Licitações exclusivas para micro e pequenas empresas: possibilidade

21/05/2018 às 14:31
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Aborda as vantagens conferidas às microempresas e às empresas de pequeno porte em licitações pela LC n. 123/2006

O tratamento diferenciado em favor das microempresas e das empresas de pequeno porte encontra respaldo expresso da Constituição Federal:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.

A fim de conferir eficácia material à previsão constitucional, a LC n. 123/2006, que institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, previu:

Art. 47. Nas contratações públicas da administração direta e indireta, autárquica e fundacional, federal, estadual e municipal, deverá ser concedido tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica.

Parágrafo único. No que diz respeito às compras públicas, enquanto não sobrevier legislação estadual, municipal ou regulamento específico de cada órgão mais favorável à microempresa e empresa de pequeno porte, aplica-se a legislação federal.

Art. 48. Para o cumprimento do disposto no art. 47 desta Lei Complementar, a administração pública:

I - deverá realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais); (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)

Art. 49. Não se aplica o disposto nos arts. 47 e 48 desta Lei Complementar quando:

II - não houver um mínimo de 3 (três) fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório;

III - o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado;

IV - a licitação for dispensável ou inexigível, nos termos dos arts. 24 e 25 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, excetuando-se as dispensas tratadas pelos incisos I e II do art. 24 da mesma Lei, nas quais a compra deverá ser feita preferencialmente de microempresas e empresas de pequeno porte, aplicando-se o disposto no inciso I do art. 48.

A LC n. 123/2006 estabeleceu prioridade na contratação de microempresas e de empresas de pequeno porte quando os itens da licitação não excedem R$ 80.000,00. A regra visa fomentar a participação de pequenos comerciantes na economia, a exemplo de pequenos produtores de hortifrútis, minimercados, diminutas lojas de materiais de construção e papelarias.

A lei apenas excepciona dessa regra as situações em que não haja um mínimo de 3 (três) fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório.

A LC n. 123/2006 teve o condão de restringir às micro e pequenas e empresas a participação em itens de contratação cujo valor não ultrapasse R$ 80.000,00, que é o valor do convite. Segundo a referida norma, o tratamento diferenciado deve prevalecer desde que existam, no mínimo, 3 (três) micro e/ou pequenas empresas capacitadas para atender o reivindicado pela Administração Pública na licitação, localizadas em âmbito local ou regional.

Alguns doutrinadores alegam que a LC n. 123/2006 aplica de maneira desproporcional o princípio do tratamento diferenciado e favorecido às micro e pequenas empresas, em dimensão superior ao razoável para compensar as diferenças entre pequenas e grandes empresas, esbarrando assim em ofensa ao princípio da isonomia. Para Marçal Justen Filho:

Somente serão válidos os benefícios instituídos em prol das MEs e EPPs que sejam aptos a assegurar a neutralização das diferenças por elas apresentadas em face das grandes empresas" (O estatuto da microempresa e as licitações públicas. São Paulo: Dialética, 2007, p. 21).

O Parecer n. 3.157 da FECAM fala que a LC n. 147/2014 introduziu alterações legais drásticas, de profundo impacto nas contratações efetuadas pela Administração Pública, porém de duvidosa constitucionalidade. Conclui, todavia, que “diante da vigência dos dispositivos legais citados, e inexistindo até o presente momento qualquer manifestação do Poder Judiciário a suspender ou negar sua vigência, incumbe à Administração Pública obedecê-los”.

O Tribunal de Contas do Estado do Tocantins, em resposta à consulta relacionada às alterações da LC n. 123/2006, introduzidas pela LC n. 147/2014, dispôs:

Nos termos do art. 48, I, da LC nº 123/2006, uma empresa que não seja ME e/ou EPP não poderá participar de uma licitação exclusiva para as microempresas e empresas de pequeno porte. Conforme inciso II do art. 49 da LC nº 123/2006, caso inexista o número mínimo de três ME e/ou EPP, sediadas no local ou na região, e que sejam capazes de cumprir as exigências estabelecidas no edital, consequentemente, a realização de uma licitação exclusiva com fundamento neste inciso restará justificadamente afastada, e para tanto, o edital não poderá prever que não comparecendo nenhuma ME e/ou EPP, será permitida a participação de empresas de maior porte. (TCE/TO, Resolução n. 181/2015, Pleno)

O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (MPTC/SC) já teve a oportunidade de se manifestar sobre a validade das inovações legislativas introduzidas pela LC n. 147/2014 nos seguintes termos:

Importante destacar que por força da Lei Complementar n° 147/2014 as licitações de até R$ 80.000,00 devem ser (e não mais podem, como constava na redação anterior) exclusivas à participação das microempresas e empresas de pequeno porte. Somente poderá ser possibilitada a participação de outras empresas nos casos previstos no art. 49 da Lei Complementar n. 123/06 (Parecer nº: MPC/41.601/2016)

A área técnica do TCE/SC também deixou claro seu posicionamento, quando do questionamento da legalidade de licitação que previa a participação exclusiva de microempresas e empresas de pequeno porte:

O regramento questionado constante do item 2.1 quanto à participação da ME ou EPP está de acordo com a disposição da Lei Complementar nº 123/06 alterada pela LC-147/14 (TCE/SC, Processo n. REP-15/00303558, DLC - 280/2015 - Instrução Plenária)

Importante destacar que o legislador, com o intuito de preservar a competitividade nessas licitações regionalizadas, estabeleceu como condição um mínimo de três competidores, conforme explica Marçal Justen Filho:

[…] a restrição em favor da participação de pequenas empresas não pode conduzir à eliminação da competitividade. Por isso, o art. 49, inc. II, determina que não se aplicará o regime de licitação diferenciada quando “não houver um mínimo de 3 (três) fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório (JUSTEN FILHO, Marçal. O estatuto da microempresa e as licitações públicas. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2007, p. 122).

A LC n. 123/2006 estabeleceu exceções à aplicação do princípio da licitação exclusiva. Em seu art. 49, a lei determinou que empresas de maior porte poderiam ser contratadas nas seguintes circunstâncias:

I- não houver um mínimo de 3 (três) fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório;

II- o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado; e

III- a licitação for dispensável ou inexigível, nos termos dos arts. 24 e 25 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, excetuando-se as dispensas tratadas pelos incisos I e II do art. 24 da mesma Lei, nas quais a compra deverá ser feita preferencialmente de microempresas e empresas de pequeno porte, aplicando-se o disposto no inciso I do art. 48.

Quanto à compreensão da expressão “sediados local ou regionalmente”, o Tribunal de Contas do Estado de Rondônia dispôs:

O alcance da expressão “regionalmente”, para fins do art. 49, inciso II, da Lei Complementar nº 123/06, deve ser delimitado e devidamente justificado pela própria Administração Pública, em cada edital de procedimento licitatório, de acordo com as especificidades do caso concreto, para tanto deverão ser levadas em conta as especificidades do objeto licitado, o princípio da razoabilidade e também os objetivos do tratamento diferenciado, quais sejam: promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional; ampliação da eficiência nas políticas públicas; e, incentivo a iniciativa tecnológica; II. Caberá ao Administrador Público demonstrar, no momento da delimitação do alcance da expressão “regionalmente”, os motivos e as razões de direito para o tratamento diferenciado conferido, no certame, às microempresas e às empresas de pequeno porte.

Sala das Sessões, 08 de maio de 2014. Conselheiro VALDIVINO CRISPIM DE SOUZA Relator

E também o Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso:

2) Para efeito de aplicação do § 3º do art. 48 e do inciso II do artigo 49, da LC 123/2006, a abrangência do termo “regionalmente” deve ser delimitada e fixada na fase interna do certame, no Termo de Referência ou no Projeto Básico, conforme for o caso, e devidamente justificada pela própria Administração Pública, considerando as especificidades de cada objeto a ser adquirido, o princípio da razoabilidade, o respectivo mercado fornecedor e o cumprimento dos objetivos insculpidos no caput do artigo 47 da Lei. (TCE/MT, Consulta nº 17/2015. Rel. Conselheira Interina Jaqueline Jacobsen Marques)

A vantagem conferida às micro e pequenas empresas foi questionada sem sucesso perante o Tribunal de Contas da União (TCU). No voto do Ministro Relator Guilherme Palmeira para o Acórdão nº 1231/2008, Plenário, TCU, consta:

Nada obstante a existência do preceito constitucional da realização de licitação para as contratações públicas com o objetivo de melhor atendimento ao interesse público, assegurado o tratamento isonômico entre os participantes, não há que se olvidar que é também princípio constitucional o tratamento favorecido às empresas de pequeno porte (CF/88, art. 170, IX e 179), com o justo intuito de alçar à condição de iguais sujeitos desiguais. Creio que esses princípios não se antagonizam, ao contrário. Formam um todo harmônico em busca, justamente, da almejada isonomia, da igualdade.

Penso, ainda, não ter sido outro o espírito com que o legislador ordinário promulgou a LC 123/2006, estabelecendo as normas gerais relativas ao tratamento diferenciado e favorecido dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e o Executivo baixou o Decreto 6.204/2007, regulamentando o tratamento favorecido, diferenciado e simplificado a ser aplicado aos entes em questão nas contratações públicas no âmbito da Administração Federal.

