais remotos quanto nos atuais[2].

Verificada a universalidade do princípio, presume-se que a necessidade da reparação pelo dano causado é inerente à existência humana e ao convívio em sociedade.

Com fundamento no princípio da imputação civil dos danos, a responsabilidade civil tem como uma de suas funções garantir ao lesado o direito a uma indenização devida pelo agente causador do dano, considerando ou não a sua culpa.

A análise ou abstração da culpa determinará se a teoria adotada é da responsabilidade subjetiva ou objetiva.

De acordo com a teoria clássica, a culpa é o pressuposto principal da responsabilidade civil subjetiva, por esta concepção “a vítima só obterá a reparação do dano se provar a culpa do agente[3]”.

Para a configuração da responsabilidade civil subjetiva, deve restar comprovado que o ofensor agiu com dolo ou culpa e que, em razão deste comportamento, outrem sofreu um prejuízo, o que torna imprescindível a culpa do agente.

A apreciação da culpa do ofensor sempre foi a regra da responsabilidade civil, no entanto, com as modificações trazidas pela revolução industrial surgiram situações que não se enquadravam na teoria clássica[4], tendo em vista que, em alguns casos, a prova da culpa não era possível.

A necessidade social exigida pela sociedade de massas de reparação do dano, principalmente na relação consumerista, evidenciou a incompatibilidade da responsabilidade subjetiva com as relações contratuais oriundas do desenvolvimento do mercado. [5]

Tendo em vista que, em diversas situações, não era possível à vítima provar a culpa do ofensor, em razão do evidente desequilíbrio econômico e da vulnerabilidade do polo mais fraco da relação contratual, reiteraram-se ocasiões de ausência de indenização do dano.

Diante do patente óbice ao acesso à justiça[6], em razão do obstáculo intransponível da prova culpa que inviabilizava a efetiva prestação jurisdicional, surgiu a teoria da responsabilidade objetiva, tendo como precursores Raymond Saleilles e Louis Josserand.

De acordo com Saleilles[7] “a teoria objetiva é uma teoria social que considera o homem como fazendo parte de uma coletividade e que o trata como uma atividade em confronto com as individualidades que o cercam”.

No Brasil, a teoria da responsabilidade objetiva foi mencionada de forma pioneira por San Tiago Dantas, no tocante ao Direito de Vizinhança, seguido de Arnoldo Medeiros da Fonseca[8] e a discussão se o caso fortuito e a força maior excluiriam a responsabilidade objetiva.

Alvino Lima[9], por sua vez, afirmou que a responsabilidade objetiva surgiu do imperativo social de proteção à vítima, evitando as injustiças repelidas pelo ordenamento jurídico.

Destaca-se, ainda, a obra Responsabilidade sem Culpa de Wilson Melo da Silva e Da Responsabilidade Civil de José de Aguiar Dias[10] que afirma que “no sistema objetivo, responde-se sem culpa, ou, melhor, esta indagação não tem lugar”.

Sobre a dispensa da análise da culpa, afirma Rosa Maria de Andrade Nery “o dever de indenizar exsurge independentemente da existência de culpa, resultante tão somente da atividade do causador do dano. Irrelevante ser lícita sua atividade, bastando para caracterizar o dever de indenizar a existência do prejuízo e o nexo de causalidade entre o dano e a atividade”.[11]

A Constituição Federal de 1988, visando à preservação da dignidade da pessoa humana e à manutenção da paz social, utilizou-se do instrumento do intervencionismo estatal nas relações privadas para proteger a parte considerada mais fraca, primando pelo equilíbrio das relações sociais.

Neste sentido a Constituição Federal consagrou a defesa do consumidor como direito fundamental (art 5º, inciso XXXII), além de impor ao princípio da livre iniciativa o limite da proteção ao consumidor (art. 170, inciso V).

À luz das mudanças sociais que acarretaram o desequilíbrio contratual nos negócios de massa, reduzindo o consumidor à situação de subordinação estrutural, o direito do consumidor foi consagrado como direito fundamental.

Desafiando a economia, a ciência do direito buscou tratar as finanças como elemento de concórdia das relações jurídicas[12], visando restabelecer o equilíbrio contratual por meio da proteção do consumidor.

