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O cancelamento do registro dos fabricantes de cigarros:

breve análise sobre as perspectivas e expectativas do processo e do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.952

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4.A FISCALIDADE E A EXTRAFISCALIDADE TRIBUTÁRIA

A principal função dos tributos é arrecadar receitas para o Estado. Nada obstante, os tributos podem ter funções extrafiscais, de modo que além de arrecadar riquezas para o Estado, o tributo pode ser utilizado como agente indutor de comportamentos. Ou seja, é possível utilizar o tributo para propositadamente estimular ou desestimular a produção ou o consumo de determinado bem ou a prestação de determinado serviço.25

Nesse passo é de se indagar o eventual enquadramento das normas de estímulo (ou de desestímulo) no quadro dos tradicionais modais deônticos-normativos: proibir, obrigar e facultar. Ou seja, todo e qualquer conduta e comportamento, à luz do ordenamento normativo, ou é proibido ou é obrigatório ou é facultativo.26

Esse quadro da realidade normativa provocou o estudo da “função promocional do direito” e das “sanções positivas”, como o reconhecimento de que além de proibir ou de obrigar ou de facultar, o direito - instrumento normativo das opções político- ideológicas predominantes em uma determinada sociedade em um determinado momento de sua história – deve trabalhar com preceitos que incentivem, mediante prêmios, determinadas condutas e comportamentos, que não são proibidos nem obrigatórios, mas que são relevantes naquele determinado contexto social, cultural e histórico.27

Tendo em mira essas possibilidades normativas dos preceitos legislativos e da atuação administrativa do Estado, é admissível que a administração pública utilize a fiscalização tributária para além da função eminentemente arrecadatória, mas como poderoso instrumento de estímulo (ou de desestímulo) de condutas e comportamentos segundo os padrões socialmente aceitáveis.

Daí que a leitura extrafiscal do problema sob análise é aceitável e convincente, pois a carga tributária sobre o cigarro tem um aspecto de desestimular a sua produção e consumo, tendo em vista que nada obstante sejam condutas permitidas (produção, venda e consumo), não são práticas incentivadas ou estimuladas, haja vista os malefícios insidiosos do cigarro para a saúde das pessoas.


5.PERSPECTIVAS E EXPECTATIVAS DO JULGAMENTO DA ADI 3.952

A  predição  judicial28     é  terreno  pantanoso,  pois  antecipar  os  resultados  dos julgamentos e as razões argumentativas dos magistrados pressupõe uma cultura de respeito às tradições normativas e jurisprudenciais, bem como uma coerência dos magistrados em relação a outras manifestações e decisões, revelando uma densa integridade moral de quem elege a magistratura como profissão (vocação).

Com efeito, o magistrado tem o poder de aplicar o direito do modo que lhe aprouver,  pois  ele  é  o  seu  intérprete  autêntico.29        Isso  significa,  portanto,  que  o  texto normativo não raras vezes não passa de um pretexto para a decisão judicial. Ou seja, o juiz decide como, quando e do jeito que quiser.

Conquanto isso seja uma realidade, não quer dizer que seja o modo certo de atuação dos magistrados. Os magistrados devem ser coerentes e íntegros. A rigor não apenas os magistrados, mas os “cientistas” (acadêmicos) do Direito também devem se agir com coerência intelectual e integridade moral.30

Essas exigências (coerência e integridade) se tornam absolutamente imperiosas em relação aos magistrados das Cortes Supremas ou Tribunais Constitucionais. Ou seja, todos os ministros do Supremo Tribunal Federal devem ser inflexivelmente coerentes e de insuspeita integridade. Ninguém deve se espantar ou se surpreender com as decisões do STF nem com as manifestações dos seus ministros. Todo ministro do STF deve ser fiel ao seu passado e às tradições da Corte. As evoluções e as rupturas devem ser justificadas de modo convincente, pois o direito não pode servir de instrumento para os caprichos e arbítrios de quem esteja no poder, sobretudo do Poder Judiciário.