Além do mais, como bem assentou o representante do parquet, o atendimento ao interesse público visado pelo instituto da licitação, lato sensu, compreende não só a melhor proposta financeira, mas também fomentar a ampliação da oferta de bens e serviços, inibindo a formação de estruturas anômalas de mercado.

Dessa forma não vejo como prosperar a tese de inconstitucionalidade aventada.

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No mesmo sentido, o Tribunal Regional da 5ª Região:

ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO TIPO MENOR PREÇO POR ITEM. EXISTÊNCIA DE VÁRIAS FAIXA DE CONCORRÊNCIA INDEPENDENTES E AUTÔNOMAS ENTRE SI. PARTICIPAÇÃO EXCLUSIVA DE MICROEMPRESAS, EMPRESAS DE PEQUENO PORTE E SOCIEDADES COOPERATIVAS. VALOR DE CADA ITEM NÃO EXCEDE O TETO PREVISTO NA LEI COMPLEMENTAR Nº 123/06. PROVIMENTO DO RECURSO.

1. Agravo de instrumento desafiado contra decisão que determinou a participação da parte agravada na licitação atinente ao Processo Administrativo nº 63064.000019/2009-89 - Edital de Licitação nº 04/2009, modalidade Pregão Eletrônico - salvo se por outro motivo deva ser excluída ou desqualificada.

2. Licitação do tipo "MENOR PREÇO POR ITEM" na qual - embora seu valor global (R$ 1.002.487,54) exceda o limite previsto na Lei Complementar nº 123/06 (R$ 80.000,00) para ser assegurada a participação exclusiva das microempresas, empresas de pequeno porte e sociedades cooperativas - observa-se que foram estabelecidas várias faixas de concorrência autônomas entre si, sendo, assim, cada item cotado substancialmente independente dos demais.

3. Existência de várias licitações distintas e independentes entre si, cujo valor não excede o teto previsto na Lei Complementar nº 123/06, o que é corroborado, para exemplificar, pelo disposto no item 20.1, segundo o qual "cada contrato firmado com a fornecedora terá vigência pelo prazo de 15 (quinze) dias, a partir da retirada da Nota de Empenho, nos termos do art. 57, da Lei nº 8.666/93".

4. Inobstante, na hipótese em apreço exista uma limitação à livre concorrência, prestigia-se o preceito constitucional insculpido no art. 170, IX, que assegura "tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País", as quais, sem essa garantia, não teriam oportunidade de contratar com a Administração Pública.

5. Agravo de instrumento provido.

(TRF5, Segunda Turma. Agravo de Instrumento nº 104017 (0000319-40.2010.4.05.0000). Relator Desembargador Federal Francisco Wildo. Diário da Justiça Eletrônico TRF5, Poder Judiciário, Recife, PE, 13 mai. 2010)

Ou seja, a LC n. 123/2006 abre a alternativa de que o tratamento diferenciado conferido à micro e à pequena empresa não seja aplicado caso ele não seja vantajoso para a administração pública ou represente prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado. Sabe-se, contudo, que a contratação dessas empresas, que possuem pouca escala, não raras vezes compromete a economicidade da compra pública e findam por levar a Administração Pública a celebrar contrato menos vantajoso.

É lícito, portanto, concluir que a LC n. 123/2006 encontra-se em pleno vigor e deve ser cumprida até que seu conteúdo venha a ser declarado inconstitucional. Por conseguinte, tem-se:

1- O art. 48, I, da LC n. 123/2006 determina que a Administração Pública “deverá realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais)”;

2- O referido diploma tem abrangência nacional e aplica-se a contratações públicas da Administração direta e indireta, autárquica e fundacional, federal, estadual e municipal (art. 47);

3- A participação de empresas de maior porte é possível apenas caso ocorra uma das situações previstas no art. 49, a saber: I- quando não houver um mínimo de 3 (três) fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório; e II- quando o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado;

4- Apesar das vantagens concedidas às micro e pequenas empresas, a LC n. 123/2006 não parece ter tido a constitucionalidade questionada ou sua aplicação flexibilizada;

5- Os Tribunais de Contas têm chancelado a interpretação literal do dispositivo do art. 48, I, da LC n. 123/2006 e se recusado a sustar editais de licitação destinados exclusivamente a micro e pequenas empresas.

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Sobre o autor
Roberto Di Sena Júnior

Mestre em Direito (UFSC); Especialista em Direito Público (Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus); Especialista em Direito Processual Civil (UCAM); Analista do MPSC

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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