Sob este panorama foi criado o Código de Defesa do Consumidor, que não é considerado um código de consumo, já que não se concentra em atos de consumo, como o sistema francês, tampouco uma “lei geral que contém em si normas especiais protetivas para a proteção dos mais fracos ou consumidores como BGB-reformado[13]”, é um código que tem o propósito de proteger o “sujeito constitucionalmente o identificado como vulnerável[14]”.

Em consonância com os princípios constitucionais, o Código de Defesa de Consumidor finalmente reconheceu a vulnerabilidade do consumidor, impondo ao fornecedor uma série de condutas a serem atendidas com o fim de regular o mercado de consumo.

Visando à proteção efetiva do consumidor, a legislação infraconstitucional consagrou a responsabilidade objetiva do fornecedor como regra, contrapondo-se à teoria clássica adotada pelo Código Civil.

Sendo assim, no tocante às relações de consumo, o fornecedor tem o dever de indenizar sempre que presente a ação, o nexo de causalidade e o dano, eximindo o consumidor da prova da culpa.[15]

Ainda com fundamento no princípio de facilitação da defesa dos direitos consumidor, que reconhece a desigualdade do consumidor em face do fornecedor, e tende a promover a igualdade entre as partes, fazendo com que o consumidor hipossuficiente tenhas as mesmas condições de demandar que o fornecedor, o Código de Defesa do Consumidor institui a possibilidade da inversão do ônus da prova.

A inversão do ônus da prova ocorre quando a distribuição do encargo da prova não acompanha as regras gerais, podendo ser imposta ou autorizada por lei ou por meio de convenção entre as partes.

Ela decorre da própria lei (ope legis) quando a prova de um fato, que em regra é atribuído a uma parte, é imposta a outra parte pela lei, contrastando a regra geral de que quem alega tem o ônus de fazer prova de suas afirmações, pois, sem demonstração, “allegatio partis non fact jus”.

A lei poderá fazer a partilha do ônus da prova de forma direta ou indireta. Ocorrerá de forma direta quando o legislador determinar diretamente o responsável pela produção da prova, de maneira diversa da apresentada no artigo 373 do Código de Processo Civil de 2015.

É possível verificar a inversão do ônus da prova de maneira direta no Código de Defesa do Consumidor no artigo 38, que insculpe que o ônus de provar a veracidade da comunicação publicitária ou a correção da informação fornecida cabe a quem as patrocina.

Já a inversão do ônus legal de forma indireta ocorre quando o legislador apresenta presunções legais relativas.

Entende-se por presunção o processo racional de reflexão acerca do conhecimento de um fato conhecido e a dedução da existência provável de outro fato desconhecido[16].

As presunções legais relativas (iuris tantum) são aquelas resultantes de um “processo mental que conduz à aceitação de um[17] fato controvertido como existente, sem que esteja provado e até que o contrário venha a sê-lo”, sendo que esta dedução deve decorrer da própria lei, admitindo prova em contrário.

No Código de Defesa do Consumidor encontra-se a inversão do ônus da prova por uma presunção legal relativa no artigo 12, § 3º e artigo 14, § 3º, onde presume-se a existência de defeito do produto ou do serviço, responsabilizando o fornecedor de forma objetiva. O fornecedor, por sua vez, poderá provar a inexistência do defeito arguido.

Além da inversão legal, há a inversão judicial ou ope iudicis, que é resultante da decisão do juiz, em casos autorizados em lei.

A legislação autoriza o juiz a presumir a verossimilhança dos fatos alegados por uma das partes, fundamentando sua decisão em regras de experiência comum, atribuindo a outra parte o ônus da prova dos fatos impeditivos, modificativos e extintivos.

No Código de Defesa do Consumidor a hipótese de inversão judicial do ônus da prova está presente no artigo 6º, VIII, que disciplina que “são direitos básicos do consumidor: (...) VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências”.

Ou seja, para que exista a inversão do ônus da prova o juiz deverá verificar a presença da verossimilhança das alegações e a hipossuficiência do consumidor, de acordo com as suas regras de experiência.

Ainda há a possibilidade de distribuição diversa do ônus da prova por convenção das partes, prevista no § 3º do art. 373 do CPC atual, no entanto, devido ao desequilíbrio entre as partes na relação de consumo, este tipo de inversão é, em tese, vedada pela legislação consumerista.