Com efeito, dos abusos normativos do Poder Executivo o cidadão pode se proteger junto ao Legislativo e ao Judiciário. Dos abusos do legislador é possível se proteger junto ao Executivo e ao Judiciário. Mas como se proteger dos abusos judiciários? Quem vai proteger o cidadão vítima de um abuso de poder ou de uma ilegalidade do STF? Quem diz se houve abuso ou ilegalidade não é o eventual abusador ou cometedor da ilegalidade? STF: “guardião” ou “carcereiro” da Constituição?

Eis a razão segundo a qual os ministros do STF devem ser escravos das leis e da Constituição, bem como das práticas jurisprudenciais tradicionais da Corte. O ministro do STF não deve ser o “senhor” da Constituição e das Leis, mas seu fiel e obediente servo. A nenhum ministro do Tribunal é dado o direito de impor a sua vontade sobre o sentido emanado dos preceitos normativos da Constituição e das Leis. O ministro do STF não é um soberano constitucional. É um vassalo do Direito. É assim que ele deve agir e se comportar.

Nessa perspectiva, é preciso buscar na tradição da Corte as pistas que poderão decifrar as expectativas do julgamento.

Pois bem, em 21.10.2010, teve início o julgamento dessa ADI 3.952. O relator ministro Joaquim Barbosa votou pela interpretação conforme de modo que a cassação do registro especial fosse considerada constitucional, se simultaneamente estiverem presentes os seguintes requisitos condicionantes: a) observar o vulto dos créditos tributários devidos; b) respeitar o devido processo legal de controle de validade da restrição normativa; e c) respeitar o devido processo legal de controle da validade dos créditos tributários devidos. O relator chegou a essas conclusões após analisar a questão além do aspecto estritamente tributário.31

Com efeito, se se olhar apenas e tão somente a questão tributária em si, não restam dúvidas em se afirmar que as mencionadas Súmulas 70, 323 e 547 deveriam ser aplicadas nessa controvérsia, e a aludida ação deveria ter o seu pedido julgado procedente. É cediço, à luz da remansosa jurisprudência do STF32, que são inválidos os instrumentos normativos indiretos que tenham como finalidade obrigar o contribuinte ao pagamento dos tributos ou ao cumprimento das obrigações fiscais acessórias.

Todavia, se se olhar essa questão além do direito tributário, se se apreciar essa controvérsia à luz do Direito como um todo, na linha do magistério de Eros Roberto Grau33, é possível ver que os preceitos normativos impugnados podem ser considerados válidos.

Após o voto do relator, houve um rápido debate entre ele e os ministros Cármen Lúcia, Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie e Cezar Peluso. Como não se chegou a um consenso, a ministra Cármen Lúcia pediu vista dos autos para melhor exame. Cuide-se, nada obstante, que Sua Excelência tinha se manifestado, inicialmente, no sentido de julgar improcedente o pedido da ação.34

O início da apreciação dessa ADI 3.952 foi anterior à finalização do julgamento do RE 550.76935, que também teve como pano de fundo normativo o aludido DL 1.593/77. Mas nesse citado RE 550.769 estava em apreciação uma situação concreta e particular de uma determinada empresa que tinha inadimplência tributária contumaz e, com essa inadimplência, estava obtendo uma vantagem competitiva em relação às adimplentes.

Cuide-se que em 22.5.2013, o Tribunal, por maioria, vencidos os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello, e estando ausente a ministra Cármen Lúcia, desproveu o aludido RE 550.769 da empresa “contribuinte”. O ministro Luís Roberto Barroso não participou desse mencionado julgamento. Se levarmos em consideração o resultado desse citado RE 550.769, da atual composição, provavelmente votarão pela procedência do pedido da ADI 3.952 os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio e Gilmar Mendes. Esses 3 ministros partilham do entendimento segundo o qual o impugnado DL 1.593/77 merece o rótulo de “sanção política”.Tenha-se, no entanto, que a ministra Cármen Lúcia participou do julgamento da Ação Cautelar n. 1.65736, que serviu de preparação para o referido RE 550.769, e se manifestou contrariamente ao postulado pela empresa tabagista.