Quando o Código de Defesa se refere às regras ordinárias da experiência do juiz como requisito para que se efetive a inversão, trata do conhecimento privado do juiz, adquirido sobre a repetição de situações semelhantes, as quais podem acontecer de maneira reiterada no futuro.

Além disso, as máximas da experiência não possuem natureza jurídica, são consideradas conclusões relativas, não possuem certeza lógica, tampouco fundamento científico[18], já que são regras oriundas da vivência e do cotidiano.

As regras da experiência não devem ser confundidas com os fatos notórios, já que o fato notório está relacionado com apenas um acontecimento, enquanto as regras de experiência fundam-se em diversas situações que tiveram as mesmas consequências.

As máximas da experiência podem ser consideradas deduções obtidas pela experiência do convívio em sociedade, a partir da reflexão de situações análogas e reiteradas.

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O Código de Defesa do Consumidor permite o afastamento da regra geral processual civil contida no Código de Processo Civil, que em seu artigo 373 disciplina que “o ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”, admitindo a exigência de igualdade processual entre as partes.

A inversão visa atribuir o encargo probatório a quem possui melhores condições para a produção das provas necessárias ao processo[19], ou seja, o ônus da prova é coordenado de forma a permitir que a produção seja feita da maneira menos gravosa à parte considerada mais fraca.

A alteração da regra probatória no Código de Defesa do Consumidor está relacionada à hipossuficiência processual a que se refere o artigo 6º, inciso VII, que admite que, na maioria dos casos, o consumidor não dispõe das melhores condições para demonstrar os fatos e esclarecer o juízo sobre as particularidades da demanda.

Em busca da efetividade jurisdicional[20], a inversão pretende atingir a adequada tutela dos direitos e a igualdade material entre as partes.[21]

Com a inversão, o legislador visou a aproximação do direito material e processual, ou seja, utilizou-se de um instrumento processual para possibilitar o alcance do direito material pretendido, em situações especiais em que há obstáculos apresentados em virtude das diferenças entre as partes, permitindo a adequada tutela dos direitos.

À luz do princípio da igualdade contido na Constituição Federal, foi criado o princípio de igualdade processual entre as partes, que assegura a elas igualdade de tratamento processual para que possuam as mesmas condições para demandar.

Com o propósito da realização da justiça no processo, a inversão do ônus é utilizada para alcançar a igualdade, garantindo o equilíbrio entre as partes, para que ambas possam influenciar no resultado do processo da mesma forma e possuam as mesmas limitações[22].

Em decorrência do apresentado, é possível perceber que a partir do reconhecimento da necessidade da proteção do consumidor, parte vulnerável nas relações de consumo, foi criado o Código de Defesa do Consumidor como microssistema específico para regulamentar esta importante esfera da convivência humana.

Com o intuito de proteger os direitos do consumidor, facilitar a sua defesa, permitindo o equilíbrio entre as partes em juízo, o legislador reconheceu a vulnerabilidade do consumidor e implementou na lei infraconstitucional instrumentos que visassem a efetividade da tutela jurisdicional.

A adoção da responsabilidade objetiva pela legislação consumerista e a possibilidade de inversão do ônus da prova, seja ela ope legis ou ope iudicis, são ações positivas do legislador que revelam os mecanismos mais relevantes apresentados pelo Código que têm o propósito de possibilitar ao consumidor o real alcance de seus direitos.

A escolha da responsabilidade objetiva permite a efetivação do instituto da responsabilidade civil, fazendo com que o fornecedor responda pelos danos causados ao consumidor independentemente de culpa.

Já a inversão do ônus da prova tem o fim de adequar as regras processuais de produção de provas à hipossuficiência processual do consumidor, permitindo que este demande em juízo com o fornecedor com paridade de armas.

Em virtude da desigualdade material e processual existente entre as partes nas relações de consumo, o acesso à justiça buscado pelo consumidor estava obstado, uma vez que, na maioria dos casos, a efetiva tutela jurisdicional não era alcançada.

Diante do reconhecimento do óbice à justiça, o legislador reconheceu a necessidade de intervenção estatal nas relações privadas, instituindo instrumentos que permitissem o efetivo alcance à prestação jurisdicional por parte do polo considerado mais fraco: o consumidor.

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Sobre a autora
Ana Paula Sawaya Pereira do Vale B. David

Doutoranda e Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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