Insiste-se. Se se olhar a discussão apenas através do prisma tributário se enxergará uma flagrante “sanção política”. Mas se formos além da arrecadação tributária, poderemos perceber que esse DL 1.593/77 está em sintonia com a Constituição da República.

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Com efeito, o Estado apenas tolera o exercício dessa atividade econômica que fabrica produtos danosos à saúde pública. Esses produtos fumígeros agridem não somente o indivíduo que os consomem diretamente, mas tem potencial de causar danos às pessoas que mesmo sem consumi-los diretamente podem sofrer com a contaminação da “fumaça” e do “mau cheiro” provocados. Eis a razão pela qual, surge o interesse público, não apenas estatal, mas social, de embaraçar e dificultar a produção e o consumo de cigarros.

Esse embaraço encontra respaldo tanto na legislação nacional, quanto na estrangeira e internacional. O combate ao consumo do cigarro faz parte da agenda de saúde global, como se vê nas diretivas da Organização Mundial da Saúde (OMS).37

Nesse passo, devem ser draconianas as normas e medidas relacionadas à indústria tabagista. Todavia, essa severidade não significa despótica arbitrariedade estatal. Essas restrições devem ser justas, ou seja, devem ser razoáveis e proporcionais: compatíveis, adequadas, necessárias e aceitáveis.

Devem ser ações e medidas normativas que traduzam os ônus e deveres da indústria tabagista no exercício de seus direitos constitucionalmente assegurados. Com a devida vênia, é através do prisma dos ônus e deveres que a presente controvérsia deve ser examinada. O enfoque pretendido pelo requerente não é o mais adequado. Nesse caso, os direitos fundamentais da indústria tabagista estão em necessária vinculação ao cumprimento de seus deveres fundamentais.

Só com o cumprimento de todas as suas obrigações legais (fiscais, sanitárias, trabalhistas, ambientais etc.) é que a indústria tabagista poderá exercer o seu direito de produzir e de vender cigarros. Conquanto esteja em controvérsia o regime especial do IPI, a presente análise deve ser feita a partir do direito econômico e da extrafiscalidade tributária. A legislação combatida tem como finalidade regular a atividade econômica de produzir cigarros garantindo que mediante concorrência predatória e preços convidativos não haja o predomínio entre as indústrias.

Nesse específico caso, a liberdade concorrencial prevalece sobre a livre iniciativa, em homenagem à função social da propriedade (empresa privada), evitando- se o abuso do poder econômico, que se dá com o não cumprimento das obrigações fiscais, como decidiu o Tribunal no recordado julgamento do RE 550.769.

Cuide-se que o STF, nos autos da ADI 3.51238, já havia assinalado que a intervenção normativa do Estado nas atividades econômicas tem respaldo constitucional, porquanto a livre iniciativa esteja condicionada pela regularidade legal.

Além da referida proteção à liberdade de concorrência, reitera-se que o principal objetivo da forte carga tributária sobre o cigarro consiste em desestimular o seu consumo, haja vista os malefícios para a saúde pública provocados pelo seu uso. Decorre dessa verdade elementar a consequência de que todas as normas e medidas jurídicas para controlar com rigor e austeridade a produção de cigarros são constitucionalmente válidas, politicamente legítimas, moralmente aceitáveis e socialmente desejáveis.

Nada obstante essas reflexões, se acaso a maioria dos ministros entender que a questão tem caráter estritamente tributário e que o Estado desborda de suas possibilidades jurídicas e atribuições normativas ao condicionar o funcionamento de uma empresa à regularidade de suas obrigações fiscais, o destino da ADI 3.952 pode ser o reconhecimento da inconstitucionalidade do impugnado DL 1.593/77.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O cancelamento do registro dos fabricantes de cigarros:: breve análise sobre as perspectivas e expectativas do processo e do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.952. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5521, 13 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65808. Acesso em: 19 abr. 2024.

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